30 de jul. de 2017

Lima Barreto e Diva Guimarães: palavras contra grilhões

 

“Não é só a morte que iguala a gente. 
O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa”.

Lima Barreto


28 de jul. de 2017

Quem é Mayara Amaral? - Pauliane Amaral









Guitarra

“A maior pena que tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas saber quem me mata”

Cecília Meireles




Minha irmã caçula, mulher, violonista com mestrado pela UFG e um dissertação incrível sobre mulheres compositoras para violão. Desde ontem Mayara Amaral também é vítima de uma violência que parece cada vez mais banal na nossa sociedade. Crime de ódio contra as mulheres, contra um gênero considerado frágil e, para alguns, inferior e digno de ter sua vida tirada apenas por ser jovem, talentosa, bonita... por ser mulher.

Mais uma vez a sociedade falhou e uma mulher, uma jovem professora de música de 27 anos, foi outra vítima da barbárie de homens que não podem nem serem considerados humanos. Foram três, três homens contra uma jovem mulher.

Um deles, Luis Alberto Bastos Barbosa, 29 anos, por quem ela estava cegamente apaixonada, atraiu-a para um motel, levando consigo um martelo na mochila. Lá, ele encontrou um de seus comparsas.

Em uma das matérias que noticiaram, o crime os suspeitos dizem que mantiveram relações sexuais com minha irmã com o consentimento dela. Para que o martelo então, se era consentido?

Estranhamente, nenhuma das matérias aparece a palavra ESTUPRO, apesar de todas as evidências.

Às vezes tenho a sensação de que setores da imprensa estão tomando como verdade a palavra desses assassinos. O tratamento que dão ao caso me indigna profundamente.

Quando escrevem que Mayara era a "mulher achada carbonizada" que foi ensaiar com a banda, ela está em uma foto como uma menina. Quando a suspeita envolvia "namorado" hiper-sexualizam a imagem dela. Quando a notícia fala que a cena do crime é um motel, minha irmã aparece vulnerável, molhada na praia.

Quando falam da inspiração de Mayara, associam-na com a história do pai e avô e a foto muda: é ela com o violão, porém com sua face cortada. Esse tipo de tratamento não representa quem minha irmã foi. Isso é desumanização. Por favor, tenham cuidado, colegas jornalistas.

Para nossa tristeza, grande parte das notícias dão bastante voz aos assassinos e fazem coro à falsa ideia de que os acusados só queriam roubar um carro. Um carro que foi vendido por mil reais. Mil reais. Um Gol quadrado, ano 1992. Se eles quisessem só roubá-la, não precisariam atraí-la para um motel.

Um dos assassinos, Luís, de família rica, vai tentar se livrar de uma condenação alegando privação momentânea dos sentidos por conta de uso de drogas. Não bastando matar a minha irmã, da forma que fizeram, agora querem destruir sua reputação. Eis a versão do monstro: minha irmã consentiu em ser violada por eles, elas decidiram roubá-la, ela reagiu fisicamente e eles, sob o efeito de drogas, golpearam-na com o martelo – e ela morreu por acidente. Pela memória da minha irmã, e pela de outras mulheres que passaram por esta mesma violência, não propaguem essa mentira! Confio que a Polícia e o Ministério Público não aceitarão esta narrativa covarde, e peço a solidariedade e vigilância de todos para que a justiça seja feita.

Na delegacia disseram à minha mãe que uma outra jovem já havia registrado uma denúncia contra Luís por tentativa de abuso sexual... Investiguem! Se essa informação proceder, este é mais um crime pelo qual ele deve responder. E uma prova de como a justiça tem tratado as queixas feitas por nós, mulheres. Se naquela ocasião ele tivesse sido punido exemplarmente, talvez minha irmã não tivesse sofrido este destino.

Foi tudo premeditado: ela foi estuprada por dois desumanos. 

O terceiro comparsa – não menos monstruoso – ajudou a levar o corpo da minha irmã para um lugar ermo, e lá atearam fogo nela, como se a brutalidade das marteladas no crânio já não fosse crueldade demais. Minha irmã foi encontrada com o corpo ainda em chamas, apenas de calcinha e uma de suas mãos foi a única parte de seu corpo que sobrou para que meu pai fizesse o reconhecimento no IML. “Parece que ela fazia uma nota com os dedos”, disse meu pai pelo telefone.

A confirmação veio logo depois, com o resultado do exame de DNA. Era ela mesmo e eu gritei um choro sufocado.

Eu vou dedicar o meu luto à memória da minha irmã, e a não permitir que ela seja vilipendiada pela versão imunda de seus algozes. Como tantas outras vítimas de violência, a Mayara merece JUSTIÇA – não que isso vá diminuir nossa dor, mas porque só isso pode ajudar a curar uma sociedade doente, e a proteger outras mulheres do mesmo destino.

Pauliane Amaral
Goiânia, 27 de julho de 2017

Fotos: capturadas no Facebook de Pauliane Amaral

24 de jul. de 2017

O caráter da repressão (1972) - Antônio Cândido



“Já para Rafael, o cara do Pinho Sol, a realidade é a que foi expressa num muro da comunidade onde ele tirou foto, no curto período em que cumpriu pena em regime aberto (com tornozeleira):
— O Estado te esmaga de cima para baixo.
Por conta desta foto, exposta em rede social, passou dez dias em solitária”.


Balzac, que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado.

O romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.

A polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” — ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.

Para este fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com o seu exército impressentido de espiões e alcaguetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente uma outra atividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac, e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.

Para obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O Homem que Ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara — e os remete à função repressora.

Daí o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo tempo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
Dostoievski percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência — a sociedade entrando na casa de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio Porfiriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo.

Mas foi Kafka n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.

Para entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.

A polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade, discrição — dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em bisbilhotice trágica.

Daí uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de fato era outro, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correto dizer que o outro é o suscitado pela polícia. O outro, com a sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões onde tinha sido mais ou menos trancada.

De fato, a polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo — em todos os seus graus e modalidades.

Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.

O delegado, que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que provar o mecanismo autodominante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.

Chegado à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando legalmente corno possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde bem suspeitamos.

A força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambiguidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
Tudo nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinquente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.

O fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.
“— Sou hidráulico”, responde ele.

O delegado esbraveja:

” — Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”.

E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: “— Sim, sou encanador”’. (Cito de memória porque não tenho o roteiro.)

Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal “encanador” (stagnaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial o reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, lira para fora a sua verdade indesejada. E, no fim, é como se ele dissesse:

” — Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador. Estou reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro” .

Mas, na verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efetuou um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou seu diário:

“Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”.

Fonte: Texto publicado em "Opinião, em janeiro de 1972 e recuperado por Outras Palavras.