Pedir intervenção num país com feridas abertas da ditadura é buscar causar mais dano à população
Por Magali do Nascimento Cunha
Tenho acompanhado postagens de amigos em mídias sociais e a perplexidade deles com o que têm assistido nestes espaços.
Fica nítido que qualquer opinião em torno de defesa de direitos e justiça ou de apoio a movimentos e ativistas por estas causas geram reações como: “que é isto? virou petralha?”, “Esquerdopata mesmo” ou “Cambada de comunistas!”. Isto é, quando alguém se irrita com a busca por direitos e justiça, estas expressões se tornam nova versão do antigo “é a sua mãe!”, para não mencionar sinônimos de nível mais baixo.
Causa ainda mais perturbação ler menções ao presidente Michel Temer, à Rede Globo e até às Forças Armadas como “comunistas”, como expressão de divergências quanto a procedimentos por eles assumidos.
Nestes dias, quando este clima foi intensificado por pedidos de “intervenção militar”, vi amigos classificando-os, bem como as posturas que descrevi acima, como “loucura” e “desequilíbrio emocional”, “mais uma besteira que invadiu o Brasil”, “retrato de um país infantilizado”.
Encontro-me no mesmo estado de perplexidade. E partilhando deste sentimento de tanta gente, tenho buscado refletir sobre as formas de classificar essas estranhas reações populares. Isto porque não consigo vê-las como “loucura”, “desequilíbrio”, “infantilidade”, “onda de besteiras”. Parece-me uma avaliação muito simples.
Nas minhas reflexões e leituras em busca de conclusões, deparei-me com os estudos do historiador da economia e professor da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), o italiano Carlo Cipolla. Uma de suas obras mais conhecidas é o ensaio As Leis Fundamentais da Estupidez, de 1976. Ele definiu estas leis por meio de um banco de dados criado com base em estudos científicos sobre vivências humanas.
Confesso que não conhecia este estudo e ele me impactou. Sempre considerei a estupidez algo abjeto, que pairava na minha vivência como elemento relacionado à grosseria e à rispidez. Desta forma, “estúpido” entrou poucas vezes no meu vocabulário para classificar uma ou outra pessoa rude ou situação cruel e violenta sobre a qual eu não conseguia encontrar sentido.
Nas minhas reflexões sobre estes tempos que vivemos no Brasil e a necessidade cada vez mais crescente de humanização e de paz, como tantas vezes já escrevi neste espaço, deparei-me, lendo os escritos de Cipolla, com um novo olhar sobre a estupidez. Com ele, veio a compreensão de que o que estamos vivendo em nosso país é a estupidez humana tornada pública em tal nível que ganha ares de triunfo pela visibilidade que as mídias digitais lhes proporcionam.
Digo isto baseada na Terceira Lei Fundamental da Estupidez, que Cipolla chama de Lei de Ouro. É a própria definição do termo, muito mais profunda do que a que eu vivenciava: “Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a uma outra pessoa ou grupo de pessoas, sem, ao mesmo tempo, obter qualquer vantagem para si ou até mesmo sofrendo uma perda”.
Sim! Pedir intervenção militar num país cujas feridas dos 21 anos de ditadura militar ainda estão abertas, e que ainda sofre com práticas herdadas daquele período, é buscar causar mais dano a esta população sofrida, e prejuízo que pode se abater sobre as próprias pessoas que o demandam. Estupidez!
Por isso, a Primeira Lei de Cipolla também me ajudou muito a entender porque pessoas dos mais diferentes grupos humanos e sociais, independentemente de cor, condição econômica, escolaridade, faixa etária, religião, xingam seus opostos de “comunistas” e pedem que os quartéis tomem o poder do Brasil.
Esta lei, que abre o estudo do pesquisador italiano, afirma que “Sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação”. Basta ser humano para se viver a estupidez, independentemente das condições que descrevi acima.
A Quarta Lei Fundamental da Estupidez também contribuiu nas minhas reflexões: “As pessoas não estúpidas subestimam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas”. Com esta lei, emerge o alerta de que somos geralmente levados a acreditar que uma pessoa estúpida faça mal somente a si própria, mas isto significa, para Cipolla, “enfrentar a estupidez com a ingenuidade”. Como visto acima, o dano causado pela estupidez é coletivo.
Cipolla expõe o desafio da busca da sabedoria (inteligência) para contrapor a estupidez. Para ele, os sábios “são os que agem em busca de benefícios para as demais pessoas e grupos sociais e incluem a si próprios.”
Por que trazer este assunto em um espaço denominado “Diálogos da Fé”? Assim como no campo popular temos nossos poetas que estão atentos a esta situação, como Gilberto Gil, que canta “Gente estúpida!”, questionando a desigualdade e o abuso de poder (“Nos barracos da cidade”), temos no universo religioso poetas que denunciam o papel nocivo dos estúpidos. Nessas abordagens, estes seriam os que contrariam a vontade de Deus baseada na sabedoria.
Na Bíblia cristã são muitas as expressões poéticas e de sabedoria popular que desafiam o tema, correspondendo ao que o italiano Carlo Cipolla indica.
Compartilho algumas:
“Até quando, Senhor, os perversos, até quando exultarão os perversos? Proferem impiedades e falam coisas duras; vangloriam-se os que praticam a iniquidade. Esmagam o teu povo, Senhor, e oprimem a tua herança. Matam a viúva e o estrangeiro e aos órfãos assassinam. E dizem: O Senhr não o vê; nem disso faz caso o Deus de Jacó. Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós, insensatos, quando sereis sábios?” (Salmos 94.3-8).
“Os sábios entesouram o conhecimento, mas a boca do estúpido é uma ruína iminente” (Provérbios 10.14)
“As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa entre estúpidos” (Eclesiastes 9.1)
Ao final deste artigo compartilho que seguirei nas minhas reflexões, buscando superar a perplexidade, na trilha de ações baseadas na sabedoria cristã humanizante, pacificadora, misericordiosa e amorosa, incluídos os espaços digitais. Uma inspiração são as palavras do apóstolo Paulo: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará. Portanto, vede prudentemente como andais, não como estúpidos, e sim como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus” (Efésios 5. 14-16).
Magali do Nascimento Cunha -Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É colaboradora do
Conselho Mundial de Igrejas. Escreve às quintas-feiras
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