8 de nov. de 2015

Uma libertando a outra – Cida Alves

 
Eu e meu pai após minha defesa de dissertação de mestrado. Esse gesto de me pegar no colo foi tão espontâneo e surpreendente, não esperava. Por isso estou aí nessa gargalhada.


Uma libertando a outra
 
Por Cida Alves

Têm experiências que fecundam narrativas fortes dentro de mim. E se não dou luz a elas, sinto que morrei como algumas mulheres, de parto. Essa é uma delas!

Recentemente, li um artigo de Camila Kfouri, intitulado “O gol é masculino. A bola é feminina. E se move” (artigo que integra a campanha #AgoraÉQueSãoElas). Nele, a autora rompe o silêncio sobre uma violência sexual que sofreu em sua infância. Nessas situações, quebrar o silêncio é um gesto de coragem. E os corajosos sempre terão o meu amor!
 
Todavia, por que exatamente esse texto fez romper com o meu próprio silêncio?
 
Primeiro, porque ela o faz para atender um pedido do pai. Que pai maravilhoso é esse que clama pela libertação da filha? Lúcido e amoroso, ele sabe que a palavra liberta. Que filha maravilhosa é essa, que atende a tal pedido? Com certeza, uma daquelas filhas que fazem das tripas coração para atender um pedido amoroso do pai. Em nome do pai e do amor, ela se liberta de um segredo.

Segundo, porque ela fala da violência que sofreu sem narrar detalhes. Nunca conseguiria narrar em público os detalhes das violências que sofri em minha vida. Para mim, certos detalhes são tão mórbidos que não me parece justo descrevê-los. Pois, poderia, assim, provocar sofrimento às pessoas que me oferecem sua escuta amorosa.

Terceiro, porque ao assumir o papel de narradora da própria tragédia, Camila nega a ideia de resignação ante a violência sofrida e o papel de vítima.

Não falar de maneira clara e aberta das violências sexuais que sofri foi até agora uma forte resistência ao “vestido de força”, que é o papel de vítima. Meu tamanho é GG, minha imensidão não cabe nesse manequim.

Empoderada, sem resignação, somente assim poderia tratar desse assunto em público. Não perfilarei aqui as violências cometidas contra a minha integridade sexual, contarei apenas duas, a primeira e a última. 
 
Primeira história

Eu tinha 10 anos. Era véspera do Dia dos Pais. Eu, uma menina querendo encontrar uma maneira de conseguir dinheiro para comprar um presente bonito para expressar o meu amor por meu pai. A lembrança é imponderavelmente nítida.

Eu, uma menina “alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais” (Belchior). Absolutamente aberta ao contato com o outro e o mundo. Ele, um homem desconhecido que passava na cidade em razão das festividades da Feira Agropecuária.

A abordagem foi na calçada da sapataria de meu pai. O diálogo foi esse:

- Oi menina. O que faz aí tão pensativa?
- Estou pensando em como faço pra comprar um presente para o meu pai.
- Me ensina onde tem uma loja de presentes, que te dou umas moedinhas.

Fomos até a loja e depois ele pediu para me acompanhar até minha casa. O abuso ocorreu no corredor que dá acesso à minha casa, a cerca de cinco metros de distância da loja dos meus pais. Eles, sempre tão vigilantes e extremamente protetores, não puderam impedir essa violência. Não foi por falta de cuidados e amor que a sofri. Muito pelo contrário, fui muito bem cuidada e amada por meus pais. A violência ocorreu porque existem homens no mundo que não amam as mulheres, porque existem adultos no mundo que não amam as crianças.

Todavia não tenho dúvidas. Essa violência alterou o projeto arquitetônico de minha identidade de mulher e, por consequência, de mãe. Cito aqui apenas uma dessas alterações, passei a carregar a crença de que algo em mim atraia essas violências. 

Recordo, como se fosse hoje, da fervorosa oração que fiz aos 15 anos, depois de ser importunada sexualmente por um amigo de meus pais, que era também marido de uma professora muito querida por mim. Sozinha, em meu quarto, eu rezei para que tirassem de mim esse algo ruim que levava os homens a me desejar.

Última história

Essa história ocorre 26 anos depois da primeira. Eram 6 horas da manhã. Estava ainda escuro pelo horário de verão. Na quadra de minha casa, quando iniciava minha caminhada diária, fui abordada por um motociclista com capacete. Com o rosto oculto ele disse:
 
- Estou armado, faça o que eu mandar!

Agora, não era mais uma menina que era intimidada. Era uma mulher que há anos se dedicou a cuidar de vítimas de violências. Era uma mulher que sabia de cor e salteado como as violências afetam as mulheres.

Instintivamente, após perceber que ele não estava armado, lutei bravamente, com forças tiradas nem sei de onde. Meus 45 segundos de resistência, braço a braço, perna a perna – e a luz do farol de um carro – me protegeram da consumação do estupro. Ele fugiu! E eu sai em disparada.

Na correria de volta pra casa, fiz a promessa de não permitir que este homem habitasse minha mente. Nada do que ele é ou fez mudará o que sou. Nada do que ele é ou fez mudará um milímetro de meus planos e sonhos. Nada mudará minha gana por liberdade e autonomia. Ele não usurpará nada que me institui como pessoa, como mulher. Ele não roubará o que considero ser mais precioso em mim, minha doçura, credulidade nas pessoas e prontidão para amá-las.  

E para demonstrar a força do compromisso que assumi comigo mesma, nesses segundos de enlouquecida disparada, após a tentativa de estupro, resolvi, neste mesmo dia, sair para o trabalho impecavelmente bem vestida. Às 8 horas da manhã eu já estava na mesa de meu gabinete. 

A musculatura de minhas costas e braços estava em frangalhos. Tudo doía, mas o meu espírito está ali altivo, soberano. Não peguei a pistola e disparei contra meu algoz, como faz Anselma Guzman na canção mexicana. Triunfei de outra forma. Porque, assim como Anselma, decidi que sou eu a dona de meus caminhos.
 
Eu e minha calda de filhotes, é nessa ninhada que me sinto "eu melhor"

Filhas do meu coração, minhas descendentes! É aqui que eu queria chegar. Não sei se meu amor tem potência para livrá-las de todas as violências. Mas ele me obriga a dizer em alto e bom som: vocês são e serão para os meus olhos sempre perfeitas, integras e belas*. 

Prometam comigo: não deixem que nada e nem ninguém roube suas melhores qualidades e expressões. Não arrendem um milímetro de seus projetos, desejos e sonhos. Aconteça o que acontecer, se mantenham sempre firmes. Os dados ainda estão rolando e amanhã viraremos juntas o jogo.

Entendam bem. Violência não é o mesmo que agressividade. A agressividade é um instrumento de autodefesa. Ela está sempre a serviço da vida e da integridade física dos seres vivos. Aprendam a usar bem a agressividade de vocês. 

Seus corpos, com seus desejos e necessidades, devem ficar sobre governo de vocês. O desejo do outro é de responsabilidade só do outro. Não permitam que ponham burcas em seus corpos, muito menos em seus espíritos. Rasgue-as todas em mil pedacinhos. 

Sejam o que acreditam ser. Tentem ser melhores a cada novo dia.

Por fim, repasso a vocês o pedido que certa vez um amigo me fez: “Liberte a palavra!”










Cida Alves, 04 de novembro
Psicóloga, doutora em educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás - UFG. Em 1986, inicia seu ativismo pelos direitos das crianças e dos adolescentes. Há dezoito anos atua na saúde pública atendendo pessoas em situação de violência.  



* Belas no sentido que Gabriel Garcia Marques dá ao nominar “Remédios la bella”.
 
Fotos: Rosimar Silva -  Goiânia, 2008; Magno Medeiros, Itaúnas, 2005 e Eduard Canals Andreu, Vilafranca, Catalunya, 6 de agosto de 2014.

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