25 de nov. de 2018

O irracionalismo fascista - Wilhelm Reich




“Os oponentes do fascismo — democratas liberais, socialistas, comunistas, economistas marxistas e não marxistas, etc. — procuravam a solução do problema na personalidade de Hitler ou nos erros políticos formais dos vários partidos democráticos da Alemanha. Qualquer das soluções significava reduzir o transbordar do flagelo à miopia individual ou à brutalidade de um só homem. Na realidade, Hitler era meramente a expressão da contradição trágica entre o anseio da liberdade e o medo real à liberdade. O fascismo alemão deixou bem claro que não operava com o pensamento e a sabedoria do povo, mas com as suas reações emocionais infantis. Nem o seu programa político nem qualquer das suas muitas e confusas promessas econômicas levaram o fascismo ao poder e o garantiu aí no período seguinte: mas sim, em grande parte, foi o apelo a um sentimento místico e obscuro, a um desejo vago e nebuloso, mas extraordinário e poderoso. Aqueles que não entenderam isso não entenderam o fascismo que é um fenômeno internacional.

[...]Hitler prometeu liquidar a liberdade individual e estabelecer a "liberdade nacional". Milhões de pessoas trocaram entusiasticamente a possibilidade da liberdade individual por uma liberdade ilusória, isto é, uma liberdade através da identificação com uma idéia. Essa liberdade ilusória livrava-as de toda responsabilidade individual. Suspiravam por uma "liberdade" que o führer ia conquistar e garantir para elas: a liberdade de gritar; a liberdade de fugir da verdade para as mentiras de um princípio político; a liberdade de serem sádicos; a liberdade de jactar-se — a despeito da própria nulidade — de serem membros de uma raça superior; a liberdade de atrair as mulheres com os seus uniformes, em vez de fazê-lo por um sentimento forte de humanidade; a liberdade de sacrificar-se por alvos imperialistas, em vez de sacrificar-se pela luta concreta por uma vida melhor, etc.
[...] Brutalidade sádica mais misticismo produzem a mentalidade fascista.”
Wilhelm Reich


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Para contribuir com o debate compartilho um texto de Wilhelm Reich que faz uma interessante discussão sobre o papel da repressão sexual na adesão ao fascismo.



O irracionalismo fascista - Wilhelm Reich

Há amplas evidências para a afirmação de que as revoluções culturais do século vinte são determinadas pela luta da humanidade ao reclamar as leis naturais da sexualidade. Essa luta pela naturalidade e pela harmonia entre a natureza e a cultura reflete - se nas várias formas de anseio místico, de fantasias cósmicas, de sensações "oceânicas" e êxtases religiosos e, sobretudo, no progresso em direção à liberdade sexual. Esse progresso é inconsciente, impregnado de contradições neuróticas e de angústia e se manifesta frequentemente sob as formas que caracterizam os impulsos perversos secundários. Uma humanidade que tem sido forçada, por milhares de anos, a negar a sua lei biológica e que, em conseqüência dessa negação, adquiriu uma segunda natureza - que é uma anti-natureza pode apenas debater-se em exaltação irracional quando quer restaurar a sua função biológica básica e, ao mesmo tempo, teme fazê-lo.

A era autoritária e patriarcal da história humana tentou manter sob controle os impulsos anti-sociais por meio de proibições morais compulsivas. É dessa maneira que o homem civilizado, se na verdade pode ser chamado civilizado, desenvolveu uma estrutura psíquica que consiste em três estratos. Na superfície, usa a máscara artificial do autocontrole, da insincera polidez compulsiva e da pseudo-socialidade. Essa máscara esconde o segundo estrato, o "inconsciente" freudiano, no qual sadismo, avareza, sensualidade, inveja, perversões de toda sorte, etc., são mantidos sob controle, não sendo entretanto privados da mais leve quantidade de energia. Esse segundo estrato é o produto artificial de uma cultura negadora do sexo e, em geral, é sentido conscientemente como um enorme vazio interior e como desolação. Por baixo disso, na profundidade, existem e agem socialidade e a sexualidade naturais, a alegria espontânea no trabalho e a capacidade para o amor. Esse terceiro e mais profundo estrato, que representa o cerne biológico da estrutura humana, é inconsciente e temido. Está em desacordo com todos os aspectos da educação e do controle autoritários. Ao mesmo tempo, é a única esperança real que o homem tem de dominar um dia a miséria social.

Todas as discussões sobre a questão de saber se o homem é bom ou mau, se é um ser social ou anti-social, são passatempos filosóficos. Se o homem é um ser anti-social ou uma massa de protoplasma reagindo de um modo peculiar e irracional depende de que as suas necessidades biológicas básicas estejam em harmonia ou em desacordo com as instituições que ele criou para si. Em vista disso, é impossível libertar o trabalhador da responsabilidade que carrega para a regulagem, ou falta de regulagem, da energia biológica, i.e., para a economia social e individual da sua energia biológica. Uma das suas características mais essenciais veio a ser essa de sentir-se felicíssimo em atirar a sua responsabilidade de si mesmo para cima de algum führer ou político — , pois não se compreende mais e, na verdade, teme a si mesmo e às suas instituições. Está desamparado, é incapaz para a liberdade e suspira pela autoridade porque não pode reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que se lhe diga o que deve fazer, pois é cheio de contradições e não pode confiar em si mesmo.

A culta burguesia européia do século dezenove e do início do século vinte adotou as formas de comportamento moralistas e compulsivas do feudalismo e transformou-as no ideal da conduta humana. Desde a aurora do Iluminismo, os homens começaram a procurar a verdade e a gritar pela liberdade. Enquanto as instituições moralistas compulsivas governaram o homem — externamente como lei coerciva e opinião pública, e internamente como ciência compulsiva —, pôde vigorar uma paz enganosa com irrupções ocasionais do mundo subterrâneo dos impulsos secundários. Durante esse período, os impulsos secundários permaneceram como curiosidades, apenas de interesse psiquiátrico. Manifestavam-se como neuroses sintomáticas, como ações criminosas neuróticas ou como perversões. Quando, entretanto, as revoluções sociais começaram a despertar no povo da Europa um desejo de liberdade e de independência, de igualdade e de autodeterminação, houve também uma urgência interior de libertar o próprio organismo vivo. O iluminismo social, a legislação — trabalho pioneiro no campo da ciência social — e as organizações orientadas para a liberdade empenharam-se em pôr a "liberdade" neste mundo. Após a Primeira Guerra Mundial, que destruiu muitas instituições autoritárias compulsivas, as democracias européias queriam "conduzir o povo à liberdade". Mas esse mundo europeu lutando pela liberdade cometeu um grandíssimo erro de cálculo. Não conseguiu ver o que milhares de anos de supressão das energias vitais no homem haviam produzido por baixo da superfície.

Não conseguiu ver o defeito universal da neurose de caráter.

A séria catástrofe da chaga psíquica, i.e., a catástrofe dá estrutura irracional do caráter humano, varreu vastas partes do mundo sob a forma da vitória das ditaduras. O que o verniz superficial da boa educação e um autocontrole artificial havia refreado durante tanto tempo irrompia agora em ação, completado pelas próprias multidões em luta pela liberdade: nos campos de concentração, na perseguição aos judeus, na aniquilação de toda a decência humana, na destruição sádica e divertida de cidades inteiras por aqueles que só são capazes de sentir a vida quando marcha o seu passo de ganso, como em Guérnica, em 1936; na monstruosa traição às massas por governos autoritários, que alegam representar o interesse do povo; na submersão de dezenas de milhares de jovens que, ingênua e desamparadamente, acreditavam estar servindo a uma idéia; na destruição de bilhões de dólares de trabalho humano: simples fração do que seria suficiente para eliminar a pobreza do mundo inteiro. Em suma, em uma dança de São Vito que voltará sempre, enquanto aqueles que trabalham, e que têm o verdadeiro conhecimento, não conseguirem destruir, dentro de si mesmos e fora de si mesmos, a neurose de massas: a neurose que se intitula "alta política" e floresce sobre o desamparo caracterológico dos cidadãos do mundo.

Em 1928-30, ao tempo da controvérsia com Freud, eu sabia muito pouco sobre o fascismo; quase tão pouco quanto a média dos noruegueses em 1939, ou a média dos americanos em 1940. Foi só em 1930-33 que comecei a conhecê-lo na Alemanha. Senti-me desamparadamente perplexo quando redescobri nele, aos poucos, o assunto da controvérsia com Freud. Gradualmente, compreendi que tinha de ser assim. Em debate na controvérsia estava a avaliação da estrutura humana e dos respectivos papéis desempenhados pelo anseio humano de felicidade e pelo irracionalismo na vida social. No fascismo, tornou-se patente a doença psíquica das massas.

Os oponentes do fascismo — democratas liberais, socialistas, comunistas, economistas marxistas e não marxistas, etc. — procuravam a solução do problema na personalidade de Hitler ou nos erros políticos formais dos vários partidos democráticos da Alemanha. Qualquer das soluções significava reduzir o transbordar do flagelo à miopia individual ou à brutalidade de um só homem. Na realidade, Hitler era meramente a expressão da contradição trágica entre o anseio da liberdade e o medo real à liberdade. O fascismo alemão deixou bem claro que não operava com o pensamento e a sabedoria do povo, mas com as suas reações emocionais infantis. Nem o seu programa político nem qualquer das suas muitas e confusas promessas econômicas levaram o fascismo ao poder e o garantiu aí no período seguinte: mas sim, em grande parte, foi o apelo a um sentimento místico e obscuro, a um desejo vago e nebuloso, mas extraordinário e poderoso. Aqueles que não entenderam isso não entenderam o fascismo que é um fenômeno internacional.

O irracionalismo nas ações das massas do povo alemão pode ser ilustrado pelas seguintes contradições: as massas do povo alemão queriam "liberdade". Hitler prometeu-lhes autoridade, liderança estritamente ditatorial, com a exclusão explícita de qualquer liberdade de expressão. Dezessete milhões, em trinta e um milhões de eleitores, levaram exultantes Hitler ao poder em março de 1933. Aqueles que observavam os acontecimentos com os olhos abertos sabiam que as multidões se sentiam desamparadas e incapazes de assumir a responsabilidade da solução dos problemas sociais caóticos, dentro da antiga estrutura política e do antigo sistema de pensamento. O führer podia fazê-lo, e o faria, por elas.


Hitler prometeu eliminar a discussão democrática de opiniões. Milhões de pessoas congregaram-se em torno dele. Estavam cansadas dessas discussões porque essas discussões haviam sempre ignorado as suas necessidades pessoais diárias, isto é, aquilo que era subjetivamente importante. Não queriam discussões a respeito do "orçamento" ou dos "altos interesses partidários". O que queriam era um conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida. Não podendo consegui-lo atiraram-se às mãos de um guia autoritário, e à ilusória proteção que se lhes prometia.

Hitler prometeu liquidar a liberdade individual e estabelecer a "liberdade nacional". Milhões de pessoas trocaram entusiasticamente a possibilidade da liberdade individual por uma liberdade ilusória, isto é, uma liberdade através da identificação com uma idéia. Essa liberdade ilusória livrava-as de toda responsabilidade individual. Suspiravam por uma "liberdade" que o führer ia conquistar e garantir para elas: a liberdade de gritar; a liberdade de fugir da verdade para as mentiras de um princípio político; a liberdade de serem sádicos; a liberdade de jactar-se — a despeito da própria nulidade — de serem membros de uma raça superior; a liberdade de atrair as mulheres com os seus uniformes, em vez de fazê-lo por um sentimento forte de humanidade; a liberdade de sacrificar-se por alvos imperialistas, em vez de sacrificar-se pela luta concreta por uma vida melhor, etc.

O fato de que milhões de pessoas foram sempre ensinadas a reconhecer uma autoridade política tradicional, em vez de uma autoridade baseada no conhecimento dos fatos, constituiu a base sobre a qual a exigência fascista de obediência pôde agir. Por isso, o fascismo não era uma nova filosofia de vida, como os seus amigos e muitos dos seus inimigos queriam fazer o POVO acreditar; ainda menos tinha qualquer coisa que ver com uma revolução racional contra condições sociais intoleráveis. O fascismo é meramente a extrema conseqüência reacionária de todas as anteriores formas não democráticas de liderança dentro da estrutura do mecanismo social. Mesmo a teoria racial não era nada nova; era apenas a continuação lógica e brutal das velhas teorias da hereditariedade, e da degeneração. Por isso, foram precisamente os psiquiatras orientados para a hereditariedade e os eugenicistas da velha escola que se mostraram tão acessíveis à ditadura.

O que era novo no movimento fascista das massas era o fato de que a extrema reação política conseguiu usar os profundos desejos de liberdade das multidões. Um anseio intenso de liberdade por parte das massas mais o medo à responsabilidade que a liberdade acarreta produzem a mentalidade fascista, quer esse desejo e esse medo se encontrem em um fascista, ou em um democrata. Novo no fascismo era que as massas populares asseguraram e completaram a sua própria submissão. A necessidade de uma autoridade provou que era mais forte que a vontade de ser livre.

Hitler prometeu a supremacia do homem. As mulheres seriam relegadas para o plano da casa e da cozinha; ser-lhes-ia negada a possibilidade de independência econômica e seriam excluídas do processo de formação da vida social. As mulheres, cuja liberdade pessoal havia sido esmagada durante séculos, que haviam desenvolvido um medo especialmente forte de levar uma existência independente, foram as primeiras a aclamá-lo.

Hitler prometeu a destruição das organizações democráticas socialistas e burguesas. Milhões de pessoas, democratas, socialistas e burguesas, congregaram-se em torno dele porque, embora as suas organizações falassem muito a respeito de liberdade, nunca haviam sequer mencionado o difícil problema da ânsia humana de autoridade e do desamparo das massas na prática política. As massas populares haviam sido desapontadas pela atitude irresoluta das velhas instituições democráticas. O desapontamento por parte de milhões de pessoas quanto às organizações liberais mais a crise econômica mais um irresistível desejo de liberdade produzem a mentalidade fascista, i.e., o desejo de entregar-se a uma figura autoritária de pai.

Hitler prometeu uma guerra sem quartel contra o controle da natalidade e o movimento de reforma sexual. Em a Alemanha compreendia umas quinhentas mil pessoas membros de organizações que lutavam por uma reforma sexual racionais. Mas essas organizações sempre recuavam ante o elemento central do problema — o desejo de felicidade sexual. Anos de trabalho entre as massas populares ensinaram-me que é precisamente esse o problema que querem que se discuta. Desapontavam-se quando lhes faziam palestras eruditas sobre a demografia em vez de ensinar-lhes como deveriam educar 03 filhos para serem vitalmente ativos; como deveriam os adolescentes enfrentar as suas necessidades sexuais e econômicas; e como deveriam as pessoas casadas tratar os seus conflitos típicos. As massas populares pareciam sentir que as sugestões a respeito das "técnicas de amor" tais como as que lhes dava Van de Velde, embora fossem um bom negócio, não tinham realmente nada que ver com o que procuravam, nem eram atraentes. E aconteceu que as desapontadas massas populares congregaram-se em torno de Hitler, que — embora misticamente — recorria às suas forcas vitais. A pregação a respeito da liberdade conduz ao fascismo a menos que se faça um esforço decidido e consistente para inculcar nas multidões uma vontade firme de assumir a responsabilidade da vida de todos os dias; e a menos que haja, uma luta igualmente decidida e consistente para estabelecer as precondições sociais dessa responsabilidade.

Durante décadas, a ciência alemã estivera lutando pela separação do conceito de sexualidade do conceito de procriação. Essa luta não conseguira dar resultados para as massas trabalhadoras, porque era de natureza puramente acadêmica e, portanto, sem efeito social. Agora Hitler chegava e prometia tornar a idéia da procriação, e não a felicidade no amor, o princípio básico do seu programa cultural. Educados para envergonhar-se de chamar as coisas pelo nome, obrigados por todas as facetas do sistema social a dizer "procriação eugênica superior" quando queriam significar "felicidade no amor", as massas congregaram-se em torno de Hitler, pois ele juntara ao velho conceito uma emoção forte, embora irracional. Conceitos reacionários mais excitações revolucionárias produzem sentimentos fascistas. A Igreja havia pregado "felicidade no outro mundo" e, valendo-se do conceito do pecado, implantara profundamente na estrutura humana uma desamparada dependência de uma figura sobrenatural e onipotente! Mas a crise econômica mundial entre 1929 e 1933 defrontou as massas populares com amarga pobreza mundial. Não lhes era nem social nem individualmente possível dominar essa pobreza por si mesmos. Hitler apareceu e declarou ser um führer mundial, onipontente e onisciente, enviado por Deus, que poderia afastar essa miséria do mundo. A cena havia sido preparada para dirigir para ele novas multidões de pessoas encerradas entre o seu próprio desamparo individual e a satisfação real mínima que lhes proporcionava a idéia de uma felicidade no outro mundo. Por isso, um deus terreno que os fazia gritar — "Heil" — com toda a sua força tinha maior significado emocional do que um Deus que nunca podiam ver e que não os ajudava mais, nem mesmo emocionalmente. Brutalidade sádica mais misticismo produzem a mentalidade fascista.

Durante anos, a Alemanha havia lutado nas suas escolas e universidades pelo princípio de um sistema escolar liberal, pela atividade espontânea e pela autodeterminação dos estudantes. Na ampla esfera da educação, as autoridades democráticas responsáveis agarraram-se ao princípio autoritário, que instilava no estudante um medo à autoridade e, ao mesmo tempo, o incitava a entregar-se a formas irracionais de rebelião. As organizações educacionais liberais não desfrutavam de nenhuma proteção social. Pelo contrário, eram totalmente dependentes do capital privado, além de estarem expostas a graves perigos. Não era de surpreender, portanto, que esses movimentos incipientes em direção à reestruturação não compulsiva das massas populares permanecessem reduzidos como uma gota no oceano. A juventude congregava-se em torno de Hitler, aos milhares. Ele não lhes impunha qualquer responsabilidade; apenas construiu sobre as suas estruturas, que haviam sido previamente moldadas pelas famílias autoritárias. Hitler estava vitorioso no movimento da juventude porque a sociedade democrática não havia feito tudo o que fora possível para educar o jovem no sentido de levar uma vida responsável e livre.


No lugar da atividade espontânea, Hitler prometeu o princípio da disciplina compulsiva e do trabalho obrigatório. Vários milhões de trabalhadores e empregados alemães votaram em Hitler. As instituições democráticas não apenas não haviam conseguido enfrentar o desemprego mas, quando ele sobreveio, se haviam mostrado claramente temerosas de ensinar as multidões trabalhadoras, a assumir a responsabilidade pela realização do seu trabalho. Educados para não entender nada a respeito do processo do trabalho (impedidos, na verdade de entendê-lo), acostumados a ser excluídos do controle da produção, e a receber, apenas, o seu salário, esses milhões de trabalhadores e empregados podiam aceitar facilmente o velho princípio, de forma intensificada. Podiam agora identificar-se com "o estado" e "a nação", que eram "grandes e fortes". Hitler declarou abertamente nos seus escritos e nos seus discursos que, porque as massas populares eram infantis e femininas, apenas repetiam o que era incutido nelas. Milhões de pessoas o aclamaram, pois aí estava um homem que queria protegê-las.

Hitler exigiu que toda a ciência fosse subordinada ao conceito de "raça". Extensos ramos da ciência alemã submeteram-se à sua exigência, pois a teoria da raça estava enraizada na teoria metafísica da hereditariedade. Essa é a teoria que, com os seus conceitos de "substâncias herdadas" e "predisposições", havia repetidamente permitido à ciência fugir à responsabilidade de entender as funções da vida no seu estado de desenvolvimento e de compreender realmente a origem social do comportamento humano. Acreditava-se que, ao considerar o câncer, a neurose ou a psicose como hereditários, se afirmava algo da maior importância. A teoria fascista da raça é apenas uma extensão das convenientes teorias da hereditariedade.

Dificilmente podia haver outro dogma do fascismo alemão tão capaz de inspirar milhões de pessoas quanto o do "despertar do sangue alemão" e da sua "pureza". A pureza do sangue alemão significava livrar-se da "sífilis" e da "contaminação judia". Em cada um de nós, e em todos nós, há um profundo medo às doenças venéreas; é conseqüência da angústia genital da infância. Por isso, é compreensível que multidões de pessoas se congregassem em torno de Hitler, que lhes prometia a "pureza do sangue". Todo ser humano percebe em si mesmo aquilo que se chama de "sentimentos oceânicos ou cósmicos". A seca ciência acadêmica sentia-se orgulhosa demais para ocupar-se com semelhante misticismo. Esse anseio cósmico ou oceânico que as pessoas sentem não é senão a expressão do seu desejo orgástico pela vida. Hitler fez um apelo a esse desejo, e é por essa razão que as multidões o seguiram, e não aos secos racionalistas, que tentavam sufocar esses vagos sentimentos de vida com estatísticas econômicas.

Desde os tempos antigos, a "preservação da família" fora, na Europa, um abstrato chavão, por trás do qual se escondiam os pensamentos e ações mais reacionários. Alguém que criticasse a família autoritária compulsiva, e a distinguisse do relacionamento natural de amor entre os filhos e os pais, era um "inimigo da pátria", um "destruidor da sagrada instituição da família", um anarquista. A medida que a Alemanha se foi tornando cada vez mais industrializada, os laços familiais entraram em agudo conflito com essa industrialização coletiva. Não havia uma só organização oficial que ousasse apontar aquilo que era doentio na família, e resolver o problema da repressão das crianças pelos pais, dos ódios familiais, etc. A família alemã autoritária típica, particularmente no campo e nas cidades pequenas, incubava a mentalidade fascista, aos milhões. Essas famílias moldavam a criança de acordo com o modelo do dever compulsivo, da renúncia, da obediência absoluta à autoridade, que Hitler sabia como explorar tão brilhantemente. Apoiando a "preservação da família" e, ao mesmo tempo, afastando o jovem — da família para os grupos da juventude —, o fascismo levava em consideração tanto os laços familiais quanto a rebelião contra a família. Salientando a identidade emocional entre "família", "nação" e "estado", fascismo tornou possível uma transirão suave da estrutura da família para a estrutura do estado fascista. É verdade que nem um só problema da família, nem as necessidades reais da nação eram resolvidos por essa transição: mas esta permitia a milhões de pessoas transferirem os seus latos da família compulsiva para a "família" maior, a "nação". O fundamento estrutural dessa transferência havia sido bem preparado durante milhares de anos. A "Mãe Alemanha" e o "Deus Pai Hitler" tornaram-se os símbolos de emoções infantis profundamente arraigadas. Identificados com a "forte e única nação alemã", cada cidadão, por mais estranho ou miserável que se sentisse, podia significar algo, mesmo que fosse de uma forma ilusória. Finalmente, o interesse da "raça" era capaz de absorver e de dissimular as fontes soltas da sexualidade. Adolescentes podiam entregar-se agora às relações sexuais se alegassem estar propagando filhos no interesse do aperfeiçoamento racial.

Não apenas as forças vitais naturais do homem permaneciam soterradas, era agora obrigado a expressar-se de maneira muito mais disfarçada que antes. Como resultado dessa "revolução do irracional", houve na Alemanha mais suicídios e miséria higiênico-social do que nunca. A morte de dezenas de milhares de criaturas na guerra em honra da raça alemã constitui a apoteose da dança das feiticeiras.

A perseguição aos judeus fazia par te integrante dos anseios de "pureza do sangue", i.e., de purificarão dos pecados. Os judeus tentaram explicar ou provar que também tinham códigos estritamente morais, que também eram nacionalistas, que também eram "alemães". Antropólogos que se opunham a Hitler invocaram as medidas cranianas numa tentativa de provar que os judeus não constituíam uma raça inferior. Cristãos e historiadores tentaram explicar que Jesus era judeu. Na perseguição aos judeus, entretanto, não havia lugar para as questões racionais, i.e., não se tratava de saber se os judeus também eram decentes, se constituíam uma raça inferior, ou se tinham índices cranianos aceitáveis. Esses aspectos não interessavam absolutamente. Era outra coisa; inteiramente. Foi nesse ponto preciso que a consistência e a exatidão do pensamento econômico-sexual provaram a sua validez.

Quando o fascista diz "judeu", designa uma sensação irracional definida. Irracionalmente, o "judeu" representa o "fazedor de dinheiro", o "usurário", o "capitalista". Isso foi confirmado pelo tratamento psicológico de profundidade de judeus e não judeus, igualmente. Em nível mais profundo, o conceito de judeu significa "sujo", "sensual", "bestialmente sexual", mas também "Shylock", "castrador", "assassino". Como o medo à sexualidade natural é tão profundamente enraizado como o horror à sexualidade perversa, é facilmente compreensível que a perseguição aos judeus, habilmente executada, excitasse os mais profundos mecanismos de defesa sexual de um povo educado de modo sexualmente aberrante. Lançando mão do conceito "judeu" era possível incorporar plenamente a atitude anti-sexual e anticapitalista das massas populares ao mecanismo do dilúvio fascista. O anseio inconsciente do prazer sexual na vida e da pureza sexual, unido ao medo da sexualidade natural e ao horror da sexualidade perversa, produz o fascismo e o sadismo anti-semita. Francês para o alemão tem o mesmo significado que judeu e negro têm para o inglês inconscientemente fascista. Judeu, francês e negro são palavras que significam “sexualmente sensuais”.

Esses são os fatores inconscientes que permitiram que o moderno propagandista sexual do século vinte, o psicopata sexual e pervertido criminoso Julius Streicher, pusesse o seu Der Stürmer nas mãos de milhões de adolescentes e adultos alemães. Nas páginas do Der Stürmer, mais que em qualquer outra parte, ficou claro que a higiene sexual deixara de ser um problema das sociedades médicas; tornara-se muito mais uma questão de decisiva significação social. Os seguintes exemplos da imaginação de Streicher serão suficientes para esclarecer esse ponto. Os exemplos são de edições do Stürmer publicadas em 1934:

Helmut Daube, vinte anos, havia justamente completado o seu primeiro ano na universidade. Pelas duas da manhã voltou para casa. Às cinco da manhã, os pais o encontraram morto na rua, diante do edifício de apartamentos onde moravam. A garganta lhe fora cortada até a nuca, e o pênis fora retirado. Não havia sangue. As mãos do infeliz garoto haviam sido cortadas. Fora apunhalado várias vezes no abdômen.

Um dia, o velho judeu lançou-se sobre a desprevenida garota não-judia no sótão, violou-a e insultou-a. Depois, entrava sorrateiramente no quarto dela, cuja porta não tinha trinco.

Um casal jovem foi dar um passeio fora de Paderborne encontrou no caminho um pedaço de carne. Examinando-o, descobriram horrorizados que se tratava de uma parte genital habilmente removida de um corpo feminino.

O judeu havia cortado o corpo em pedaços de uma libra. Junto com o pai, espalhara os pedaços por toda a área, e esses pedaços foram encontrados num bosquezinho, nos campos, nos córregos, numa lagoa, num riacho, num cano de esgoto e na fossa negra. Os seios cortados foram encontrados no palheiro.

Enquanto Moisés estrangulava, a criança com um lenço, Samuel lhe cortou um pedaço do rosto com uma faca. Os outros recolhiam o sangue em uma bacia e ao mesmo tempo espetavam a vítima nua com agulhas...

A resistência da mulher não conseguia esfriar-lhe a concupiscência. Pelo contrário. Ele tentou fechar a janela para impedir que os vizinhos olhassem para dentro. Então, tocou novamente a mulher de modo vil, de um modo tipicamente judeu... Tentava insistentemente convencer a mulher a não ser tão melindrosa. Fechou todas as portas e janelas. As suas palavras e os seus atos se tornaram cada vez mais vergonhosos. Foi encurralando cada vez mais a vítima, cujos protestos eram todos vãos. Ele ria, até, das suas tentativas de gritar por socorro. Empurrava-a cada vez mais para cima da cama. Verbalmente, agredia-a com as palavras mais vis e mais obscenas. E então, lançou-se como um tigre sobre o corpo da mulher e completou o seu trabalho diabólico.

Até aqui, muitos leitores desse diário acreditavam, sem dúvida, que se estava exagerando ao falar da chaga psíquica. Posso apenas garantir-lhes que não estou introduzindo com leviandade esse conceito, nem simplesmente como uma sutil figura de linguagem. Levo-o muito a sério. Durante os últimos sete anos, o Stürmer não apenas confirmou efetivamente um milhão de vezes a angústia de castração genital na população alemã e noutras populações que o leram. Além disso, excitou e nutriu as fantasias perversas que dormem em todos nós. Após a queda dos principais perpetuadores da chaga psíquica na Europa, restará saber como lidar com o problema. Não é um problema alemão, mas um problema internacional, pois o desejo de amor e o medo à genitalidade são fatos internacionais. Na Escandinávia fui procurado por adolescentes fascistas que haviam conseguido preservar um traço de sentimento natural pela vida; perguntaram-me que atitude deviam assumir em relação a Streicher, à teoria racial e a outras "sutilezas". Havia algo que não estava muito certo, disseram. Resumi as medidas necessárias em um sumário muito curto, que desejo inserir aqui:

O que é que deve ser feito?

Em geral: Essa corrupção reacionária deve ser combatida por uma explicação bem organizada e objetivamente correta das diferenças entre sexualidade doente e sexualidade sã. Toda pessoa comum entenderá essa diferença porque a sente instintivamente. Toda pessoa comum se envergonha das suas idéias perversas e patológicas a respeito do sexo, e deseja explicação, ajuda e satisfação sexual natural.

Temos de explicar e ajudar!


1)      Reunir todo o material que mostre imediatamente o caráter pornográfico do streicherismo a qualquer pessoa de bom senso. Publicar esse material em folhetos. O interesse sexual são das massas deve ser despertado, tornado consciente e defendido.
2)     Reunir e publicar todo material que mostre à população que Streicher e os seus cúmplices são psicopatas e estão cometendo crimes graves contra a saúde da nação! Há Streichers por toda parte neste mundo.

3)     Expor o segredo da influência de Streicher sobre as massas: ele provoca fantasias patológicas. O povo comprará de boa vontade, e lerá, um material educacional bom.

4)     A sexualidade patológica que constitui o campo da teoria racial de Hitler e dos crimes de Streicher pode ser combatida mais eficazmente mostrando-se ao povo os processos e os modos sãos do comportamento na vida sexual.

O povo compreenderá imediatamente essa diferença e demonstrará um interesse ansioso por ela, uma vez que tenha entendido o que é que realmente quer e tem medo de dizer; entre outras coisas:

a)     A sexualidade sã e satisfatória pressupõe incondicionalmente a possibilidade de ficar sozinho e tranqüilo com o companheiro amado. Assim, é necessário proporcionar aposentos isolados a todos os que estejam precisando deles, inclusive aos jovens.
b)     A satisfação sexual não é idêntica à procriação. A pessoa sã têm relações sexuais mais ou menos umas três ou quatro mil vezes durante a sua vida, mas em média apenas dois ou três filhos. Anticoncepcionais são absolutamente necessários para a saúde sexual.
c)      Por causa da sua educação sexualmente defeituosa, a grande maioria dos homens e mulheres é sexualmente perturbada, i.e., permanece insatisfeita durante as relações sexuais. Assim, é necessário instalar um número suficiente de clínicas para tratar as perturbações sexuais. Uma educação sexual que seja sexualmente afirmativa e racional é imprescindível.

d)     O jovem se torna doente pelos seus conflitos decorrentes da masturbação. Só a satisfação que é livre de sentimentos de culpa, não é prejudicial à saúde do indivíduo. A abstinência sexual prolongada é definitivamente nociva. As fantasias patológicas desaparecem apenas com a sexualidade satisfatória.

Lute por esse direito!

Sei que os folhetos e os esclarecimentos sozinhos não são o bastante. O que é necessário é um trabalho geral, socialmente protegido, sobre a estrutura humana que produz a chaga psíquica e torna possível aos psicopatas agirem como ditadores e modernos propagandistas sexuais, que envenenam a vida de todos nós. Em suma, o que é necessário é efetivar a liberação e a proteção social da sexualidade natural das massas populares.

Em 1930, a sexualidade humana era uma Cinderela social, um assunto discutido por discutíveis grupos de reforma. Agora, em 1940, tornou-se um problema social fundamental. É certo que o fascismo obteve sucesso na exploração irracional dos desejos sexuais de vida de milhões de pessoas e que, tendo-o feito, criou o caos; então também deve ser certo que as perversões que permitiu que se soltassem podem ser dominadas através da solução universal racional do problema sexual.

Na sua profusão de problemas de higiene mental, os acontecimentos na Europa, entre 1930 e 1940, confirmaram a posição que eu tomara nas minhas discussões com Freud. O que havia de mais doloroso nessa confirmação era a impotência que eu sentia e a convicção que tinha de que a ciência natural estava muito longe de compreender o que, neste livro, chamo "cerne biológico" da estrutura do caráter.


De modo geral, como indivíduos, como médicos e também como professores, a nossa posição no que diz respeito aos desvios biológicos da vida é tão desvalida quanto era a posição dos homens da Idade Média em relação às doenças infecciosas. Ao mesmo tempo, temos a certeza de que a experiência da chaga fascista mobilizará as forças mundiais necessárias para a solução desse problema da civilização.

Os fascistas afirmam estar efetuando a "revolução biológica". A verdade é que o fascismo evidencia totalmente o fato de que a função vital no homem se tornou neurótica. Do ângulo das populações que o seguem, um desejo inflexível de vida está, sem dúvida, em jogo no fascismo. Mas as formas pelas quais esse desejo de vida se tem manifestado revelam claramente demais as conseqüências de uma antiga escravidão psíquica. No fascismo, apenas os impulsos perversos vieram à tona. O mundo pós-fascista efetuará a revolução biológica que o fascismo não realizou, mas tornou necessária.

Os capítulos seguintes deste livro tratam das funções do "cerne biológico". A sua compreensão científica e o seu domínio social serão o resultado de um trabalho racional, de uma ciência atuante e da função natural do amor; o resultado de esforços coletivos e genuinamente democráticos. O objetivo desses esforços coletivos é a felicidade terrena, material e sexual de milhões de pessoas.

Acesse o PDF do Livro "A Função do Orgasmo" de Wilhelm Reiche AQUI
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