"As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural”.Graciliano Ramos - Livro Infância
"Odeio a tua paz
Rejeito o teu perdão
Pois qualquer sofrimento
Passa mas o ter sofrido não"
Belchior
Como marcamos os corpos de nossas crianças? Recomendo que assistam o documentário "QUANDO A CASA É A RUA"
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Um cinturão – Conto de Graciliano Ramos
As minhas primeiras relações com a justiça foram
dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por
aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar
esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento.
Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
Os golpes que recebi antes do caso do cinturão,
puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe
surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas.
Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes
lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal –
e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento
da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei
ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria
causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio
pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo
é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores
longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos
no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas,
da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava
bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo
dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada.
Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai
encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa,
fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me
segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela
do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos
caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem
de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem
fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um
cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me:
atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os
modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de
significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas
lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a
zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro
gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda
que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava.
Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as
conseqüências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a
miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam
na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma
pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a
voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá
dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada
ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério
desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os
beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na
sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram
inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai
me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.
Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da
fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair
lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse
zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito,
atrás de caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os
movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão
cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro
fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber
que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu
amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as
pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de
ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro
pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava,
começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um
braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas
ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco.
Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como
carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera
sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num
desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito
prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o
olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma
interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as
pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes
de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas,
sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a
que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear
agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada
serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a
minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria
recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou:
conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando,
espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo
como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
(RAMOS, Graciliano. Um Cinturão. In: Os Cem
Melhores Contos Brasileiros do Século. Org. MORICONI, Ítalo. Rio de Janeiro:
OBJETIVA, 2000, p.144-146)
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