2 de jun. de 2016

A quem interessa a desconstrução da vítima de estupro coletivo? Adriana Dias - Revista Fórum

Poucos se dão conta de quem realmente deseja muito que a culpa fique na moça. A turma do Cunha, não só pelo projeto que fragiliza a lei do aborto legal, ou o atendimento a vítimas de estupro, e sim porque fragiliza todo o debate contra a moral desses pastores. Reporto-me a um caso antigo para falar disso. Tenham paciência, que o babado é longo

oppression-458621_960_720


Por Adriana Dias
Os últimos dias tem sido bestiais. Governo golpista absolutamente exposto, pizza sendo entregue no Jaburu por ministro do STF, Frota, estuprador confesso, se reunindo com ministro da Educação, pastor pedindo presidência da Funai, Kim Power Rangers se revelando usuário de fundo partidário, enfim. Abrimos, DEFINITIVAMENTE, a nossa caixa de Pandora. Mas nada se iguala aos estupros coletivos. Não que sejam raros. Em poucos minutos no Google acham-se casos e casos no Brasil. Contudo, o do Rio de Janeiro ficará na memória do país como aquele que reuniu toda a força reacionária do país para CULPAR A VÍTIMA.
Violência contra a mulher tem esta questão. Não se pergunta quem é o violador, mas quem é a vítima, qual sua experiência e preferência sexual, segundo a cartilha do delegado que conduzia o caso. Seguindo essa linha de raciocínio, dever-se-ia perguntar aos que foram assaltados seus hábitos de consumo e porque preferem andar de relógio e com carteiras, e aos que são atropelados porque preferem andar a pé. Que habito horroroso este de ser pedestre, gente! Ao desconsiderar que a guria desmaiou, e que qualquer consentimento teria acabado, fato que o delegado nem cogita, numa menina do morro, (eu não cogito é o consentimento dela), ele cria o estupro de desmaiados e em coma consentidos. No RJ vai surgir em breve a necrofilia consentida. É só esperar para ver.
A quem interessa? Bom, claro, ao governo, que tem que lidar com a fama de corrupto e agora com um estupro coletivo na cidade Olímpica. Melhor fazer uma operação apaga tudo, e o delegado hoje cedo, no jornal marrom da Globo, o Extra do Rio, já falava que a culpa é da advogada da moça, que ele odeia, desde muito tempo. Outra coisa que esse delegado ainda não entendeu, advogado vive de defender e advogar. Alguém desenha pra ele, por favor?
Mas poucos se dão conta de quem realmente deseja muito que a culpa fique na moça. A turma do Cunha, não só pelo projeto que fragiliza a lei do aborto legal, ou o atendimento a vítimas de estupro, e sim porque fragiliza todo o debate contra a moral desses pastores. Reporto-me a um caso antigo para falar disso. Tenham paciência, que o babado é longo.
Iniciemos.
Anthony Garotinho, quando governador no Rio de Janeiro, desenvolveu um programa, “Delegacia Legal”, que passou a coordenar, quando na gestão posterior, assumiu o cargo de secretário da Segurança Pública no Estado. No relatório da ONU sobre violência divulgado em abril de 2001, o programa recebeu elogios por ser “concebido para modificar radicalmente a forma como a Polícia Civil vem desenvolvendo suas atividades através da transformação de todas as delegacias em Delegacias Legais”, além de se autodenominar “uma verdadeira revolução na vida de uma delegacia”, estendendo as fronteiras desta revolução ao “próprio trabalho policial”. Para viabilizar esta reforma, os presos foram “remanejados para uma casa de custódia”, afinal, o “Estado não pode fugir de sua responsabilidade constitucional pelo destino e a guarda dos presos em condições adequadas e sem superlotação.” A ideia defendida propagava: “casa de custódia não é presídio”, mas “locais construídos especialmente para a guarda de presos que ainda não foram a julgamento, os mesmos que já existem nas antigas delegacias”. Os textos estavam no site institucional do programa, desenvolvido pelo próprio governo do Estado do Rio de Janeiro, na ocasião.
Fui puxada para a questão da segurança e do painel carcerário no Rio de Janeiro, ainda estudante de Antropologia, estudando a narrativa deste programa, minha escolha para uma disciplina sob a orientação da professora doutora Suely Kofes, minha orientadora desde minha graduação. Foi meu primeiro tema de pesquisa, por assim dizer. O tema me impressionou, especialmente pela rebelião que aconteceria na Casa de Custódia de Benfica, antiga sede do 22º BPM em Benfica, e volto nele agora, porque acho que muito do que vislumbrei naquele tempo será útil para pensar a questão do estupro coletivo do Rio de Janeiro, sua repercussão e a tentativa de desconstruir, a qualquer custo, a história da vítima.
Voltemos no tempo para apanhar alguns elementos importante.
A casa de custódia, palco da rebelião, se localiza na Zona Norte do Rio, e foi fruto de uma reforma na antiga sede do 22º BPM em Benfica, ao custo de 7,88 milhões de reais e sua capacidade carcerária corresponderia a 1.150 presos, incluindo neste número 150 vagas destinadas a presos especiais (curso superior e policiais).
A segurança do prédio contava com um muro de sete metros de altura, e a administração foi instalada no andar abaixo das celas, descartando a possibilidade de túneis subterrâneos. Áreas especiais, destinadas ao isolamento para presos que se encontram em situação de risco, e também para atendimento odontológico, médico, ambulatorial, psicológico e religioso (ecumênico), e espaços específicos para oficinas, prática de esportes e encontros íntimos foram planejadas detalhadamente.
No entanto, a enorme infraestrutura da Casa de Custódia do Benfica não se revelou suficiente para evitar a tragédia, classificada como “séria e comovente”, nas palavras do então ministro da Justiça, o doutor Márcio Thomaz Bastos, cujo saldo foi de pelo menos 31 mortos (os números do caso não batem, porque há mais de 80 desaparecidos dado como fugitivos). Resultado da tentativa de fuga em massa, no último sábado de maio do corrente ano, a rebelião terminou na noite da segunda-feira seguinte, com a inusitada presença do pastor evangélico Marcos Pereira da Silva, trazido por um helicóptero à casa de Custódia. Enquanto esperavam o pastor, presos jogavam futebol com a cabeça de mortos e degolados.
Em depoimento ao jornal Folha de S. Paulo, o pastor afirmou que sua presença foi exigida pelos presos e viabilizada pelo secretário de Segurança Pública, Anthony Garotinho, que, inclusive, haveria se comunicado pessoalmente com ele, solicitando a participação do líder evangélico. Ele serviu ao secretário para forjar outra imagem para a rebelião para evitar comparações com Carandiru. Mas, foi um CARANDIRU. FOI PIOR.
O pastor Marcos Pereira da Silva é presidente da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, instituição sem ligações com a conhecida denominação evangélica Assembleia de Deus. Em seu “currículo”, afirma, há mais de dez rebeliões “resolvidas” por ele.
No episódio específico da rebelião na Casa de Custódia do Benfica, a chegada do pastor Marcos se deu ás dezesseis horas da segunda-feira. Segundo o relato do mesmo “reuniu cerca de 700 presos num pátio,” para “glorificar a Jesus”, e depois da expulsão de “muitos demônios”, negociou com eles o fim da rebelião.
Se a estes fatos e afirmações se adicionarem mais dois eventos que emolduram o surreal episódio, mais nublada parecerá a situação. O primeiro deles foi o veto à entrada de defensores públicos e de integrantes de entidades de direitos humanos na Casa de Custódia de Benfica após o fim do motim, veto expedido pelo secretário de Segurança Pública do Rio, Anthony Garotinho (PMDB), protestado por 41 defensores públicos do Núcleo de Direitos Humanos e Sistema Penitenciário. O segundo, uma carta assinada por quatro bispos católicos do Estado do Rio e pelos coordenadores da Pastoral Carcerária, crítica à decisão de Garotinho de convocar o pastor Marcos Pereira da Silva para a negociação com os presos rebelados, quando os PMs estavam a uma passo de solucionar a crise.
O pastor Marcos falou na ocasião às reportagens e chegou a afirmar: “Quando vou aos morros, olho nos olhos deles e eles caem, com armas e tudo. Tenho dons espirituais e falo a língua dos anjos. Eles ficam maravilhados com isso.” A proximidade do pastor com familiares de traficantes já foi investigada pela Polícia Federal, que suspeitou de crime de lavagem de dinheiro do narcotráfico, e acompanhada pela Polícia Civil do Rio, que chegou a gravar conversas com suas com traficantes. Polícias e agentes, sem se identificar, disseram a jornalistas anteontem que Silva teria preferência pelos presos do Comando Vermelho, fato que ele nega.
“Atuo em todos os morros. Quem não conhece meu trabalho acha que estou usando a igreja. Já fui detido uma vez, mas eles [os policiais] perceberam que sou honesto. O que eu ganho vai para a Assembleia de Deus dos Últimos Dias. Ganhei um [automóvel] Land Rover e vendi para ajudar a igreja.”
Segundo Silva, a Assembleia de Deus dos Últimos Dias tem cerca de 800 fiéis no Rio. As mulheres que vivem no local andam com vestidos longos que deixam expostos apenas o rosto e as mãos. “O corpo da mulher é feito apenas para seu marido”, diz. Ele explica que leva a Bíblia “ao pé da letra” e procura evitar ao máximo ler “jornais e revistas que não edificam”. Na revista de doutrina da igreja de Marcos elas são proibidas de usar todo e qualquer produto cosmético, maquiagem, de se depilar, cortar o cabelo, de usar colares, brincos, pulseiras, ou qualquer enfeite, e nas casas não é permitido animais, e deve-se evitar plantas. Recomenda-se não ter acesso à televisão, nem jornais, nem revistas, nem computador ou internet, apenas as informações da igreja.
.
Muitos parentes de traficantes frequentam o templo. As irmãs de Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, chefe do Comando Vermelho, Silvia e Silvana, são membros da igreja. Três irmãos de Ernaldo Pires de Medeiros, o Uê, morto em 2002 durante motim em Bangu 1, e o filho e sobrinhos de Celsinho da Vila Vintém, traficante que comandou a facção ADA (Amigo dos Amigos), vão aos cultos.
Anos mais tarde, o Pastor Marcos Pereira se viu complicado em várias denúncias: a primeira, nada supreendentemente, envolvia ESTUPRO. ISSO MESMO ESTUPRO. Segundo o delegado do caso:
Ele tinha um comportamento semelhante quando estuprava as mulheres dentro da própria igreja. Ele dizia que elas estavam possuídas, endemoniadas e ele fazia crer que a única forma que essas pessoas pudessem ser libertadas daquele demônio era tendo relação com uma pessoa santa”, afirmou o delegado Márcio Mendonça. O pastor foi condenado a 15 anos de prisão por estupro. Segundo os autos, o crime foi cometido no final de 2006 contra uma seguidora nas dependências da igreja Assembleia de Deus dos Últimos Dias
As vítimas afirmam que o pastor Marcos Pereira não usava preservativos. Uma delas contou à polícia que o religioso mantinha um médico particular para realizar abortos nas fiéis que engravidavam. A acusação de homicídio que consta em um inquérito é assustadora. A mãe da vítima contou à polícia que a filha escapou de uma tentativa de estupro, atacada pelo pastor. Depois de se livrar dele, a menina teria começado a descobrir episódios de violência sexual e detalhes de orgias promovidas por Marcos Pereira. A jovem terminou assassinada, e um dos condenados pelo crime é um sobrinho de Pereira. A mãe da jovem afirmou à polícia não ter dúvidas do envolvimento do pastor com o crime.
Na véspera do Natal de 2014, o pastor foi beneficiado por uma liminar do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, para aguardar em liberdade o julgamento do habeas corpus impetrado pelo advogado Ivan Bonfim da Silva, no último dia 17 de novembro, que pede a anulação da sentença que condenou o pastor a 15 anos de reclusão em regime fechado e a prescrição da denúncia feita contra ele. Veja, ele não foi INOCENTADO, ele aguardaria em liberdade a anulação da sentença, pela prescrição.
Além de tudo isso, um ex-funcionário seu, Alex Ramos de Mesquita, em 2012, foi testemunha de que ele, o pastor e Marcinho VP, líder do Comando Vermelho, em 2012 no processo do Ministério Público Estadual (MPE) por associação ao tráfico de drogas. Encampou grande parte das declarações de Alex. Segundo o MPE, o pastor Marcos visitava Marcinho VP no presídio para tramar contra a pacificação das favelas. A partir de julho de 2012, aumentaram os ataques de bandidos armados às Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. Onze policiais de UPPs foram mortos em serviço desde então, quatro apenas nos primeiros meses de 2014.
Na ocasião, Marcos Feliciano defendeu o Pastor. Claro.
Haviam provas. Ele nunca foi inocentado. Agora no crime de estupro coletivo, voltam à tona as relações do Comando Vermelho com o fato. Aparecem dois líderes na história, o traficante Luiz Cláudio Machado, o Marreta, que está preso e é citado no vídeo; e Sérgio Luiz da Silva Júnior, o da Russa está com ordem de prisão decretada. Há indícios que ambos tenham vínculos com o pastor e suas Igreja. Em muitas páginas do Twitter dos que partilharam o vídeo da menina há mensagens com versículos bíblicos, como se uma vida “santa” e estupro não fosse mutualmente excludentes. Bem, o pastor mostrou que não, né?
A pauta das igrejas neopentecostais do morro, mais ligadas ao crime que ao Evangelho ao que parece, do governo estadual e federal que agora elas comandam, desejava desmoralizar a advogada, a menina, o feminismo, as pautas progressivas. As mulheres do Brasil inteiro se levantaram. Não aceitaremos. Nós lutaremos e enfrentaremos todos os que nos querem menores, violadas e sem direitos, até todas estarem libertas.
Eles estão jogando o jogo deles.
Eles estão jogando de não jogar um jogo,
Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão,
quebrarei as regras do seu jogo
e receberei a sua punição.
O que eu devo, pois, é jogar o jogo deles,
o jogo de não ver o jogo que eles jogam
R.D.Laing LAING, Ronald David
• Laços. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

Foto de capa: Pixabay
Fonte: Fórum, em 30 de maio de 2016.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)