Detalhe do quadro a Redenção de Cam. A obra aborda as
controversas teorias raciais do fim do século XIX e o fenômeno da busca do
“embranquecimento”
O plano é cruel. Primeiro se acultura, anulam-se as identidades de um povo torturado, para depois encaixar a hegemonia europeia, branca, de costumes, de crenças, de práticas
O fenômeno de Jair Bolsonaro é
explicado por uma teia complexa de elementos interligados e interdependentes. É
uma questão de representatividade ultraconservadora; é resultado de uma
militarização histórica da política brasileira; é fruto de uma minimização dos
debates travados sobre notícias falsas que vêm sendo alertados por entidades
competentes desde antes das eleições.
Também é produto de um
financiamento milionário de Caixa 2, ignorado pela justiça; é emblema da
doutrinação evangélica fundamentalista; está em sintonia com uma onda
reacionária internacional; constrói-se em cima de uma prática antiga de caça
aos comunistas para preservação do liberalismo; passa pela pouca reflexão feita
sobre o que de fato foi o período da ditadura civil-militar no Brasil.
Não fossem todos esses motivos já
suficientes, Bolsonaro ainda se vangloria com o ódio ao Lula e ao PT,
construído minuciosamente para que houvesse um inimigo comum a ser derrotado;
aproveita-se do clamor pelo novo, mesmo que este novo tenha três décadas de
cargo político.
A lista é longa e apesar de cada
motivo elencado suscitar outros tantos debates, existe ainda um elemento
importantíssimo, situado no centro deste episódio: a cultura, analisada aqui
como uma política nacional antes mesmo de existir nação.
Um dos pilares que balizaram a
colonização do Brasil é de ordem cultural. Os invasores europeus chegaram aqui
exterminando os povos indígenas e seus costumes, catequisando os sobreviventes
e silenciando as identidades originárias para que fizessem caber o que os
portugueses queriam. Diminuíram seus artefatos, chamaram-nos de “primitivos”.
Sequestraram africanos negros,
especialmente das regiões atuais de Angola, Moçambique e Nigéria, para
escravizá-los no território colonial pelo trabalho, pelo pensamento e pelos
costumes. Não deixavam que dançassem, não deixavam que capoeirassem, não
deixavam que falassem sua própria língua ou fizessem rituais religiosos.
Condenaram os orixás e forçaram por cima de tudo um Deus único, com D
maiúsculo.
Foi um intenso e violento
processo de aculturação, lançado como projeto político sobre os povos
indígenas, a população negra africana e seus descendentes, que hoje são a
grande maioria dos brasileiros, mesmo que a população tenha fenótipo
majoritariamente branco. Há sempre uma gota de sangue indígena ou negra nas
nossas veias.
O plano é cruel. Primeiro se
acultura, anulam-se as identidades de um povo torturado, para depois encaixar a
hegemonia europeia, branca, de costumes, de crenças, de práticas. Esse processo
também é complexo: a consolidação de uma cultura hegemônica sobre outra passa
desde por políticas de estado, como a política de branqueamento praticada no
século XIX (que transbordou da questão colorista para os modos e costumes),
como passa também por uma simples mas genuína necessidade de pertencimento.
Identidades existem e são importantes porque criam sensação de vínculo com o
território e com o grupo social, cria empatia e consciência de coletividade.
Se apagam uma identidade aqui,
procura-se outra acolá, que será encontrada na coletividade mobilizadora mais
próxima, que atualmente reside muito provavelmente em uma igreja
fundamentalista ou em um grupo de Whatsapp recheado de ficções. Isso explica em
partes a existência de algumas figuras pertencentes a minorias sociais que
apoiam um presidente explicitamente contrário a minorias. Suas identidades
originais foram negadas há gerações.
Órfãos de raízes não se entendem
como indivíduos ameaçados pelo discurso de Bolsonaro, mesmo que a evidência
esteja na cara. E mais do que isso, enxergam no militar reformado uma
referência de sucesso. Querem ser brancos de olhos claros, patriarcas da
família, severos, rigorosos, temidos e, por isso, respeitados. Querem ser
“civilizados” (era essa a desculpa da política de branqueamento de dois séculos
atrás).
Em um país tão rico como o
Brasil, o projeto de construção de uma nação, criado pela monarquia branca
colonizadora, colocou em prática ações para anulação de identidades seguida de
hegemonização de uma cultura tida como superior, como forma de manutenção de um
poder cruel, apesar de disfarçado de boas intenções.
Existe ainda mais um elemento que
deve ser colocado na conta da cultura. Se ela foi historicamente usada para
divulgação de um discurso oficial injusto e desigual, é por ela que as
identidades silenciadas podem se emancipar. Os poderosos sabem bem disso e
exatamente por isso negligenciam a cultura atualmente. Nunca há recursos para
nada, e quando há, ele é questionado. “Um absurdo construir museu com pessoas
morrendo em hospitais”, vão dizer.
Quase todos os países da América
do Sul que passaram por ditaduras nas décadas de 1960-1970 têm hoje museus, mesmo
que pequenos, que expõem a catástrofe e o absurdo dos regimes. O Brasil não
tem. Em São Paulo, existe o Memorial da Resistência, dedicado à preservação das
memórias e da repressão política do Brasil republicano, localizado no antigo
DOPS, mas ainda não é suficiente para dar conta da necessidade urgente que
existe de reflexão e entendimento do que foi o período ditatorial no país.
O funcionamento pleno e eficiente
de instituições assim depende de investimento, recurso para pesquisa e
manutenção. Se isso não aconteceu até hoje, não é agora, com Bolsonaro e todo o
Congresso reacionário eleito, que vai acontecer. E cá entre nós, está bem óbvio
que não há interesse algum do poder vigente em promover uma reflexão sobre a
ditadura no Brasil.
Na sociedade domesticada,
administrada e colonizada, a cultura é uma das ferramentas de emancipação mais
eficientes que existem. É pela cultura que se alerta para as raízes de um povo
e para sua história. É por ela que o pensamento crítico se desenvolve. A
democracia e a igualdade tão clamadas nas ruas (e nas redes sociais) passam
necessariamente pela cultura. A negligência a ela sempre elegerá Bolsonaros na
história. Este era o plano, não era? Deu certo para eles. A reversão da
situação só poderá ser efetivada quando a cultura for tratada e alimentada como
a revolucionária que é.
Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em artes, cultura e
política, doutoranda em História da Arte pela Universidade de Brasília.
Fonte: Le Monde
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