“Todas as tristezas podem ser suportadas se você as coloca numa história ou conta uma história a seu respeito.”
Hannah Arendt
Brasília - A gente sabe quando leva um tapa na cara e sabe dar nome a ele: agressão física. A gente sabe dar nome à violência quando alguém tira a vida de outra pessoa: homicídio. Sabe também falar “estupro” quando um desconhecido transa à força com uma mulher (quando é conhecido, dificilmente essa violência é reconhecida como estupro). Isso tudo na vida de milhares de mulheres é real, cotidiano e muito grave. Mas há outra realidade que é presente na vida não de algumas (milhares). Mas de todas. Sem exceção.
Dá um nó na garganta. Um frio na barriga. Uma confusão na cabeça. O chão some. Há de se fazer um esforço pra entender. Há um impulso em jogar a dor para seu colo assumindo uma culpa própria. Mas aos poucos vamos percebendo que é violência sim e só acontece porque somos mulheres. Essa percepção pode se dar mais cedo, mais tarde, pode nunca acontecer. Mas uma coisa é certa, uma mera campanha com hashtags na internet joga luz para aquilo que a gente leva para o travesseiro, junto com lágrimas antes de dormir. Leva para terapia. Ou, para as que já descobriram essa força, para o compartilhamento com outra ou outras mulheres que vão saber entender, acolher, refletir e confortar.
Nessa primavera feminina que inclui milhares de mulheres nas ruas contra o projeto do Cunha (PL 5069/2013), outros milhares de jovens escrevendo sobre violência contra mulher e respondendo questões sobre Simone de Beauvoir nas provas do ENEM, a internet ofereceu de forma criativa uma forma das mulheres colocarem para fora essa violência calada, sutil e velada. Começou com #meuprimeiroassedio, quando as caixinhas da memória afetiva foram abertas retomando aquelas histórias doloridas que, muitas vezes, nem se sabia entender como assedio. (Eu mesma me dei conta de meu primeiro assédio, que foi aos seis anos de idade, com quase 18 anos).
Nos últimos dias tem sido a vez de #meuamigosecreto, quando as mulheres denunciam comportamentos machistas e preconceituosos de pessoas de seu convívio. A campanha é ainda mais interessante porque carrega as contradições destes amigos. Os que se dizem feministas (e de esquerda), mas que se recusam a compartilhar as atividades domésticas e paternidade. Os que defendem o amor livre e direito da mulher ao domínio de seu corpo, mas dizem como a namorada tem de se vestir, se comportar. Ou têm relações fora do relacionamento, mas não admitem que ela tenha porque morre de ciúmes. Ou os que se dizem superfamília e cristão, mas quando a namorada engravida a coage a abortar. As contradições são inúmeras e você aí do outro lado tem alguma para apontar. Por trás dessas campanhas há algumas coisas que queria compartilhar.
Pode parecer óbvio e natural para muitas mulheres que estamos diária e cotidianamente submetidas a relações de opressão patriarcalista. Mas eu diria que para maioria não é. Por essa razão, quando uma mulher está passeando livremente por sua timeline no Facebook e se depara com uma campanha como essa, reconhecendo histórias familiares, elas se voltam para si. Buscam em seu histórico o que já viveram. Pode ser, para muitas, o primeiro momento em que se dão conta de que foram e são violentadas. Que aquela tristeza que sentem nessas situações se chama opressão. Que não é sua culpa. E por mais que seja corriqueiro, não deve ser assim.
Elas não precisam carregar isso para si a vida inteira. Podem falar, podem compartilhar e vai ter muita mulher para acolher sua história e sua dor. Por isso mesmo, essa ferramenta que pode ser entendida como brincadeira, pode ser também poderosa para mostrar que várias dorzinhas juntas somam-se, como tijolos, formando um enorme muro que precisamos olhar. E precisamos desconstruir.
Essas campanhas exigem coragem. Porque é enorme a chance de seu amigo secreto ou de seu assediador estar entre seus amigos nas redes sociais e todos saberem a quem você se refere. Acontece que nossos amigos secretos e nossos assediadores não são monstros. Não são loucos. Sobretudo, não são desconhecidos. Pelo contrário, dividimos histórias com eles, compartilhamos sentimentos profundos, sinceros e bonitos. Porque eles estão ao nosso lado, o tempo todo. Dividimos casa com eles. A cama, a mesa do trabalho, a sala de aula, a militância. Eles ocupam os espaços que nos definem. Por esta razão, dói falar. Dói se dar conta de que quem você ama, admira ou compartilha experiências, é o mesmo que te machuca, te humilha, te indigna, te diminui, te faz sofrer.
Quanto mais próximo, mais difícil enfrentar. Por isso, é compreensível o silêncio e imobilização de muitas mulheres. Não quer dizer, contudo, que tenhamos que aceitar e deixar passar. Há sim, de se desconstruir e isso começa com a exposição do que vivemos e sentimos. A dor, solitária, dá mão a outras dores e ganham visibilidade para que os opressores (nossos amigos, sim) vejam, se incomodem, se dêem conta de que nos fazem sofrer.
Para violência física é preciso uma resposta: punição. Cadeia. Então, para os opressores que estupram, que batem, que matam não podemos exigir nada menos que um Estado fortalecido e rígido na punição contra esses crimes e na proteção das mulheres. Mas e para os opressores que assediam e que são nossos amigos secretos que machucam? O primeiro passo: eles têm de saber que provocam dor. Eles têm de ver estampada em sua timeline a sua contradição. Isso incomoda, sim.
Há um tempo, vivendo e pensando o machismo, me veio uma conclusão um pouco simplória. Não há nenhum homem que não seja machista. Se em casa a formação foi feminista, da porta para fora há um mundo que não é. Se no mundo descobriram que há muito machismo que deve ser descontruído, em casa tiveram uma formação difícil de ser abandonada. O que diferencia, então, um homem do outro em relação a seu machismo? O quanto o reconhecem e o quanto estão dispostos a enfrenta-lo e muda-lo. Há, aos montes, os que não reconhecem e muito menos estão dispostos a enfrenta-lo. Eles estão por aí latindo contra a campanha. Usando de todas as argumentações desonestas para não colocar a crítica no colo. Desses, amigas, a gente tem que correr.
Mas há os incomodados e eles são muitos. Porque reconhecer também dói. Ver a carapuça servindo perturba. E talvez não haja nada mais incômodo na construção de quem somos do que nos depararmos com nossas contradições. Com o descompasso do que fazemos e dizemos. Do que defendemos e do que fazemos quando estamos fora da luz pública. Nesse exercício, seria produtivo que nossos amigos secretos respondessem a isso como um rapaz na minha timeline. “Minha carapuça serviu em vários. Não vejo essa campanha como escracho, mas como pedagógica”.
E é sim um processo pedagógico. Para destruir esse muro que nos separa de um espaço de menos dor, mais respeito ao que somos, mais coerência, os tijolos desse enorme muro devem ser tirados um a um. Isso só pode acontecer se o machismo for percebido, reconhecido e encarado. Mas, para isso, temos que falar. Temos que expor. Temos que incomodar. Ou como diz Hannah Arendt, todas as tristezas podem ser suportadas se você as coloca numa história ou conta uma história a seu respeito.
Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com
Fonte: a redação, em 25 de novembro de 2015.
Foto capturada no Library of Congress
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