9 de nov. de 2018

O problema não é Bolsonaro, somos nós - Bernardo Carvalho\Folha de São Paulo


 
Até o último minuto, defendeu-se que a incompetência e o despreparo eram garantia de candidato inofensivo

 


"No domingo passado (28), poucas horas antes de Jair Bolsonaro ser eleito presidente, o motorista de uma SUV branca e sua mulher, caricaturas da burguesia paulistana, ao nos verem —meu companheiro, uma amiga e eu— com adesivo pró-Haddad na camisa, saindo de um restaurante nos Jardins, abriram a janela do carro e gritaram: 'Vão pra Venezuela, veados!'.

Calhou de eu estar lendo uma obra seminal da literatura brasileira quando a maioria dos brasileiros, sob o pretexto de evitar que o Brasil se transformasse numa Venezuela, elegeu o único candidato capaz de transformar o Brasil numa Venezuela. O único que prometera, durante a campanha, acabar com a oposição e com a imprensa livre (a que o contradiz e o desafia). 

Quando a maioria dos brasileiros decidiu entregar suas vidas e a de seus filhos à pior escória (não era visível?), em nome da pátria e da economia, negando o bê-á-bá da lógica e da inteligência, para não falar simplesmente em suicídio, no caso de não terem sido enganados, eu estava lendo um clássico da literatura brasileira, onde tudo é inversão: vitória é derrota, justiça é massacre, civilização é barbárie.

Nesse livro sobre uma guerra insensata e irresponsável, escrito por um homem de formação militar e publicado há mais de cem anos, há passagens que, arrancadas do contexto histórico, produziram em mim o efeito de uma projeção macabra. Vejamos.

'Colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente neutral, constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os elementos condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava.'

'As maiorias conscientes, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos que lhes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas —sobretudo nas ruas— individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo.'

'E como o exército se erigia, ilogicamente, (...) em elemento ponderador das agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no, atraíam-no afanosamente e imprudentemente. (...) O fetichismo político exigia manipansos de farda.”
“Se um grande homem pode impor-se a um grande povo por influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas. Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum [“cabeça morta”, resíduo inútil, restolho] das sociedades.'

'A força portentosa da hereditariedade (...) arrasta para os meios mais adiantados —enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura— trogloditas completos. Se o curso normal da civilização em geral os contém, e os domina (...), recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca às vezes a curiosidade dos sociólogos extravagantes ou as pesquisas da psiquiatria, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis, eles surgem e invadem escandalosamente a História.'

Como em 'Os Sertões', de Euclides da Cunha, não cabe agora chorar o leite derramado, mas também não custa chamar à responsabilidade aqueles que nos últimos anos brincaram com a opinião pública, investidos da inconsequência de quem joga uma partida de Banco Imobiliário antes de dormir. 

Tanto faz se o candidato que a maioria dos brasileiros elegeu se revelará um déspota ou um medíocre (os dois não se excluem). Por suas declarações contraditórias e desencontradas, obedecendo a uma tática dissuasiva de morde-e-assopra, com afirmações abjetas seguidas de pedidos de desculpa, temo que só venhamos a descobrir as mudanças radicais sonhadas por um governo que se sustenta na aliança entre neopentecostalismo e ideal militar quando for tarde demais.

O problema não é ele; somos nós. Até o último minuto, jornalistas, juristas, empresários, banqueiros, economistas e políticos insistiram no processo de normalização do inadmissível, chegando a defender que a incompetência e o despreparo eram a garantia de um candidato inofensivo.

Não foram poucos a compartilhar do sofisma. Na verdade, avolumaram-se conforme se aproximavam da consternação (e da vergonha) final. Comportaram-se como se estivessem diante de mais uma banalidade, tomando as mesmas decisões que tomariam em ocasiões normais, sempre pensando no seu quinhão, de olho no bolso, na carreira ou no futuro pessoal. 

Não admira se em menos de quatro anos também estiverem achando (se é que já não acham) que lugar de veado é na Venezuela. Ou em alguma outra representação do inferno."

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