"Somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, apologia ao estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.O projeto de normatização desse Brasil de horrores, para que seja bem-sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos".
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O
Brasil que anda se vendo no espelho é aquele formado por capitães do mato,
capatazes, senhores de engenho, feitores, bandeirantes apresadores de índios e
destruidores de quilombos, etnocidas, torturadores, coronéis, pistoleiros,
membros do esquadrão da morte, misóginos, homofóbicos, ágrafos, parasitas
sociais, fanáticos religiosos e arrivistas inescrupulosos.
Somos um país forjado em ferro,
brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas
pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis,
inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos
capatazes, apologia ao estupro, naturalização de linchamentos e coisas do
gênero.
O projeto de normatização desse
Brasil de horrores, para que seja bem-sucedido, precisou de estratégias de
desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo,
afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente
o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na
submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade
expressa na cultura do estupro e da violência: o corpo convertido, o corpo
escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal. Esse Brasil é um
país de corpos doentes e todos nós compartilhamos dos ambientes doentios em que
corpos brasileiros são condicionados e educados para o horror.
É preciso encarar que na mesma
semana em que um clube de ricaços estabeleceu que corpos subalternos não podem
frequentar banheiros destinados aos corpos bem-nascidos, trinta e três corpos
educados para a boçalidade estupraram um corpo historicamente destinado à
inexistência. Corpos de senzala e corpos de casa-grande; corpos de mulheres
preparados para o estupro e corpos machos de algozes preparados para as funções
de capitães do mato, adequadamente propícios para um país que é obra pensada:
somos feitos do que Joaquim Nabuco chamou de obra da escravidão.
Há quem diga que o Brasil deu
errado. Discordo e recentemente escrevi sobre essa ideia. O Brasil foi
projetado pelos homens do poder para ser excludente, racista, machista,
homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de
sua gente, intolerante, boçal, misógino, castrador, famélico e grosseiro. Somos
isso tudo, não? Neste sentido, desconfio que nosso problema não é ter dado
errado. O Brasil como projeto, até agora, deu certo. Somos um empreendimento
escravagista fodidor dos corpos extremamente bem-sucedido.
Fazer o Brasil começar a dar
errado é a nossa tarefa mais urgente".
Luiz Antonio Simas é mestre em História Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou em parceria com o
caricaturista Cássio Loredano, pela editora Folha Seca, o livro O vidente míope,
sobre o desenhista J. Carlos e o Rio de Janeiro da década de 1920. É coautor, ao lado de Alberto Mussa, do
ensaio Samba de Enredo, História e arte, lançado pela editora Civilização
Brasileira (2010). Em 2012 publicou, na coleção Cadernos de Samba, o livro
Portela – tantas páginas belas, pela editora Verso Brasil. Em 2013 lançou, pela
Mórula Editorial, “Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e
terreiros”, reunindo 41 pequenos ensaios sobre cultura popular carioca,
originalmente publicados no jornal O Globo.
Fotos: Sobrenatural, 20 de junho de 201 e Correio Popular, 20 de outubro de 2015
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