“Não creio em nenhum esforço chamado de Educação para a Paz que, em vez de revelar o mundo das injustiças, torne-o opaco e tenda a cegar suas vítimas”.Paulo Freire, 1986.
A revelação da apresentadora Xuxa Meneghel e os consequentes comentários advindos de sua fala me alertaram para a necessidade de realizar alguns esclarecimentos à população.
Nessa postagem trago alguns esclarecimentos sobre o sentimento de culpa que a menina Maria da Graça Meneghel sentiu e as justificativas que ela construiu sobre os constantes abusos sexuais que vivenciou em sua infância e adolescência.
Relato da Apresentadora:
“E até hoje, se você me perguntar por que aconteceu comigo, eu ainda acho que foi por minha culpa. (...) Talvez por ser muito grande, chamar muita atenção”.
ESCLARECIMENTO:
A violência sexual, como as demais violências que atingem crianças e adolescentes, é “virulentamente democrática” (AZEVEDO E GUERRA, 1995), ou seja, ela atinge ricos e pobres, brancos e negros, magros e gordos..... Não são as características físicas, socioculturais ou étnico-religiosas que levam um adulto a violar a integridade sexual de uma criança ou de um adolescente.
Nada, absolutamente nada no corpo, no jeito de ser ou de se comportar da criança e do adolescente justificam a ocorrência de violências sexuais.
Durante 15 anos atendi centenas de pessoas que foram vítimas de violências sexuais. Os atributos físicos e as condições socioculturais dessas pessoas variavam bastante. A minha experiência de atendimento na saúde publica não permite aceitar a caracterização que alguns terapeutas fazem das vítimas de abuso sexual, em particular o incestuoso, de que elas são pessoas extremamente atraentes e sensuais. Eu ouvi essa bobagem em uma mesa que tinha como título “O manejo do desatino” em um Congresso de Psicodrama em meados de 1998.
Ora, muitas meninas, mulheres e também meninos que atendi passavam longe desse estereótipo de sex appeal. Eu atendi bebês, senhoras idosas e pessoas com graves deficiências físicas e mentais.
Meninas, meninos e mulheres não culpem os seus atributos físicos, os seus jeitos de ser e agir e suas condições culturais pela violência que sofreram. Vocês não tem nada de errado, não se sintam sujos ou desqualificados! Que fique bem claro para vocês: a violação da integridade sexual, física ou mental ocorre porque alguns adultos decidem de forma consciente* tratar crianças, adolescentes e mulheres como objetos de suas necessidades e desejos. Eles violam, invadem e ferem o corpo e a mente de suas vítimas por que acham que pode agir assim.
A importância de educar as crianças e os adolescentes para a autonomia e o discernimento
Feitos os esclarecimentos acima, considero importante destacar uma situação que pode deixar vulnerável à violência ou à exploração sexual qualquer criança e adolescente, inclusive os nossos filhos e filhas.
De acordo com a pesquisa realizada pela psicóloga Karen Michel Esber (2009), os autores de violências sexuais costumam tratar bem as crianças, para conseguirem o que querem delas. Geralmente são simpáticos, “amigos” das crianças. São pais, padrastos, tios, mães, vizinhos e vizinhas – pessoas quase sempre “acima de qualquer suspeita”.
A pesquisa que a psicóloga Karen Esber fez junto aos autores de violências revelou boas pistas de como podemos proteger nossas crianças e adolescentes. Esses autores de violência sexual evidenciaram que, em uma relação de obediência cega às ordens de adultos, as crianças comumente guardam segredos acerca da violência a que estão sendo submetidas. Ao final de seu trabalho de investigação Esber faz o seguinte alerta:
“É urgente, portanto, reforçar a ideia da criança como sujeito de direitos, amplamente preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Concebê-la como tal não deve significar a perda do “poder” do adulto,(...) mas sim que ela deva ser educada para dar respeito e também receber respeito – o que é muito diferente da obediência cega comumente preconizada pelas famílias. A criança deve, portanto, ser orientada de que adulto nenhum está autorizado a cometer qualquer tipo de violação de direitos” ( p.195).
A criança e o adolescente não tem que aprender a obedecerem os adultos. Temos que ensiná-las a respeitar os adultos, mas somente os que são realmente respeitáveis! Temos que ensiná-las a discernir o que é uma ordem justa de uma injusta. Essa última jamais deverá ser obedecida, pois desde cedo a criança precisa aprender a fazer escolhas e a se proteger e proteger os demais (Cida Alves).
VEJA ABAIXO O PENSAMENTO DE UM DOS PRECURSORES DA EDUCAÇÃO PARA PAZ
“(...) não posso dizer a meus alunos que a única maneira de amar a lei é obedecê-la. Só posso lhes dizer que devem honrar a lei dos homens de forma que as cumpram quando sejam justas ( isto é, quando são a força do fraco); quando virem, ao contrário, que não são justas (isto é, quando sancionam o abuso do forte), terão de lutar para mudá-la” (MILANI, apud JARES, 2002, p 74).
Milani defende o princípio educativo da soberania individual, ou seja, a necessidade de incentivar a autonomia individual em vez da obediência cega, maneira tal que “cada um se sinta responsável por tudo” (MILANI, apud JARES, 2002, p 74).
Veja mais sobre os princípios da Educação Para Paz AQUI
Os dois princípios fundantes da Educação para a Paz:
- A recusa da violência como forma de resolver os conflitos
- A busca da coerência entre os fins e os meios
*exceto nos casos que em o autor de violência tenha um transtorno mental associado. Casos como esses representam uma pequena parcela do total, algumas pesquisas estimam que atinjam apenas 10%.
Fonte: ESBER, Karen Michel. Autores de violência sexual contra crianças e adolescentes/Karen Michel Esber – Goiânia: Cânone Editorial, 2009.
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