Nos tempos da ditadura
(1981). Minha mãe se foi em 1991 (é, é foda assim). Meu irmão, no colo dela,
faleceu em 2015; superbactéria. Meu pai comigo. Foto: acervo pessoal do
autor.
"Brasilsão de DeusNão estou dizendo que todos os pentecostais pensam como o que descrevi. Sei sobre ao menos um caso de um pastor perseguido por não apoiar Bolsonaro. Existem figuras como Marina Silva — uma pentecostal que tenta equilibrar certo conservadorismo nos costumes com uma pauta progressista (e enfrenta muitas críticas por isso). As pesquisas de voto não dão 100% a Bolsonaro entre pentecostais, ainda que sejam o grupo mais pró-Bolsonaro de todos.
Meu ponto é que o fenômeno da teocracia pentecostal existe. E que o núcleo duro de Bolsonaro não é o fascismo de suspensório e coturno, mas a teocracia de terno ensebado e testa suada, berrando ao microfone. Fascistas são uma gangue. São milhares. Teocratas, um país. Milhões. O ódio aos gays e à cultura negra, a misoginia, o espírito militarista de cruzada, de caça às bruxas, a visão anticientífica do mundo, a desconfiança total da mídia, e, por fim, o autoritarismo teocrático, tudo isso vem sendo pregado há décadas nas igrejas. Para quem vê de fora, a gritaria, entrecortada por música ruim, línguas estranhas e pedição de dinheiro, dá um ar folclórico à coisa. Encobre o fato de haver uma mensagem sendo passada ali muito mais perigosa que “ame Jesus, pague o dízimo”. O Diabo, o inimigo, sempre foi identificado foi com tudo que não é de crente. Agora, o Diabo são os petistas.
A gente não está diante de um Mussolini nem um Hitler. Sequer um Castelo Branco. Mas lembra um general Franco ou os aiatolás do Irã. Bolsonaro é levado ao poder por um nacionalismo teocrático, o 'Deus acima de todos'. E pode esperar a lei contra 'cristofobia', proibindo um texto como este. Deve ser uma das primeiras pautas – mesmo na remotíssima chance dele perder, aliás. Sua bancada deve propor'".
Eu cresci no Brasil de Bolsonaro. A palavra não é fascismo, mas teocracia - Fábio Marton\Vice
Nunca fui petista. Na Era do Amor do primeiro mandato de Lula, lá estava eu criando um blog antipetista. Eu me arrependo de muita babaquice que escrevi, mas ainda me acho liberal em economia. E não pisquei em decidir por Haddad no segundo turno.
Nunca fui petista. Na Era do Amor do primeiro mandato de Lula, lá estava eu criando um blog antipetista. Eu me arrependo de muita babaquice que escrevi, mas ainda me acho liberal em economia. E não pisquei em decidir por Haddad no segundo turno.
Eu tenho a mais profunda e visceral ojeriza por
Bolsonaro e o que ele representa. É como se eu fosse um refugiado de um país
totalitário e essa figura sebosa esteja prometendo trazer o horror em que
cresci para o país em que me exilei. E vejo quem não viveu esse horror o
subestimando.
Meu regime totalitário é o pentecostalismo. Com
ou sem o neo, não faz diferença (demora pra explicar, tá no meu livro). Esse é meu comunismo, esse é meu fascismo —
ainda que a palavra exata seja teocracia, como no Irã ou Arábia Saudita. É de
onde me refugiei, e o que parece prestes a, se não dominar tudo, tornar-se
parte central da ideologia do Estado brasileiro.
Na teocracia pentecostal, o que chamamos de discurso de ódio é só a
linguagem do dia-a-dia, dos almoços em família. Para mim, Bolsonaro não tem
nada de raro, exótico ou aberrante. Eu manjo a figura. Eu já vi antes e tenho
visto desde criancinha. Ele não disse uma palavra que meu pai não teria dito.
O que vai a seguir é um retrato de quem,
comprovadamente, pelas pesquisas, é o núcleo duro da base bolsonarista. São os
que estão com ele por concordarem com o que diz. Quase tudo o que ele diz.
Fé demais
Meu pai é filho de um
pastor da Assembleia de Deus. Na juventude, passou um tempo desviado,
reencontrou a fé nos seus quase 40 anos, quando eu era criança. Na minha enorme
família, dá pra contar nos dedos de uma mão quem não é pentecostal.
O velho votou em Lula em 2002. Os pastores
disseram que era OK. Se arrependeu em 2006, virou virulentamente antipetista.
Tirando exatamente os que não são crentes, a família está em bloco com
Bolsonaro. A vida inteira, meu pai falou que era melhor na ditadura e defendeu
pena de morte, que bandido bom é bandido morto, etc. etc. etc. Votava em Maluf.
Quando eu o descrevia para outras pessoas, perguntavam se não era um militar.
Era dono de uma oficina.
Anos atrás, em tempos que devem ficar na
saudade, visitei a família com uma camisa cor-de-rosa e cachecol. O velho
parece não ter concordado com meu senso de moda. Ouvi dele à mesa que “se
tivesse filho gay, matava”. Eu não dou a mínima para ser chamado de gay. Se
fosse, quem sabe o velho fosse mais humano, obrigado a lidar com isso
(obviamente iria de Bolsonaro do mesmo jeito). Mas então retruquei: “Você acha
que é cristão perseguir alguém por uma coisa que ele nem escolheu?”. E ele
encerrou então com: “Quem é gay tá possuído pela Pomba-Gira” (mais adiante).
Crentes (os que conheci) não são exatamente supremacistas brancos. Em
geral, acreditam que racismo existe, mas não no Brasil. Meu pai sempre fez
piada de preto, e vivia falando em “baiano”. E, se tinha problema com um negro
e particular, a culpa virava de todos. Mas, é claro, já frequentou igreja em
que o pastor era negro — como poderia ser racista?
Quando era criança, ouvi o pastor dizer
jocosamente que “negro é filho do Cão”. Cão (ou Cam) é um dos três filhos de
Noé, amaldiçoado por caçoar de sua bebedeira (Gênesis 9:18). A pele escura
seria uma maldição — essa ouvi bastante. Não sei se ainda dizem.
A parte mais racista na ideologia crente é o
profundo ódio que destinam às religiões afro. São nada menos que os
representantes de Satã na Terra. Quando falam em demônios, eles dão nomes do
Candomblé: Pomba-Gira, Exu Caveira, Exu Tranca Ruas. Isso é absolutamente
central na vida do crente, é parte do apelo, do espírito de guerra, de cruzada,
que torna a coisa tão emocionante. Odiar Satã é odiar o candomblé. Eles
provavelmente têm mais fé no trabalho deixado na esquina que quem o deixou -
para eles, “macumba” sempre pega e só exorcismo cura. (Uma vez até comentei com
o velho: “Você não é cristão, é politeísta. Você acha que deuses africanos são
reais”. Não entendeu nada.)
Meu pai teve dois filhos. Então meu velho nunca
disse o “fraquejei e tive filha”. Mas Bolsonaro nem de longe inventou isso.
Vinte anos antes, eu já ouvia isso quase toda a vez que um crente se
apresentava a outro, falando da família. Era um clichê, um “pavê ou pacumê” de
crente.
Essa parte é um pouco paradoxal. Mulheres tem
uma presença definitivamente maior nas igrejas pentecostais que na Católica. A
maioria hoje admite pastoras. Mesmo as mais tradicionais sempre permitiram que
as irmãs viessem ao púlpito para dar seu testemunho. E, ainda assim, misoginia
é parte integral do pacote.
Nunca fui a um casamento na família sem ouvir "o
homem é a cabeça da mulher" (Efésios 5:23) (ao que se segue “e Deus é a
cabeça do homem”). Na igreja, o “só casando” é absoluto; na prática, a
filosofia do velho era, cito: “segure suas cabritas que meu bode tá solto”. Ele
próprio teve 7 esposas, inclusive algumas não oficiais. O pastor nunca falou
nada. Ele pagava o dízimo em dia.
Quanto a mim, pude trazer namoradas para o quarto (elas não eram
crentes; se fossem, teria sido diferente). Só reclamou uma vez, quando trouxe
um amigo e uma amiga, todo mundo bêbado, e eles dormiram no chão. Ele ficou
escandalizado com o suposto ménage. Mas reclamou mesmo é que a moça era feia.
Imagino como seria se eu fosse mulher. Uma prima
minha foi pega num armário com um rapaz num retiro evangélico. Ouviu “puta” de
todos os bons cristãos que, normalmente, usavam linguagem Sucker&Fucker,
falando “ferrar” no lugar de foder. Inclusive seu pai, que a conduziu pra casa
aos bofetões.
O pai dela, aliás, é o antagonista de meu livro:
o Nadir. Um tio agregado santarrão que batia na mulher e filhas (meu pai nunca
fez algo do gênero, isso tenho em favor dele). O resto da família detestava o
cara, mas nunca tentou algo como uma denúncia. Sua esposa, irmã de meu pai,
fugiu de volta para ele quando resgatada. Na igreja, nunca foi repreendido.
Jesus contra o Mundo
Eu fui criado num mundo
de verdade alternativa. São criacionistas de Terra jovem, acham que o planeta
surgiu há mais ou menos 7500 anos e dinossauros são animais pré-dilúvio.
Tudo no mundo se divide em coisas de Deus ou do
Diabo, numa batalha encarnada não só em pensamentos e desejos, como também
objetos. Coisas podem ter o Diabo nelas. Xuxa teria feito pacto com o Diabo
(virtualmente todas as pessoas de sucesso que não são crentes fizeram). Então
chiclete da Xuxa deixaria as crianças possuídas e, claro, virar disco ao
contrário traz recadinhos de Satã. Fofão era “consagrado” ao Tinhoso e o boneco
vinha com faca dentro (não sei se os crentes são a origem da lenda urbana ou só
aderiram). Até a batata Pringles podia te contaminar capetice. (Esse é um caso
de fake news de crente internacional, com origem conhecida: nos anos 90,
funcionários da Amway, empresa de marketing multinível com donos evangélicos,
passaram a espalhar que o executivo da Procter & Gamble havia se assumido
satanista na televisão).
Crentes também não ouvem música “do mundo” (isto é, dos não crentes,
os que estão irremediavelmente com o Demo). Toda música que não é gospel é do
Coisa Ruim. A maioria dos filmes e livros, se tem algum conteúdo que soe “do
mundo”, é proscrita — Harry Potter, falando em bruxaria de forma positiva, está
na unha do Capeta e quem o ler vai acabar possuído. Seguidores de religiões
afro e espíritas, já dissemos, são mais satanistas que disco do Black Sabbath
tocado no reverso. Católicos também estão com o Diabo, pois “adoram a imagens
de escultura” (Deuterunômio 5:8). Já ouvi muito (mas não é um consenso
universal) que o Papa é o próprio Anticristo. Quando ouvia alguém usar a
palavra “cristão”, queria dizer em primeiro lugar outros pentecostais, raramente
outros protestantes. Jamais católicos. Por definição bíblica, “cristão” exclui
os “adoradores de esculturas”.
A mídia como inimiga é coisa antiga. No mínimo,
desde o incidente do chute na santa (de novo, “adoração de imagens de
escultura”), em 1995. Ou todas as críticas à Igreja Universal. Como Edir Macedo
foi pego contando dinheiro e nunca deu em nada. Toda crítica é conspiração do
“mundo” e os jornalistas provavelmente estão possuídos pelo Exu Trinca Bolas ou
algo do tipo.
E chegamos ponto mais central: política. A visão
pregada nas igrejas é um tipo de absolutismo teocrático.
Razão crítica é o Diabo falando em sua orelha
(eu literalmente imaginava isso quando comecei a duvidar). Meu pai ia numa
igreja (neopentecostal) cujo líder era um óbvio picareta. Andava de BMW e
falava que sua prosperidade era uma bênção de Deus, que podia ser também sua.
Quando eu perguntava por que não viam o óbvio, que ele era um ladrão,
respondiam: “A gente tem a obrigação com Deus de seguir o pastor e dar o
dízimo. Se o pastor estiver roubando, é algo entre ele e Deus”. Não é muito
mistério quem ensinou isso ao rebanho.
Em algum ponto anos 90, assisti a uma pregação
em uma Igreja do Evangelho Quadrangular. O pastor falou sobre a ordem do mundo:
“criança obedece à mãe, a mãe ao pai, o pai ao chefe, o chefe ao patrão, o
patrão ao presidente. Porque Deus, que não deixa uma folha cair da árvore sem
sua permissão, foi quem colocou todos em suas posições”.
Aos 15 anos, já achei que isso parecia fascismo. Há uma mensagem profundamente
antiliberal (no sentido político, não econômico), martelada a cada pregação, de
aniquilação da individualidade, de submissão ao divino e seus representantes,
de demonização de quem está fora e de guerra, com metáforas militares cravadas
nos hinos, contra o Inimigo, o Diabo. Neste momento, o Inimigo é encarnado pelo
mesmo PT que os pastores recomendaram em 2002. Ao pentecostal, não existe
neutro: ou é de Deus ou do Diabo.
Deixei de seguir muita gente nas redes sociais,
mas continuei acompanhando o que minha família postava. Eles são meu ponto de
contato com o mundo bolsonarista nesta eleição. Um dia antes do primeiro turno,
uma prima compartilhou uma montagem falando literalmente que no dia seguinte
começaria o governo de Deus na Terra.
Brasilsão de Deus
Não estou dizendo que
todos os pentecostais pensam como o que descrevi. Sei sobre ao menos um caso de
um pastor perseguido por não apoiar Bolsonaro. Existem figuras como Marina
Silva — uma pentecostal que tenta equilibrar certo conservadorismo nos costumes
com uma pauta progressista (e enfrenta muitas críticas por isso). As pesquisas
de voto não dão 100% a Bolsonaro entre pentecostais, ainda que sejam o grupo
mais pró-Bolsonaro de todos.
Meu ponto é que o fenômeno da teocracia pentecostal existe. E que o
núcleo duro de Bolsonaro não é o fascismo de suspensório e coturno, mas a
teocracia de terno ensebado e testa suada, berrando ao microfone. Fascistas são
uma gangue. São milhares. Teocratas, um país. Milhões. O ódio aos gays e à
cultura negra, a misoginia, o espírito militarista de cruzada, de caça às
bruxas, a visão anticientífica do mundo, a desconfiança total da mídia, e, por
fim, o autoritarismo teocrático, tudo isso vem sendo pregado há décadas nas
igrejas. Para quem vê de fora, a gritaria, entrecortada por música ruim,
línguas estranhas e pedição de dinheiro, dá um ar folclórico à coisa. Encobre o
fato de haver uma mensagem sendo passada ali muito mais perigosa que “ame
Jesus, pague o dízimo”. O Diabo, o inimigo, sempre foi identificado foi com
tudo que não é de crente. Agora, o Diabo são os petistas.
A gente não está diante de um Mussolini nem um
Hitler. Sequer um Castelo Branco. Mas lembra um general Franco ou os aiatolás
do Irã. Bolsonaro é levado ao poder por um nacionalismo teocrático, o “Deus
acima de todos”. E pode esperar a lei contra “cristofobia”, proibindo um texto
como este. Deve ser uma das primeiras pautas – mesmo na remotíssima chance dele
perder, aliás. Sua bancada deve propor.
Bolsonaro se diz católico. Ele se batizou na
(pentecostal) Assembleia de Deus em 2016, o que implica a rejeição da fé
original. Ou ele mentiu ao se batizar, ou mente agora. Talvez nem fé ele tenha.
Talvez ele seja um crápula cínico também nesse ponto. Mas é o candidato oficial
do autêntico pensamento teocrático evangélico brasileiro. Que manteve acesa a
chama do mais radical, virulento e tapado reacionarismo brasileiro enquanto
todo mundo só prestava atenção na sacolinha de dinheiro.
As pessoas ficam procurando o ovo da sucuri em
festinhas Oi! no ABC, na irrisória alt-right tupiniquim, na velharada malufista
e na playboyzada machista do cacete. Esses aderiram. A anaconda enroscada no
Brasil e partindo suas costelas nasceu na igreja da esquina.
Fábio Marton é jornalista, autor de Ímpio: O Evangelho de um Ateu, em traz as memórias de
sua criação fervorosamente pentecostal, sua desconversão na adolescência e os
sérios conflitos com a família que se seguiram.
Foto:
acervo pessoal do autor.
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