Estimado(a) Leitor(a),
Compartilho com você um fragmento do capítulo “A VIOLÊNCIA FÍSICA E A SOCIALIZAÇÃO DAS NOVAS GERAÇÕES” de minha dissertação (SILVA, 2008) em que discuto a influência de crenças religiosas na construção de uma imagem negativa da criança que justificam a prática de violências contra o seu corpo.
A história da criança tem sido também a história de um mundo de violência perpetrada contra ela na forma de escravidão, abandonos, mutilações, filicídios e espancamentos.
Viviane Guerra.
A violência física contra crianças, além de ser utilizada como um método de controle populacional/natalidade, seleção racial e manutenção da aparente moral religiosa, podia ter uma função litúrgica em sacrifícios místico-religiosos. As práticas rituais de mutilação do corpo da criança ou sacrifício de suas vidas são exemplos dessa prática mística. Para Mott (1993), as manifestações de ataque ou extermínio ao corpo infantil por razões eminentemente religiosas eram menos freqüentes. No infanticídio, ritual da antigüidade, as crianças eram executadas, na maioria das vezes, por meio do apunhalamento ou do holocausto no fogo.
O primeiro registro encontrado da prática do infanticídio ritual data de 4000 a.C. na região da antiga Suméria. No ritual sumeriano, os recém-nascidos eram sacrificados em reverência ao deus Anu. Por volta de 2000 a 1500 anos antes de Cristo, segundo os sumerianos, o deus Moloch (ou Molek) somente se acalmava quando era homenageado com o sacrifício ritual de criancinhas inocentes. Para o deus Javé, divindade inspirada em Moloch, o sacrifício dos primogênitos humanos foi substituído pelas primícias ou pelo holocausto de animais. Em Israel, o frustrado sacrifício de Isaac por Abraão e o efetivo holocausto da filha de Jefté demonstram como estavam presentes nos primórdios da matriz religiosa cristã os infanticídios ritualísticos (MOTT, 1993).
Mott (1993) destaca que a prática do infanticídio foi registrada também em outras áreas, como: Mesopotâmia, Síria, Fenícia, Cananéia e terra dos moabitas, Egito, China, Índia e entre os primeiros habitantes bárbaros da Escócia e Rússia. Os estudos antropológicos das sociedades primitivas também localizaram a prática do infanticídio ritual entre os esquimós, na Polinésia, no Taiti e Havaí, nos aborígines da Austrália e nos Ibo da África Ocidental, nas tribos pina do Arizona e da Carolina do Norte, nos guaicuru do Brasil Central e maias.
Para compreender melhor as razões do infanticídio ritual, é fundamental reportar-se à idéia de que o Criador é proprietário de todas as criaturas, afirma Mott (1993). Na bíblia, no Êxodo, essa idéia está expressa claramente: “Todo primogênito me pertence, disse o Senhor” (apud MOTT, 1993, p. 122). A autoridade divina exige, em sua reverência, o que os humanos mais esperam e estimam: a vida dos primogênitos humanos, os animais e as primícias da agricultura. Paradoxalmente, ao sacrificar a vida da criança ou mutilar os seus corpos, os humanos revelavam uma valoração positivo da criança, pois só poderia ser ofertado às divindades aquilo que era considerado precioso, estimado e puro.
Em outras interpretações teológicas, ao contrário, postulam-se a idéia de que os recém-nascidos são imperfeitos, presas do espírito do mal (MOTT, 1993), ou seja, está subjacente uma valoração negativa da criança. Nessas vertentes teológicas, as crianças são impuras, e só podem integrar à comunidade dos filhos de Deus quando submetidas aos rituais purificatórios. Certas seitas heterodoxas justificam a prática do infanticídio ritualístico como uma solução para afastar certos capetinhas do rebanho dos santos, pois essas crianças ameaçam poluir a comunidade dos eleitos.
Para Gimeno Sacristán (2005), a tradição cristã que percebe a criança como a corporificação do mal tem como principal referência teórica o quarto livro Esdras, que foi escrito por um judeu, um século depois de Cristo. Nesse livro, que teve uma importante divulgação entre os cristãos, Adão aparece como o responsável pela queda de toda raça humana e legou a toda sua descendência a semente do pecado. Essa doutrina foi difundida por Santo Agostinho, que antes de sua conversão era maniqueísta. De acordo com essa vertente do cristianismo, a prática do batismo tem como objetivo primordial liberar as crianças desse pecado original herdado. Mott (1993) lembra que na tradição católica, “o ritual do batizado incluía o exorcismo, acreditando-se que antes de ser lavada pela água sacramental, a criancinha era presa de Satanás” (p. 124).
Do pecado de origem, surge o desequilibro do ser humano, assim um conflito estabelece-se entre duas dimensões: a carne (o corpo), que simboliza as tendências que expõem a pessoa ao mal, os apetites em busca de prazeres e satisfações e o espírito (a alma), que representa a razão iluminadora da justa vontade que a distancia do pecado e a aproxima de Deus (SACRISTÁN, 2005). A pedagogia, a disciplina rigorosa e quase sempre violenta, constitui-se, nessa abordagem religiosa, uma importante ferramenta para assegurar o predomínio do espírito sobre carne. As punições físicas são utilizados a fim de promover a renúncia às satisfações dos prazeres e às necessidades do corpo. A encíclica Divini illus magistri, publicada por Pio XI em 1929, deixa recomendações aos educadores:
A estupidez está ligada ao coração do jovem; a vara da correção a distanciará dele. Portanto, é preciso corrigir as inclinações desordenadas, fomentar e ordenar as boas, desde a mais tenra infância e, sobretudo, é preciso iluminar com verdades sobrenaturais e os meios da Graça, sem a qual não é possível dominar as perversas inclinações nem alcançar a devida perfeição moral (...). Por isso mesmo, todo naturalismo pedagógico é falso [...], e é errôneo todo método de educação que se funda, em todo ou em parte sobre a negação e o esquecimento do pecado original e da Graça e, portanto sobre as formas solitárias da natureza humana (apud SACRISTÁN, 2005, p. 90).
Essa concepção da natureza humana marca uma espécie de antropologia negativa que justifica as atitudes precavidas e as práticas repressivas contra o mal. Tal tradição vê com receio, quando não terror, a natureza irrefreável que as crianças expressam ocasionalmente. A idéia de que o homem nasce marcado pela culpa coletiva do pecado original de Adão e a visão maniqueísta sobre a maldade natural do homem contribuíram para perpetuar a crença de que na criança existe algo maligno contra o qual é preciso sempre se prevenir.
A crença na maldade das crianças legitimou durante muito tempo o tratamento distante, duro e agressivo destinado a elas. Na unidade familiar os maus-tratos, a rudeza e o castigo foram justificados como benéficos para crianças e jovens. Muito ditados populares ilustram essa forma de conceber a criança, como os que dizem: “Não quer bem seu filho quem diminui seu castigo; As crianças devem ser disciplinadas quando ainda pequenas, porque depois não há castigo para elas; Amor de criança, água em cesto; Quem te quer bem te fará chorar, e quem te que mal, rir e cantar; Aprenda chorando; rirá ganhando; Aprender é amargura, o fruto é doçura” (apud SACRISTÁN 2005, p. 87).
REFERÊNCIA:
SILVA, Maria Aparecida A. da. A violência física intrafamiliar como método educativo punitivo disciplinar e os saberes docentes. 2008. 224 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008.
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