29 de mai. de 2016

BRASIL: UM PROJETO VITORIOSO - Luiz Antonio Simas

"Somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, apologia ao estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.
O projeto de normatização desse Brasil de horrores, para que seja bem-sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos". 


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O Brasil que anda se vendo no espelho é aquele formado por capitães do mato, capatazes, senhores de engenho, feitores, bandeirantes apresadores de índios e destruidores de quilombos, etnocidas, torturadores, coronéis, pistoleiros, membros do esquadrão da morte, misóginos, homofóbicos, ágrafos, parasitas sociais, fanáticos religiosos e arrivistas inescrupulosos.
Somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, apologia ao estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.
O projeto de normatização desse Brasil de horrores, para que seja bem-sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade expressa na cultura do estupro e da violência: o corpo convertido, o corpo escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal. Esse Brasil é um país de corpos doentes e todos nós compartilhamos dos ambientes doentios em que corpos brasileiros são condicionados e educados para o horror.
É preciso encarar que na mesma semana em que um clube de ricaços estabeleceu que corpos subalternos não podem frequentar banheiros destinados aos corpos bem-nascidos, trinta e três corpos educados para a boçalidade estupraram um corpo historicamente destinado à inexistência. Corpos de senzala e corpos de casa-grande; corpos de mulheres preparados para o estupro e corpos machos de algozes preparados para as funções de capitães do mato, adequadamente propícios para um país que é obra pensada: somos feitos do que Joaquim Nabuco chamou de obra da escravidão.
Há quem diga que o Brasil deu errado. Discordo e recentemente escrevi sobre essa ideia. O Brasil foi projetado pelos homens do poder para ser excludente, racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua gente, intolerante, boçal, misógino, castrador, famélico e grosseiro. Somos isso tudo, não? Neste sentido, desconfio que nosso problema não é ter dado errado. O Brasil como projeto, até agora, deu certo. Somos um empreendimento escravagista fodidor dos corpos extremamente bem-sucedido.

Fazer o Brasil começar a dar errado é a nossa tarefa mais urgente".





Luiz Antonio Simas é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou em parceria com o caricaturista Cássio Loredano, pela editora Folha Seca, o livro O vidente míope, sobre o desenhista J. Carlos e o Rio de Janeiro da década de 1920.  É coautor, ao lado de Alberto Mussa, do ensaio Samba de Enredo, História e arte, lançado pela editora Civilização Brasileira (2010). Em 2012 publicou, na coleção Cadernos de Samba, o livro Portela – tantas páginas belas, pela editora Verso Brasil. Em 2013 lançou, pela Mórula Editorial, “Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros”, reunindo 41 pequenos ensaios sobre cultura popular carioca, originalmente publicados no jornal O Globo. 


Fotos: Sobrenatural, 20 de junho de 201 e Correio Popular, 20 de outubro de 2015

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