Upa neguinho
Upa neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Vixi, que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
Upa neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Vixi, que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
Começando a andar, começando a andar
E já começa a apanhar
Cresce neguinho me abraça
Cresce me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça mas muito eu te posso ensinar
Capoeira, posso ensinar
Ziquizira, posso tirar
Valentia, posso emprestar
Liberdade só posso esperar
Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri – 1967*
Negrinha
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?
Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus
primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e
trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do
mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo
reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala
de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências,
discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes
apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os
nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua
carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia,
longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão?
O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela
para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão.
Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os
olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato
sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe
sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra
provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava.
Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a
boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto
nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco
horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e
cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por
dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe
iam a espichar trancinhas sem fim.
Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira
uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa,
pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam.
Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande
novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a
palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria
um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais,
cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não
houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a
mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos
comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De
passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de
judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas
ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera
ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a
polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou
dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas
não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os
frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres
bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os
níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam
no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom!
bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos
beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente
ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões
a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino”
nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando
em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades
do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de
Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o
fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a
mimoseavam todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e
foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de
derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as
banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a
ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns
minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que,
encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando
o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os
olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na
boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até
que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas
só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez,
ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o
trono, a fim de receber o vigário que chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida...
Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas,
minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa
Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas
e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem
pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de
cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la
armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê?
Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e
aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a
festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe
chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os
dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de
angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a
triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas,
curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de
vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de
Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí
afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! —
refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só
brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha
arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E
mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava
“mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma
boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma
criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a
senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha
esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça.
Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo
que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como
coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a
boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e
para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si,
literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um
filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo
que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e
esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa
extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que
o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher.
Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido,
passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de
castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos
olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a
coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu,
doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também,
mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda
de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e
sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi
naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a
mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo.
Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca —
preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta
a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da
boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que
trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se
elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia
impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando
consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si
Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e
na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza
infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos.
Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu
trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!...
Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer
mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação.
Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos,
como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O
delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E
bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se
agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo
regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e
pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença
aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas
impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca
vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”
Monteiro
Lobato
______________
*Upa Neguinho - (1967)
Compositores: Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri
Interpretação: Elis Regina
“Juntaram-se nesta música 3 dos maiores talentos da cultura brasileira: Edu Lobo, músico, compositor, violonista e arranjador; Gianfrancesco Guarnieri, ator e autor teatral, escritor e letrista e Elis Regina, a maior cantora brasileira de todos os tempos” (Fonte: Só MPB )
Foto: divulgada no site Histórias de Alagoas
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)