13 de jun. de 2016

"Parte da impunidade no crime sexual começa antes de chegar à Justiça" - Entrevista - Samira Bueno\Carta Capital

Polícia Militar
Falta de mulheres nas polícias também pode ser um problema


Porta de entrada do sistema judiciário, policiais precisam ser treinados a acolher e orientar a mulher que sofre violência, diz especialista

Por  Ingrid Matuoka

Em 2014 foram protocolados 47.646 estupros por todo o Brasil, além de cinco mil tentativas. Os registros policiais apontam que a cada onze minutos uma mulher foi estuprada.

No mesmo ano encontravam-se no sistema carcerário 14.246 presos por “crime contra a dignidade sexual”, em que se encaixam, dentre outros, o estupro, atentado violento ao pudor, estupro de vulnerável e corrupção de menores.

Este número, contudo, refere-se à quantidade total de condenados presos, não apenas aos casos de 2014, e constitui 5% dos presos por crimes tentados ou consumados. O que acontece entre o boletim de ocorrência e a prisão?

Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o preparo da polícia para acolher as vítimas e sua relação de confiança com a sociedade são fundamentais para combater a subnotificação de crimes e a impunidade. Leia destaques da entrevista a seguir.

CartaCapital: Por que o número de condenados por estupro é tão baixo se comparado ao número de casos registrados, como mostra o estudo de 2015 do FBSP?

Samira Bueno: As principais dificuldades em relação a esse crime são a produção de provas, o medo que as vítimas têm em denunciar porque, em geral, conhecem seus agressores, o que torna a denúncia complexa.

O que acontece entre esse número, que nos baliza a pensar políticas públicas, e o número real? Pesquisas internacionais mostram que de 30% a 35% dos crimes são de fato registrados. No Brasil, são 7,5%. E o IPEA mostra que o número real de estupros ocorridos no ano passado é superior a meio milhão.

A violência faz parte do cotidiano da mulher brasileira, possivelmente a cada um minuto uma mulher é vítima de violência sexual. E a maior parte dos crimes acontece dentro de casa. Quem abusa dessas jovens, porque na maioria dos casos são menores de idade, é o pai, o padrasto, o vizinho.

CC: Em que momento do processo entre a notificação à polícia e o julgamento esse número sofre maior queda? Por quê?

SB: A pesquisa mais recente relacionada a homicídio, que é um crime contra a vida, o mais grave, mostra que a média no Brasil entre o momento do cometimento do crime e a condenação é de 7 anos. Isso em um crime cujas provas são mais fáceis de apurar, relativamente. Desconheço estudos sobre estupro, mas o número deve ser baixíssimo.

Há um problema muito anterior: a relação de confiança entre polícia e sociedade. À medida em que as pessoas confiam menos na polícia, elas se sentem menos confortáveis na hora de registrar um crime.

A cultura do estupro dificulta que aquele policial, o operador ali na ponta, compreenda aquele caso como um crime. Além disso, ela é a causa pela qual boa parte da impunidade nos crimes sexuais começa muito antes de chegar à Justiça. A vítima precisa, antes de tudo, provar que é vítima.

CC: Os policiais recebem treinamento adequado para lidar com as vítimas e os desdobramentos desse tipo de crime?

SB: Depende. Porque, como as polícias respondem ao executivo estadual, cada uma das polícias tem seu protocolo, seus esquemas de formação. Temos uma polícia que inspira desconfiança da população, e isso é um dado que tem como efeito prático a subnotificação de todos os crimes.

Nossa taxa de roubo corresponde ao todo? Não. Apenas um terço é notificado. Os que são mais notificados são homicídios, que têm um corpo que exige investigação, os roubos e furtos de veículos, por causa dos seguros.

Um crime contra a vida, que teoricamente fornece mais elementos para a investigação, tem uma taxa de 8% de casos solucionados. Isso no caso de um homicídio que deixa tantos vestígios, que tem necessariamente a perícia no corpo, que tem mais elementos, que muitas vezes acontece na rua, então tem alguma filmagem, testemunhas. Não acontece dentro de casa, como um estupro muitas vezes acontece. Se nessa situação a taxa é tão baixa, que dirá dos crimes que ocorrem intramuros.

Quando a gente fala por que é importante um treinamento diferenciado para a polícia, é porque os policiais têm que entender que aquela pessoa é um sujeito de direitos que sofreu uma violência. Que aquela mulher agredida precisa de todo o cuidado necessário.

Ela não precisa passar novamente por uma revitimização, porque muitas vezes ela revive o trauma quando vai dar o depoimento e o profissional não sabe lidar com ela. E aí ela desiste, vai embora sem dar queixa. Ou ela vai ser vítima novamente e não vai voltar na delegacia.

Manifestação 
Quanto menos confiança na polícia, menos as mulheres vão 
conseguir denunciar um crime (Foto: Paulo Pinto/ AGPT)
Esse tipo de atendimento é fundamental porque a polícia é necessariamente a porta de entrada da vítima no sistema da justiça criminal. Elas têm três opções: podem ficar dentro de casa convivendo com a violência, ir a um hospital e ter atendimento para evitar uma gravidez e uma doença venérea e ainda assim evitar a delegacia, e elas podem tentar fazer o registro da queixa.

Quando você sofre todo tipo de constrangimento na hora de tentar registrar uma ocorrência, você acaba desistindo. E se você souber de alguém que está sendo vítima de alguma violência, vai dizer a ela que não adianta ir à delegacia, não adianta falar com a polícia.

Se não houver sensibilidade desde a porta de entrada, nunca vamos resolver o problema da impunidade. Se a polícia não faz uma investigação bem feita, não dá todo o atendimento necessário pra a vítima e compreende aquilo como um crime, se ela questiona até se é um crime, de forma alguma o judiciário vai dar algum tipo de caminho diferente.

É um erro falar da impunidade como se fosse um problema só da justiça. Falar de impunidade nos crimes sexuais é falar já do primeiro atendimento que essa vítima tem nos equipamentos policiais.

CC: Houve recentemente iniciativas do Estado direcionadas a esse problema?

SB: O Estado brasileiro hoje está na contramão. Quando vemos um congresso cogitando acabar com a discussão sobre gênero na escola, isso é um retrocesso. Há um projeto de lei que quer tornar ainda mais difícil para a vítima fazer um aborto em caso de estupro. Ele cria uma série de etapas que dificultam esse direito, como a exigência de um boletim de ocorrência. E nós sabemos o que acontece na delegacia.

A nova secretária de políticas para as mulheres assumiu publicamente que é contra o aborto mesmo em casos de estupro. Estão pensando em restringir ainda mais os direitos da mulher em vez de cuidar dela, em dificultar ainda mais sua vida após sofrer um crime como esse.

É preciso criar políticas que repensem a formação de nossas crianças e jovens, gerando um processo de educação que reforce a importância da equidade de gênero.

CC: Como essa estatística se relaciona com a falta de representatividade da mulher na política, algo que se tornou mais flagrante com a posse do presidente interino Michel Temer?

SB: A desvalorização do papel da mulher enquanto ator público, sujeito político, é evidente quando você olha os ministros de Temer. A resposta a essa violência não virá de um grupo de homens, que não conseguem entender a dimensão do problema.

O Estado precisa aprender a articular melhor as secretarias de mulheres, direitos humanos e de segurança pública. Todos esses atores que tratam das questões de gênero a partir de diferentes perspectivas podem concentrar esforços para pensar protocolos de atendimento que formariam profissionais de segurança em todo o país e não só nas capitais.

Pensando em legislação, avançamos bastante nos últimos 10 anos. Estupro é crime hediondo e a lei mudou em 2009, então ato libidinoso e outras violações passaram a ser enquadrados como estupro. Em 2006, tivemos avanços nas leis de combate à violência doméstica. Foi onde mais avançamos. Só que ainda não conseguimos evitar que uma mulher seja espancada pelo marido, assassinada pelo namorado, que uma menina seja estuprada por 33 homens.

A questão é que podemos ter as melhores leis do mundo, mas se os equipamento na ponta, as investigações, o papel da polícia no primeiro atendimento a essa vítima, se a ação da polícia com a assistência social e os equipamentos de saúde não funcionarem, nunca vamos punir os agressores.

Fonte: Carta Capital, em 10 de junho de 2016.

Foto: Nelson Almeida/Governo do Estado de SP

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