Boa noite a todos e a todas. Entendo a escolha
do meu nome para o Prêmio Vladimir Herzog deste ano como um posicionamento
coletivo de repúdio aos que pregam como proposta de governo a violação dos
direitos humanos, mais do que homenagem a um indivíduo. E agradeço por ter sido
escolhido o instrumento desse gesto. Sinto-me honrado.
48 anos atrás, em 1970, tempos de ditadura
militar, eu e minha mulher partíamos para Londres para o que se chamava então
de exílio voluntário. Levava no bolso uma cartinha de recomendação do Vlado
para o chefe do serviço brasileiro da BBC, onde Vlado havia trabalhado. Levávamos
na bagagem os originais de um livro escrito por mim e pelo jornalista Ítalo
Tronca, denunciando as torturas no Brasil – encomenda do jornalista Luiz
Eduardo Merlino, que o publicou na França com o título “Pau-de-Arara, a
violência militar no Brasil”.
Pouco depois, em julho do ano seguinte, Luiz
Eduardo Merlino foi preso ao retornar ao Brasil e torturado no pau-de-arara, no
Doi-Codi de São Paulo, comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Merlino sofreu ruptura da veia femural e foi deixado à morte. Tinha apenas 23
anos. Era um dos mais brilhantes jornalistas da nossa geração.
Passaram-se quatro anos. No dia 25 de outubro de
1975 parti outra vez para Londres, para um breve estágio numa redação. Ao
desembarcar, recebi a notícia de que Vlado tinha sido assassinado no mesmo
Doi-Codi de São Paulo em que mataram Merlino. Ao visitar amigos na BBC soube
que agentes da embaixada tentavam extrair declarações de que Vlado era
mentalmente instável. Vlado tinha apenas 38 anos. Também foi um dos mais brilhantes
jornalistas de nossa geração.
Em 2008, passados 40 anos da morte de Merlino,
Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado em ação declaratória por sequestro
e tortura, movida pela família de Merlino. Entretanto, oito dias atrás, já como
reflexo dos novos tempos, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou sentença
condenatória da primeira instância. E dentro de três dias, num dos episódios
mais extravagantes de histeria coletiva de nossa história, poderá se eleger
presidente do Brasil uma pessoa que além de desqualificada, em todos os
sentidos da palavra, tem como ídolo esse mesmo o coronel Brilhante Ustra,
responsável pelo assassinato de Merlino e corresponsável com seus colegas de
repressão pela morte de Vlado e outras 433 pessoas, entre as quais 210 desaparecidos
políticos.
Cito artigo de Monica Bolle da revista ÉPOCA do
dia 21 do mês passado.
“Em 2015 Bolsonaro disse em vídeo que Pinochet
fez o que tinha que ser feito… Em 1999 durante entrevista à TV Bandeirantes,
Bolsonaro deu a seguinte declaração: ‘Você só vai mudar, infelizmente, quando
partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime
militar não fez. Matando 30 mil, e começando por FHC’. Em 2016 disse o
candidato em uma entrevista que o erro da ditadura foi torturar e não matar”.
Cito agora, o que essa mente, essa sim doentia,
disse em vídeo tornado público no último domingo: “A faxina agora será
muito grande. Essa turma se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei
de todos nós. Ou vão para fora ou para a cadeia. Esses marginais vermelhos
serão banidos de nossa pátria… Se Lula estava esperando o Haddad ganhar e
assinar o decreto de indulto vou dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia.
Em breve você terá a companhia de Lindbergh Farias para jogar dominó. Aguarde
que o Haddad também chegará aí e não será para visitá-lo não.”
Como explicar o voto de milhões de brasileiros a
um ser repulsivo? Como explicar um fenômeno de dissonância cognitiva de tal
magnitude? Suas causas são certamente muitas e complexas. Mas não é um processo
que nasceu ontem. Vem sendo cevado, ao longo de década, desde que um operário,
um simples operário, liderou as grandes greves que levaram à queda da ditadura
e posteriormente se tornou presidente do Brasil. Atingiu seu ápice quando
Judiciário e imprensa fizeram do combate à corrupção uma guerra sectária. Citei
de propósito artigo da revista ÉPOCA porque o vi com uma das poucas exceções na
postura da mídia, essas décadas todas.
Não me cabe julgar o outro. Não me cabe avaliar
as razões de cada um. Falo de mim, do que eu sinto. O que mais me entristece e
envergonha neste momento não é a postura dos donos do poder econômico, já
esperada, nem a de uma classe média frustrada e enraivecida, nem mesmo a do
povo pobre, açulado pelo discurso fácil do linchamento. O que me acabrunha é a
postura dos que deviam saber melhor, entre os quais, obviamente, nós, os
jornalistas.
Compartilho este prêmio Herzog com os
jornalistas que exerceram e exercem a função mais nobre de nosso ofício, que é
a de defender a liberdade, a vida e os direitos fundamentais do ser humano,
entre os quais o direito à moradia, à alimentação, à educação e à saúde; e
compartilho-o também com o ex-presidente Lula, que à extensão desses direitos
devotou sua carreira política, hoje, mais do que nunca, vítima do ódio coletivo
e do linchamento.
Obrigado.
Fonte: Nocaute, em 6 de novembro de 2018.
Foto: divulgação\internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)