17 de jul. de 2010

Assunto de família

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Eleonora Ramos*

O problema é grave, mas invisível. O hábito de bater nas crianças para “educá-las” faz parte da tradição familiar brasileira. Vem lá de trás, herança de nossos colonizadores portugueses e espanhóis, introduzida pela mão pesada dos jesuítas. Os índios não puniam com castigos físicos suas crianças e mulheres, pelo contrário. Registros históricos e textos da época estão repletos de referências à harmoniosa relação familiar dos povos nativos. “Não tem quem açoite o filho, e falar algo a alguém se sente mais do que bater”, como escreveu o padre Luís de Grã, por volta de 1550. Ou o jesuíta Fernão Cardim, quarenta anos mais tarde: “não há pai nem mãe que em toda vida castigue seu filho, e os pequenos são obedientíssimos e brincam com muito mais festa e alegria que os meninos portugueses”. Praticamente nada restou dessa interessante pedagogia. Adotamos a dor e o sofrimento como principais instrumentos de educação de crianças e jovens. Dito assim, hoje, parece exagero. Ora, nossos filhos têm tudo que precisam, o que tem demais em levar umas palmadas, chineladas de vez em quando, igualzinho aconteceu conosco?

No Brasil colônia crianças, jovens, mulheres, idosos, escravos, empregados, doentes mentais e agregados eram submetidos a punições violentas pelo chefe da família, provedor e senhor absoluto de seus domínios, incluindo a vida, a liberdade e a dignidade das pessoas.
Até os nossos dias, poucos discutem o direito de bater nas crianças, aparentemente legítimo, conferido a pais e responsáveis, leia-se avós, tios, padrastos, madrastas irmãos, tios, padrinhos, patrões, professores, babás, educadores sociais. Nos abrigos, quanta violência entre berços cor de rosa e pratinhos cheios de mingau, que encantam o visitante. O fato é que qualquer adulto incumbido de tomar conta de uma criança, ganha automaticamente a prerrogativa de castigá-la fisicamente.

Milhões de nossos antepassados sofreram tortura e opressão na infância e transmitiram o vírus da violência em família, geração após geração. Quantas crianças se tornaram adultos improdutivos e inseguros, agressores de mulheres, pais e mães impiedosos e intolerantes, maridos homicidas, maníacos sexuais, genocidas, serial killers? Em todos os casos, adultos infelizes.

O sistema patriarcal do Brasil colônia consolidou o poder absoluto do homem e a relação desigual nas relações familiares. Os castigos físicos, constantes e cruéis, aplicados indiscriminadamente em crianças brancas e negras, meninas e mulheres, eram tolerados e tratados como “assunto de família”. E assim permaneceu, mesmo quando a sociedade e a legislação repudiaram, uma a uma, as relações sociais violentas, a dominação de um homem sobre outro, o desrespeito à dignidade.

É surpreendente que os castigos físicos ainda façam parte da vida de tantas crianças – as maiores vítimas estão na faixa de zero a seis anos - apesar dos avanços das ciências que estudam o comportamento e o inconsciente do homem. É surpreendente e lamentável que, em pleno século XXI, a legislação e a sociedade admitam a violência física, desde que sem “exageros”.

Isso significa deixar milhões de crianças à mercê dos desejos, necessidades e psicopatias dos adultos. De suas paixões, fraquezas e fantasias. Das surras programadas com determinados objetos até pontapés, empurrões e socos ocasionais, tudo serve para alguns adultos aliviarem a dor, a revolta e a humilhação que carregam no mais profundo da alma.

O tema – bater ou não nas crianças – é geralmente discutido com reservas e superficialidade, como assunto de pouca ou nenhuma importância no contexto dos problemas relacionados às crianças. Só quando mostra sua face cruel, aterradora, inconcebível, é que ganha contornos concretos. Aí, a violência extrema de alguns pais e mães nos parece distante da palmadinha amorosa. Mas têm a mesma origem: a certeza de que o sofrimento físico corrige as crianças.

A prerrogativa que têm os pais de dar uma boa chinelada “quando não obedecem com palavras” é a mesma que levam mães a queimarem as mãos de seus filhos, por faltas mais graves: mexer na panela, abrir o pacote de biscoito, pegar o lápis do colega.

O Brasil que em dez anos tanto avançou em relação à prevenção e repressão à violência sexual contra crianças e adolescentes e no combate ao trabalho infantil, permanece indiferente à violação de seu direito à vida e integridade física e psicológica e a condições favoráveis ao pleno desenvolvimento. Direito a viver os preciosos anos da infância sem dor e sem medo.

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Eleonora Ramos é coordenadora do Projeto Proteger - Infância sem Dor e sem Medo, desenvolvido na Bahia.

3 comentários:

  1. Olá Cida!
    Tenho acompanhado as discussões sobre o tema.
    A cultura de castigos físicos remontam a épocas milenares, por exemplo encontramos o registro Bíblico em Provérbios 23:13-14 "Não evite disciplinar a criança; se você a castigar com a vara, ela não morrerá. Castigue-a, você mesmo, com a vara, e assim a livrará da sepultura." Então já havia uma idéia de equilibrio, de dosagem que parecia eficaz na disciplina.
    Não faço diretamente defesa das palmadas como método disciplinar, porém vejo como exagero a comparação de que uma palmada é igual ou leva a castigos severos (maus-tratos).
    Estes ultimos são passíveis de punição já previstos nos códigos penal e civil brasileiro, o que também parece ser redundante querer aprovar uma lei que proíbe palmadas.
    Um artigo publicado na Veja desta semana faz também uma reflexão sobre esse assunto, onde alguns pesquisadores falam sobre a redundancia e os riscos do projeto de lei, a intromissão do estado, e que além de exagerar ao proibir castigos leves e pedagógicos, cria a ilusão de que toda e qualquer violência contra crianças e adolescentes será coibida. E a violência psicologica que se manifesta pela prssão emocional, chantagem, e a expectativa exacerbada sobre os filhos, que podem causar maiores danos ou tanto quanto que a agressão física.
    Agradeço a você por possibilitar o diálogo.

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  2. Querido Edilson,

    Não concordo de forma alguma com as argumentações
    apresentadas pelos especialistas consultados pela Revista Veja.

    Considero a matéria da Veja tendenciosa e superficial.

    Eles não apresentaram os argumentos de
    tantos outros especialistas que estudam o tema da violência física e psicológica e seus
    impactos no desenvolvimento infantil.

    Dão exemplos no mínimo ingênuos para criticar a iniciativa da Lei.

    Todo o meu trabalho de pesquisa de mestrado e doutorado visa discutir e aprofundar a reflexão sobre a naturalização das
    práticas educativas que utilizam da dor e do sofrimento físico.

    Se tiver interesse podemos discutir mais esse assunto.
    Visite o site da Rede Não bata Eduque
    e conheça a proposta da campanha pela erradicação
    dos castigos físicos e humilhantes.

    A minha dissertação está lá no link Bibliografia.

    Por fim, como mãe, sou uma ardorosa defensora
    de uma educação livre de qualquer forma de
    violência.
    Criei minhas duas filhas sem a prática de bater para "educar".

    É impressionante como faz diferença, o desenvolvimento
    intelectual e emocional é outro.

    Queria que todas as crianças pudessem crescer sem serem submetidas a um método tão pobre como
    é a prática de bater para “educar”.

    Temos tantos recursos melhores para que se utilizar do pior, ainda mais com os nossos amados filhos.

    Abraços
    Cida Alves

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  3. Incrível como conseguem colocar no mesmo saco uma palmada ou um "bolo" na mão e o espancamento, as chicotadas, queimaduras, etc. É o mesmo que igualar um ladrão de frutas oportunista de um chefe do crime organizado.

    Menos, senhoras, menos...

    Lourds Mary Kennedy
    Obs. Estou anônima porque não tenho conta habilitada aos comentários deste site.

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