João David Cavallazzi Mendonça
A lei contra castigos físicos aprovada pela Câmara dos Deputados nesta semana tem provocado um intenso debate em muitos setores da sociedade. De maneira especial, o tema vem sendo negativamente repercutido entre alguns grupos cristãos, pois a lei estaria indo de encontro à orientação biblica no que se refere à educação infantil.
Os principais argumentos utilizados por alguns cristãos e líderes religiosos para criticar a lei estão baseados principalmente em textos do Antigo Testamento, em especial o livro de Provérbios, que cita várias vezes o uso da “vara” como medida educativa, dando a entender que bater nos filhos tem o aval divino.
O problema é que qualquer texto bíblico deve ser analisado à luz de seu contexto histórico, cultural e social. A tradição teológica contextual nos alerta para o risco de adotar interpretações legalistas e desconectadas de seu contexto imediato. Por esta razão encontramos muitas leis no Antigo Testamento que não são cumpridas hoje, pois sabe-se que tais leis faziam sentido apenas naquele momento, para aquela sociedade.
Exemplos? sacerdotes não podiam raspar a cabeça nem aparar as pontas da barba. Pessoas com deficiência física que não podiam oferecer sacrifícios a Deus por serem consideradas “defeituosas”. Comer carne de porco era proibido, assim como frutos do mar. Homens podiam vender suas filhas como escravas, mulheres não podiam pedir divórcio, e em caso de adultério seriam apedrejadas até a morte.
Enfim, eram leis que hoje aos nossos olhos são vistas como estranhas ou sinais de barbárie, mas estavam simplesmente de acordo com a mentalidade daquele tempo. Nesse contexto, usar uma vara para “corrigir” uma criança era tão aceitável quanto bater num escravo ou apedrejar uma mulher adúltera.
É este tipo de análise contextual que faz com que os cristãos de hoje não saiam por aí apedrejando mulheres, açoitando empregados, ou abstendo-se de um delicioso prato de frutos do mar.
Portanto, se cremos que o uso da vara vale para hoje porque é mandamento divino, também temos que lutar pela volta de práticas como tortura, açoites e apedrejamentos.
Além disso, ver a aplicação de castigo físico a uma criança como sendo lei de Deus é desconsiderar o principal salto teológico da cristandade: o advento de Cristo. O nascimento de Jesus foi o marco que instituiu uma nova época, uma Nova Aliança, um Novo Testamento. Uma nova mentalidade, em que a lei dura e severa é substituída pela Graça de Deus, sobre cuja compreensão traz profundas transformações na maneira de se relacionar com Deus, com o próximo, com a humanidade e com a natureza. Um novo tempo não mais regido exclusivamente pela Lei, mas pela Graça. Não mais pelo castigo, mas pelo amor.
Neste Novo Testamento, as relações familiares e sociais não são mais estabelecidas a partir de um viés de violência, mas sim de um referencial de amor e respeito mútuo. Não se fala mais em “vara da disciplina”, mas na disciplina do amor.
“E vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do Senhor” (Efésios 4:4)
“Disciplina" não é sinônimo de “punição física”. Há muitas maneiras de se disciplinar uma criança sem erguer uma vara, um chinelo ou uma mão sobre ela. “Dar limites” não é sinônimo de “bater”.
Negar-se a usar a política da palmada não é de maneira alguma negar-se a educar, a disciplinar ou a impor limites tão necessários na formação da criança. Nem tampouco é colocar em risco a posição de autoridade parental. É, ao contrário, a tentativa de constituir uma configuração relacional que seja diferente do modo vigente em nosso mundo já tão repleto de maus tratos, opressão e injustiça. É principalmente uma forma de “não se conformar com este século, mas transformar-se pela renovação da nossa mente” (Romanos 12:2).
Os cristãos que se orientam pelas Sagradas Escrituras possuem um genuíno desejo de serem diferentes do mundo que aí está. Precisamos, portanto, lembrar que bater nos filhos é igualar-se a este mundo, pois a cultura da palmada ainda continua a ser o padrão secular na educação infantil. Usar a punição física nos coloca na mesma fôrma social que tanto criticamos.
É fácil? Não, não é nada fácil.
Certamente o caminho alternativo do amor é muito mais difícil, exige dos pais muito mais tempo, paciência, sabedoria, auto-controle, e especialmente o exercício de seus próprios limites para não “perder as estribeiras”. Afinal, como um pai pode ensinar limites a um filho, se ele mesmo não consegue controlar os seus próprios limites no momento da fúria?
Eu não tenho dúvidas de que seria muito interessante se a comunidade cristã, em especial a evangélica, à qual também pertenço, pudesse se deslocar de uma interpretação literal e legalista do Antigo Testamento e despertar-se para esta realidade da Nova Aliança trazida por Cristo, e pudesse finalmente conhecer o que realmente acontece quando uma criança do nosso tempo recebe uma punição física, e quais são os efeitos sobre ela.
Certamente compreenderíamos muito melhor o que o apóstolo Paulo quer dizer quando nos desafia a não provocar em nossos filhos a ira, o medo, a angústia ou qualquer outro sentimento negativo que causa tantos danos à identidade de nossas crianças.
Que Deus nos ajude a sermos pais que vivem sob a Graça do Novo Testamento.
João David Cavallazzi Mendonça - é psicólogo, terapeuta de família. Professor e supervisor clínico do Familiare Instituto Sistêmico em Florianópolis. Quando não está lendo algum livro, está ouvindo Bob Dylan. Às vezes faz as duas coisas ao mesmo tempo.
Fonte: Blog Psicojd - Psicologia, terapia e coisas da vida
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