“Mulheres relatam violência trazida pelo desenvolvimento em Goiana e no Cabo”, diz o jornal. O culpado foi o desenvolvimento, o tamanho do vestido, o lugar em que ela foi se meter naquela hora da noite. Na notícia “mulher é morta” e não “marido mata”. A palavra “feminicídio” no jornal? Provavelmente se for pra criticar o termo. E seguimos sob o manto da naturalização da violência contra as mulheres.
“Desça daí, menina! Você vai cair!”. Começa assim. Quando o sexo entra em cena, o que nos ensinam vem na forma de obrigações e medos. A sorte é que a gente é desobediente. Um professor e promotor de justiça se referiu a Simone de Beauvoir como “baranga francesa”. Vereadores de Campinas, nervosíssimos, fizeram moção de repúdio à questão do Enem que cita a filósofa. Falaram que a inciativa de citar ela é “demoníaca”. Bom dia, 2015!
Tem também o apresentador, que se diz humorista, divulgando vídeo ironizando o tema da redação do Enem – “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira” – num show de machismo e transfobia, sob os aplausos e risos empolgados de umas dúzia de estúpidos que estavam no programa e o aval de mais de 230 mil curtidas/compartilhamentos rede social afora, além de outros tantos mil comentários nauseantes.
As proibições das mulheres quando o assunto é sexo é proporcional à naturalização do estupro contra elas. Vale tudo se for pela violência, vale até pai estuprar a filha e, por lei, ser o pai legítimo do neto. Se for pra gente gostar, não vale nada. A gente só tem o direito de ser violentada mesmo. Em graus variadíssimos, mas no fim é isso. Os mesmos homens que acham ok babar em cima da menina de 12 anos e chamar ela de vagabunda safada vão achar um absurdo se a filha de 12 anos pensar em sexo.
Não, elas não amadurecem mais cedo, só tem preocupações e responsabilidades demais, enfiadas goela abaixo desde muito cedo. Tudo parece tão simples, tão cotidiano… O quarto impecável, lavar sempre as calcinhas no banho, arrumar os cabelos direito, não falar palavrão, sentar de perna fechada, se for correr que seja não muito rápido, brincar de casinha, vassoura, panela e filhinho boneco bebê loiro, ouvir histórias de príncipes encantados, não se sujar, não brincar sozinha com meninos, não sair sem sutiã, não atrasar depilação, não namorar muito, mas não deixar de namorar, pra garantir o casamento e os filhos, ser uma mãe exemplar (enquanto o pai pode passar só pra levar pra tomar sorvete)… É tudo ligado e costurado, não vivemos num mundo legal com estupradores aqui e ali, a cultura do estupro é estabelecida e não dorme.
Nesses dias, com a campanha do #primeiroassédio (parabéns, Think Olga!) foi cuspido na rua o que todas as mulheres sempre souberam: que todas nós, sem exceção, somos assediadas incessantemente durante toda a vida e a grande maioria desde muito cedo.
Roubando o poeta… um homem tem que ter “qualquer coisa além de beleza , qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora”. E como foi bonito ver a tristeza explícita de muitos homens ao perceberem o que de fato acontece com toda e qualquer mulher brasileira.
Homens na ação, repensando falas, atos, suas presenças na vida das mulheres, isso é bonito de ver e também aconteceu por esses dias. Que cresça!
O machismo do amigo dói tanto quanto todos os outros e é tão nefasto quanto, porque crescemos, vocês e nós, acostumados com ele. Já passou da hora de perceber que machista não é só o que bate na mulher. O machismo é acostumado com máscaras, está nas músicas que a gente aprende a amar, livros que admiramos, nos nossos professores, nossos pais. Repito o que disse dia desses, que do machismo ogro é fácil se desfazer. Aguardamos o dia em que o machismo seboso deixe de ser o must do intelectual charmoso.
No meio desse movimento tão emocionante de mulheres juntas berrando pelas vidas delas mesmas e de todas, suando liberdade, é crucial pra mim ressaltar a importância de os homens todos perceberem que é muito fácil apontar o dedo pro estuprador, difícil é perceber a ligação entre ele e si próprio, de se ver no lugar de algoz. Perceber que existe uma linha contínua, que tem numa ponta o estuprador e na outra ponta você, homem tranquilo, pessoa relax, que acha que não é machista e que, quando lê a notícia que o estuprador foi preso, fala que ele vai virar mulherzinha na prisão.
Não, amigo, mulherzinha não foi feita pra ser estuprada e, essa idéia, te faz cúmplice no crime.
Quando era pequena, grupos de amigos gritavam “Mulherzinha! Mulherzinha”, pro menino que levava porrada e perdia na briga. E nós, mulherzinhas, assistíamos com dor silenciosa. Dói ainda a reverberação dos gritos. Algumas até gritavam junto com eles, embriagadas de submissão goela abaixo. E se alguma se opusesse era ridicularizada. Esse era o meu lugar, o de opositora ridicularizada.
Pulo pra 2015, vivendo um um momento histórico, emocionante e esquizofrênico também. De um lado mulheres, juntas e vibrantes, do outro, um poder opressor que quer nos tirar direitos conquistados há tanto tempo e a tanto custo. O grito nosso era pela legalização do aborto, faz tempo, mas o xadrez político nos tira direitos e reafirma que as mais pobres, maioria negra, devem permanecer na linha de tiro.
Na voz de Ana Paula Portella*, socióloga, amiga e musa, “um retrocesso que pode nos custar mais 60 anos de luta. O governo brasileiro levou quase 60 anos para garantir o direito ao aborto seguro para as mulheres nos casos previstos em lei: os permissivos legais estão no Código Penal de 1940 e a Norma Técnica do Ministério da Saúde que instituiu os serviços é de 1999. Sessenta anos. E garantir a norma foi uma luta de anos, que envolveu dezenas de organizações e centenas de ativistas e profissionais feministas e muita gritaria mundo afora denunciando o Brasil por colocar a vida das mulheres em risco… Precisamos de seis décadas para garantir que o Estado brasileiro cumprisse a lei e agora o PL 5069 pretende que o Estado volte à situação de descumprimento… de ilegalidade, portanto. Isso é caso para as Cortes Internacionais de Direitos Humanos”.
Desculpa, poeta, mas mulher não foi “feita apenas para amar, pra sofrer…e pra ser só perdão”.
Não passarão!
* Ana Paula Portella itegrou o grupo técnico pra elaboração da primeira Norma Técnica do Ministério da Saúde, pra Prevenção e Tratamento dos Agravos resultantes da Violência sexual contra Mulheres e Adolescentes, de 1999. Versão atualizada da Norma Técnica.
Fonte: Blog Leonardo Sakamoto, 3 de novembro de 2015.