2 de nov. de 2018

O que a cultura tem a ver com a vitória de Bolsonaro? - Raisa Pina\Le Monde Brasil Diplomatique


 
 Detalhe do quadro a Redenção de Cam. A obra aborda as controversas teorias raciais do fim do século XIX e o fenômeno da busca do “embranquecimento”


O plano é cruel. Primeiro se acultura, anulam-se as identidades de um povo torturado, para depois encaixar a hegemonia europeia, branca, de costumes, de crenças, de práticas



O fenômeno de Jair Bolsonaro é explicado por uma teia complexa de elementos interligados e interdependentes. É uma questão de representatividade ultraconservadora; é resultado de uma militarização histórica da política brasileira; é fruto de uma minimização dos debates travados sobre notícias falsas que vêm sendo alertados por entidades competentes desde antes das eleições.


Também é produto de um financiamento milionário de Caixa 2, ignorado pela justiça; é emblema da doutrinação evangélica fundamentalista; está em sintonia com uma onda reacionária internacional; constrói-se em cima de uma prática antiga de caça aos comunistas para preservação do liberalismo; passa pela pouca reflexão feita sobre o que de fato foi o período da ditadura civil-militar no Brasil.


Não fossem todos esses motivos já suficientes, Bolsonaro ainda se vangloria com o ódio ao Lula e ao PT, construído minuciosamente para que houvesse um inimigo comum a ser derrotado; aproveita-se do clamor pelo novo, mesmo que este novo tenha três décadas de cargo político.


A lista é longa e apesar de cada motivo elencado suscitar outros tantos debates, existe ainda um elemento importantíssimo, situado no centro deste episódio: a cultura, analisada aqui como uma política nacional antes mesmo de existir nação.


Um dos pilares que balizaram a colonização do Brasil é de ordem cultural. Os invasores europeus chegaram aqui exterminando os povos indígenas e seus costumes, catequisando os sobreviventes e silenciando as identidades originárias para que fizessem caber o que os portugueses queriam. Diminuíram seus artefatos, chamaram-nos de “primitivos”.


Sequestraram africanos negros, especialmente das regiões atuais de Angola, Moçambique e Nigéria, para escravizá-los no território colonial pelo trabalho, pelo pensamento e pelos costumes. Não deixavam que dançassem, não deixavam que capoeirassem, não deixavam que falassem sua própria língua ou fizessem rituais religiosos. Condenaram os orixás e forçaram por cima de tudo um Deus único, com D maiúsculo.


Foi um intenso e violento processo de aculturação, lançado como projeto político sobre os povos indígenas, a população negra africana e seus descendentes, que hoje são a grande maioria dos brasileiros, mesmo que a população tenha fenótipo majoritariamente branco. Há sempre uma gota de sangue indígena ou negra nas nossas veias.


O plano é cruel. Primeiro se acultura, anulam-se as identidades de um povo torturado, para depois encaixar a hegemonia europeia, branca, de costumes, de crenças, de práticas. Esse processo também é complexo: a consolidação de uma cultura hegemônica sobre outra passa desde por políticas de estado, como a política de branqueamento praticada no século XIX (que transbordou da questão colorista para os modos e costumes), como passa também por uma simples mas genuína necessidade de pertencimento. Identidades existem e são importantes porque criam sensação de vínculo com o território e com o grupo social, cria empatia e consciência de coletividade.


Se apagam uma identidade aqui, procura-se outra acolá, que será encontrada na coletividade mobilizadora mais próxima, que atualmente reside muito provavelmente em uma igreja fundamentalista ou em um grupo de Whatsapp recheado de ficções. Isso explica em partes a existência de algumas figuras pertencentes a minorias sociais que apoiam um presidente explicitamente contrário a minorias. Suas identidades originais foram negadas há gerações.

Órfãos de raízes não se entendem como indivíduos ameaçados pelo discurso de Bolsonaro, mesmo que a evidência esteja na cara. E mais do que isso, enxergam no militar reformado uma referência de sucesso. Querem ser brancos de olhos claros, patriarcas da família, severos, rigorosos, temidos e, por isso, respeitados. Querem ser “civilizados” (era essa a desculpa da política de branqueamento de dois séculos atrás).


Em um país tão rico como o Brasil, o projeto de construção de uma nação, criado pela monarquia branca colonizadora, colocou em prática ações para anulação de identidades seguida de hegemonização de uma cultura tida como superior, como forma de manutenção de um poder cruel, apesar de disfarçado de boas intenções.


Existe ainda mais um elemento que deve ser colocado na conta da cultura. Se ela foi historicamente usada para divulgação de um discurso oficial injusto e desigual, é por ela que as identidades silenciadas podem se emancipar. Os poderosos sabem bem disso e exatamente por isso negligenciam a cultura atualmente. Nunca há recursos para nada, e quando há, ele é questionado. “Um absurdo construir museu com pessoas morrendo em hospitais”, vão dizer.




Quase todos os países da América do Sul que passaram por ditaduras nas décadas de 1960-1970 têm hoje museus, mesmo que pequenos, que expõem a catástrofe e o absurdo dos regimes. O Brasil não tem. Em São Paulo, existe o Memorial da Resistência, dedicado à preservação das memórias e da repressão política do Brasil republicano, localizado no antigo DOPS, mas ainda não é suficiente para dar conta da necessidade urgente que existe de reflexão e entendimento do que foi o período ditatorial no país.


O funcionamento pleno e eficiente de instituições assim depende de investimento, recurso para pesquisa e manutenção. Se isso não aconteceu até hoje, não é agora, com Bolsonaro e todo o Congresso reacionário eleito, que vai acontecer. E cá entre nós, está bem óbvio que não há interesse algum do poder vigente em promover uma reflexão sobre a ditadura no Brasil.


Na sociedade domesticada, administrada e colonizada, a cultura é uma das ferramentas de emancipação mais eficientes que existem. É pela cultura que se alerta para as raízes de um povo e para sua história. É por ela que o pensamento crítico se desenvolve. A democracia e a igualdade tão clamadas nas ruas (e nas redes sociais) passam necessariamente pela cultura. A negligência a ela sempre elegerá Bolsonaros na história. Este era o plano, não era? Deu certo para eles. A reversão da situação só poderá ser efetivada quando a cultura for tratada e alimentada como a revolucionária que é.



Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em artes, cultura e política, doutoranda em História da Arte pela Universidade de Brasília.
Fonte: Le Monde 

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