O artigo que segue é da psicológa Isabel Hamud e discute o que está por trás das humilhações aos presos do Arizona, obrigados a usar roupas cor-de-rosa. Isabel, que é especialista em Psicologia Jurídica e trabalha no sistema prisional paulista, explica por queremos matar desejos que não aceitamos e conclui: mais do que o exagero do controle, é preciso respeitar a diversidade (Marcelo Semer).
Recentemente foi divulgado num programa popular de domingo uma breve reportagem sobre Tent City, prisão ao ar livre em Phoenix, capital do Arizona, montada em tendas de acampamento e planejada pele xerife local, Joe Arpaio. A chamada dizia tratar-se de um lugar onde os presos são obrigados a usar cuecas pink. Além das cuecas, meias, toalhas e lençóis são da mesma cor, em diversas tonalidades de rosa.
A reportagem dizia ainda, em tom bastante jocoso, que um aviso luminoso no alto da torre de observação, de 15,4 metros de altura, pisca ao longo de 24 horas “Há vagas”. O polêmico Arpaio comanda outras 5 prisões semelhantes no condado de Maricopa; e, em 2012 se candidatará ao sexto mandato consecutivo como xerife.
Foi realizada uma enquete questionando se a população concordava com a postura do xerife, que determinou o uso da cor pink com o intuito de humilhar os presos. A enquete começou a valer imediatamente após um repórter dizer que, diferentemente do Brasil, nos EUA o objetivo é claramente a punição e não a “ressocialização”. O resultado da enquete foi que 89% dos que participaram concordava com o xerife.
Fiquei intrigada com a questão e fui pesquisar mais a respeito. Descobri que o interesse jornalístico por aquele local é bastante grande e que há inúmeras reportagens brasileiras desde 2008, especialmente pelo fato de Mike Tyson ter sido preso em Tent City naquele ano, acusado de dirigir sob o efeito de álcool e por posse de cocaína em 2006. Alias, um dado que parece mero detalhe (tanto que não foi apresentado na reportagem televisiva), mas que se fará relevante: os presos de Tent City são, em sua maioria, imigrantes ilegais que não portam documentos ou que têm pendências com agências americanas e que foram detidos por dirigir sem carteira de habilitação ou sob efeito de substâncias psicoativas, como álcool e drogas, ou ainda, por porte de entorpecentes.
Pois bem... mais que a curiosa figura deste xerife, me despertou interesse a reação do público que, convenhamos, era de se esperar. Nenhuma surpresa há no fato de o público aclamar como algo muito interessante e até mesmo (porque não?) divertido essa atitude do xerife. Além da hostilidade, existe um clamor social para que essa população “pague” pelo delito cometido.
O que me intrigou, portanto, não foi o resultado da enquete, mas sim o que está por detrás de tudo isso... o que queremos dizer quando achamos uma “grande sacada” essa tortura travestida de brincadeira. Talvez não seja tão disfarçada assim, pois é visível que a intenção é justamente humilhar. Mas (e aí vem a inquietação!)... porque aceitamos uma prática tão nonsense sem quaisquer questionamento??
A resposta é simples: porque ela está distante e afeta o diferente!
Acredito que aqueles que concordam com esse xerife encontraram uma válvula de escape para uma pequena quantidade de energia psíquica; analisando superficialmente: criou-se um chiste. Chiste nada mais é senão uma forma que um conteúdo censurado inconsciente encontra de emergir e acessar a consciência disfarçadamente, descarregando, assim, uma agressividade reprimida.
Em outras palavras, o conteúdo aparece obnubilado por uma piada e gera o riso, uma descarga psíquica que trás consigo uma sensação de alívio sem que se quer percebamos o movimento que o inconsciente fez para driblar a análise crítica. Traduzindo em miúdos: “Não é sério!”.
Mesmo quando conseguimos entender o mecanismo do chiste, há ainda, neste caso, um segundo mecanismo: a projeção. Seria como dizer: “Entendo que é sério, mas não levo em consideração porque acho que eles merecem!” ou, “eles precisam ser punidos”.
Mais uma vez, somos iludidos com a "sensação" de punição, como se um desejo estivesse sendo atendido. Mas, pensemos... Se vestir cor de rosa fosse uma punição, deveria ser, no mínimo, efetiva! Do ponto de vista comportamental, “a punição é um processo no qual reduz-se a probabilidade de determinada resposta (comportamento) voltar a ocorrer através da apresentação de um estímulo aversivo, ou a retirada de um estímulo positivo, imediatamente após a emissão de determinado comportamento indesejado”!
Portanto, a punição até pode extinguir um comportamento, mas além de muitos efeitos adversos indesejados, há de se considerar o valor do estimulo... o que é aversivo para um pode não ser para outro. Então, além da dificuldade de punir na seqüência, existe a dificuldade de punir com o estimulo certo!
Já do ponto de vista psicanalítico, a punição externa só é efetiva para aquele sujeito que já é atormentado pela necessidade de punição (que é interna, vem do Supereu, e expressa um forte sentimento inconsciente de culpa). É complicado... a pessoa mais “certinha” se sente mais culpada por qualquer deslize e acha que merece sofrer e ser punida. Logo, ela mesma se pune e não precisa de alguém dizendo que é errado.
Já quem não tem um Supereu bem estruturado ignora sua culpa e não há nada interno que o condene ou atormente sobre seus erros, então de pouco vale uma punição externa porque ele já não ouve nem a si mesmo!
Há ainda de se pensar acerca da precisão de uma punição. Fato: é proveitosa a vida gregária... mas também bastante incômoda! Para se beneficiar das vantagens e evitar o enfado de uma sociedade, é necessário um acordo comum em que sejam estabelecidos direitos, deveres e conseqüências.
O Direito e as leis servem, portanto, para ponderar as vantagens e os percalços e para controlar as relações. O problema, inerente, é que quem faz as leis está inserido no contexto de sua aplicação... então chegamos à velha questão: "a serviço de quem a lei está? Para quem ela serve?". Não pretendo estender a questão para a análise do tipo penal, isto é, a eleição do comportamento a ser punido. Mas sabemos que é mais uma variável a ser considerada.
Voltando à prisão cor-de-rosa, psiquicamente falando, SE é que tudo isso tem alguma utilidade, só funciona pra atender demandas internas do xerife... como grande parte da população se identifica com o "durão", acha divertido e pensa que foi uma ótima sacada! Não foi nada e não mudou nada, mas gerou um alívio psíquico que dá a sensação de que algo foi feito. Se alguma originalidade há, é a idéia de não roubarem as roupas quando vão embora... isso parece que funcionou. Só isso!
Ocorre, neste caso, a mesma lógica do bullying: execrar o diferente destacando a diferença para gerar uma distância ainda maior. Não é que o outro seja diferente, eu é que não posso ser igual a ele, uma vez que não aceito e condeno sua diferença.
Se o criminoso é bandido por cometer um ilícito qualquer, preciso me certificar que ele é muito diferente de mim para reforçar que nunca serei criminoso, ou que nunca cometerei seus erros. Por isso somos tão complacentes com alguns comportamentos e tão ferozes com outros. Aqueles que não admitimos para nós mesmos, condenamos no outro.
É importante destacar que justamente a resistência à diferença, o horror a ela, sempre foi causa ou pretexto de inúmeros os genocídios e atos bárbaros da história da humanidade.
Não ficarei surpresa se um grande admirador instantâneo do tal xerife não reconsiderasse ao ouvir um argumento do tipo: “Os acusados de crimes violentos, como estupro e assassinato, ficam nas cadeias tradicionais em vez de em Tent City.” O que, de fato, é verdade.
Queremos matar o desejo que não aceitamos em nós! Destaco: MATAR. (Porque será que odiamos assassinos??). Quanto mais forte esse desejo, maior a repulsa e, conseqüentemente, maior a intolerância que, se não admito ser interna, projeto para fora e não sou capaz de perceber que estou sendo tão igual ao outro que condenei por ser diferente. Mais uma vez, uma válvula de escape!
Vocês não se impressionam como nosso inconsciente é habilidoso?? E, ao mesmo tempo, tão desprezado... se parássemos para ouví-lo reduziríamos a tensão do pobre Eu (ego) que esforça-se tanto para conciliar a demanda inconsciente com a censura superegóica e, ainda, com a realidade externa.
E então, finalmente, o que pode ser feito?? Penso que por mais que conheçamos melhor nossa realidade psíquica e analisemos as condições externas, não é possível imaginar uma solução mágica e completa que responda satisfatoriamente o que pode ser feito.
Entendo a angústia da necessidade de mudança e da necessidade, mais intensa, de controle. Somos acostumados à idéia de que conhecemos o mundo para melhor prever e controlar seus eventos (ao menos é este o princípio da física e de outras ciências naturais).
Existe sim uma demanda deste tipo que exige que a psicologia se adeque ao positivismo. Acredito que a psicologia trouxe sim ricas explicações e que podemos, a partir deste conhecimento, viver melhor situados e produzir importantes transformações. Mas, de fato, não há como controlar tudo isso, penso que justamente o descontrole é que pode ser útil se soubermos respeitar tudo o que é aleatório e que gera diversidade.
Ou seja, conviver com a diferença.
Texto enviado por Marie Julie em 22 de maio de 2011 como contribuição à discussão desenvolvida pelo suplemento Almanaque sobre o bullying.
Fonte: blog Sem Juízo administrado por Marcelo Semer em 20 de maio de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)