É preciso não esquecer: dez adolescentes e jovens, entre 13 e 19 anos, morreram em um incêndio no Centro de Internação Provisório (CIP) de Goiânia, no último dia 25 de maio. Eles se encontravam presos em uma instituição superlotada, sendo que três ainda não haviam sido sequer condenados.
Em entrevista ao Justificando, o Defensor Público do Estado de Goiás Tiago Gregório Fernandes destacou a situação de superlotação, falta de infraestrutura e maus tratos vivida pelos adolescentes, e demonstrou preocupação pela falta de repercussão sobre o caso. Confira na íntegra:
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Primeiramente, um esclarecimento: foram dez adolescentes mortos, mas havia 11 adolescentes internados, certo?
Sim, foram 10 mortes. Nove adolescentes morreram no dia 25 de maio, sendo que o décimo, que chegou a ficar internado e teve um braço amputado, morreu há uma semana. No Alojamento I, da Ala A, do Centro de internação Provisório – CIP, havia onze jovens em cumprimento de medida de internação. Ocorre que, durante o incêndio, um deles estava de fora, em atendimento com a Equipe Técnica.
Havia liminar contra o funcionamento do CIP. Então por que os adolescentes continuavam lá?
Em 10 de setembro de 2013, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) ajuizou Ação Civil Pública tendo como objetivo impedir superlotação das unidades de cumprimento de medida socioeducativa de internação, visando proibir a permanência e ingresso de novos socioeducandos acima da capacidade máxima das unidades – que no CIP é de 52 internos – bem como restringir a ocupação dos centros de internação de Goiânia preferencialmente a adolescentes da capital e região metropolitana.
Em 17 de dezembro do mesmo ano foi deferida a liminar pleiteada pelo MP-GO para fixar como limite máximo de socioeducandos a permanecerem internados na unidade o número de 52 adolescentes. Reafirmando a situação de ilegalidade, em 16 de março de 2016 sobreveio sentença que confirmou a liminar e julgou procedente os pedidos formulados pelo órgão ministerial.
Contudo, a despeito da mencionada decisão, a situação de superlotação se perpetuou durante os anos seguintes, conforme constatação da Defensoria Pública do Estado de Goiás, sempre com superlotação rotineira superior a 50% da capacidade máxima. Em que pese rotineiramente invocada pela Defensoria Pública a tese de permanente tortura, decorrente da superlotação, reconhecida por sentença em Ação Civil Pública, o Judiciário não vinha acolhendo a tese, tanto que na antevéspera do incêndio, havia aproximadamente 80 adolescentes e jovens cumprindo internação.
A ilegalidade vai além da superlotação, já que o CIP está instalado em área do Batalhão da Polícia Militar, mais especificamente, no 7º Batalhão da Polícia Militar do Estado de Goiás, em flagrante violação ao disposto no Art. 123 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quanto a isto, especificamente, em 7 de agosto de 2012 o MP-GO firmou com o Governo do Estado o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo qual o Estado de Goiás assumiu, entre outras obrigações, o dever de construir, implantar e manter em Goiânia nova unidade de internação destinada ao atendimento de adolescentes autores de ato infracional em cumprimento de internação temporária, com a consequente desativação do Centro de Internação Provisória-CIP No início deste ano 2018, foi ajuizada, pelo MP, a execução do TAC, inclusive, no que pertine a desativação do CIP.
Acontece que a questão da estrutura física do Socioeducativo do Estado de Goiás, enaltecido nestas ações, não chega a ser o ponto crucial da violação de direitos humanos, conforme sempre ressaltou a Defensoria Pública. Há algum tempo, sobretudo a partir de um Relatório de Inspeção concluído em junho/2017, a Defensoria Pública do Estado de Goiás tem pautado com o Executivo e todo o Sistema de Justiça a falta de projetos socioeducativos: não há atividades educacionais, atividades esportivas, profissionalizantes, atividades externas, falta de água, sequer o banho de sol acontecia/acontece com regularidade mínima.
O Relatório de Inspeção da Defensoria Pública, que ao final apontava para diversas violações de direitos humanos, recomendava ao menos 30 providências imediatas, e já noticiava a prática de os adolescentes protestarem contra estas inúmeras violações “ateando fogo em colchões”, prática também comum no Sistema Prisional dos adultos.
Daí que, a simples interdição do CIP, com a transferência irrefletida dos adolescentes para outra unidade de Goiânia, conhecida como CASE (Centro de Atendimento Socioeducativo), também representaria uma outra violência. Na verdade, em que pese a falta de projetos socioeducativos ser evidente nos programas de internação executados em todo o Estado, a equipe técnica no CIP aparentemente, por si, vinha tentando alguns projetos, contando com a boa adesão dos internos. Curioso é que a preferência geral dos adolescentes é permanecerem cumprindo a internação no próprio CIP, temendo sua transferência para o CASE (que, embora estruturalmente mais adequado, padece ainda mais de atividades pedagógicas).
Qual o perfil dos jovens mortos? Estavam lá há quanto tempo?
Os jovens que morreram em razão do episódio do dia 25 de maio, tinham entre 15 e 19 anos de idade. Dois deles, internados provisoriamente, ainda sem sentença; três deles, embora sentenciados, a respectiva sentença que aplicou a medida extrema de internação ainda não havia transitado em julgado. À maioria, imputada a prática de ato infracional equivalente a crimes contra o patrimônio.
Um deles, a quem imputado ato infracional equivalente a homicídio tentado, sempre negou dolo, reivindicando apresentação do laudo pericial de lesões corporais da vítima, um dos fundamentos da apelação interposta pela Defensoria Pública. Não possuía antecedentes infracionais.
Esta é uma tragédia que deveria ter tomado maiores proporções, afinal são dez jovens mortos. Porque você acha que não se fala sobre isso?
Infelizmente, o fato não teve maior repercussão até o momento. Sobretudo, porque não se conhece tragédia maior em âmbito regional, ou mesmo nacional, no histórico do socioeducativo brasileiro.
Tenta-se imputar responsabilidade e imprudência aos próprios adolescentes/jovens que morreram. Entendemos que isto é inadmissível. Se não há uma violência/omissão individualizada, que recai sobre um agente estatal específico, isto não descaracteriza a violência institucional.
Tem-se, em geral, uma falsa propagação de que as medidas socioeducativas não seriam responsabilizadoras, o que cria um imaginário popular de que o Estado “passaria a mão na cabeça de adolescentes”. Infelizmente, apesar da prioridade absoluta conferida pela Constituição Federal, as questões afetas à infância e juventude ainda não alçaram este patamar. Basta ver que as próprias faculdades de Direito, de onde se originam os integrantes do Sistema de Justiça, não têm o Direito da Infância e Juventude como matéria curricular obrigatória.
O Estatuto da Criança e do Adolescente enaltece, há quase 30 anos, a condição de sujeito de direitos, de crianças e adolescentes. Nossa frágil educação em direitos ainda não reconhece isso na prática. Esperamos que a conclusão das investigações ainda jogue luz sobre este dramático problema.
Como você avalia as políticas públicas para com jovens infratores no estado de Goiás? Como você avalia o impacto dessas mortes nessas políticas?
Se há algum sentido na perda trágica de dez vidas adolescentes, esta, sem dúvida, é a possibilidade de podermos reverter as mazelas vivenciadas pelos adolescentes em “conflito com a lei”, não só no Estado de Goiás, como no Brasil. Fundamental será o papel da imprensa em não deixar o fato cair em esquecimento, não só pela dignidade da família dos meninos que morreram, mas também, para que o fogo que os incendiou nos permita enxergar como a infância e a juventude brasileiras vêm sendo tratadas: desde o acesso à educação infantil, até a dignidade do cumprimento da medida extrema de internação.
Como está sendo o trabalho realizado junto às famílias?
Na verdade, a Defensoria Pública se predispôs a concentrar, inclusive em conjunto com as famílias que são assistidas por advogados, as informações e estratégias para postulação de indenização e eventuais outras ações de responsabilização, não perdendo o foco para a tutela coletiva, que se difundirá para todo o sistema socioeducativo.
Por: Lígia Bonfanti - Justificando, 26 de junho de 2018.
Imagem: Defensoria Pública de Goiás
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