13 de ago. de 2010

Mania de Bater

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Flávia Piovesan*











O projeto de lei que proíbe castigo físico em crianças e adolescentes tem causado acentuada polêmica: pesquisas constatam que 54% dos brasileiros são contrários ao projeto; 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças; e 58% dos pais admitem ter batido em seus filhos.


Estes dados refletem que o castigo físico é uma medida largamente disseminada nas famílias brasileiras, sendo a herança da "mania de bater" transmitida por gerações, que reproduzem padrões comportamentais em uma espiral de violência. Estudos da psicologia demonstram que crianças vítimas de punições corporais têm a propensão de se tornarem adultos com comportamento antissocial e agressivo, transtornos de ansiedade e depressão.

Três são os desafios centrais enfrentados pela proposta.

O primeiro é consolidar a visão de que crianças são verdadeiros sujeitos de direitos em peculiar condição de desenvolvimento a merecer consideração e respeito.
Por séculos crianças foram vistas pela cultura adultocêntrica como seres inferiores e "menores" em dignidade e em direitos.

O segundo
desafio é romper com a tradicional concepção de que a esfera privada é insuscetível de qualquer controle, o que conferiria ao pátrio poder a prerrogativa do castigo desmedido, ignorando que o respeito a direitos começa em casa.

O terceiro desafio é o repúdio ao uso da violência, ainda que com propósitos pedagógicos, fomentando a adoção de métodos pacíficos de solução de conflitos e formas não violentas de disciplina
- já que o castigo físico tem a força como único argumento, traindo a vocação de educação que é socializar a criança preparando-a a um convívio civilizado.


A Suécia foi o primeiro país do mundo a abolir a punição corporal e tratamento cruel em face de crianças, mediante a anti-spanking law, adotada em 1979. Como ponderou à época um parlamentar daquele país: "Em uma democracia usamos palavras como argumentos e não murros. Nós conversarmos com as pessoas, ao invés de bater nelas. Se não conseguirmos convencer nossas crianças com palavras, pelo diálogo, nunca conseguiremos convencê-las com surras." Se não se admite a violação à integridade física de um adulto por outro adulto, em qualquer grau, não se pode admitir a violação à integridade física de uma criança por um adulto.

A implementação da lei contou com uma eficaz campanha de conscientização e informação impulsionada pelos meios de comunicação de massa. Em 1998, decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos contra o Reino Unido considerou ilegal a punição corporal contra crianças, afirmando o direito da criança de ter o mesmo direito dos demais quanto a não ser submetida a violência. Atualmente, a proibição a todas as formas de castigos corporais em face de crianças é lei em 29 países, incluindo, na América Latina, o Uruguai, a Costa Rica e a Venezuela.


No caso brasileiro, a legislação apenas proíbe expressamente o uso do castigo imoderado pelos pais, sendo autorizado o castigo moderado. Não só há dificuldade em se definir cada qual (o que recai em um juízo subjetivo), como ainda se admite por lei, de forma implícita, a cultura do bater. A jurisprudência oscila ao identificar esses limites, sustentando serem fluidos e elásticos os limites corretivos de filhos, o que tem gerado uma implícita licença para bater de forma "moderada".

A reforma da legislação brasileira com objetivo de coibir toda e qualquer punição corporal em face de crianças tem a ambição maior de combater o legado autoritário da mania de bater, que tanto naturaliza a violência. Ao explicitar que a punição corporal, ainda que sob pretensos propósitos pedagógicos, é absolutamente inaceitável, tem a potencialidade de transformar práticas e atitudes. Surge como exigência da Constituição Brasileira de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990. Estes documentos convergem ao fomentar a doutrina da proteção integral à criança e da primazia de seus interesses.

A proposta fortalece o novo paradigma que vê na criança um verdadeiro sujeito de direito, assegurando-lhe o direito a uma educação não violenta, essencial ao pleno desenvolvimento de sua personalidade.
Afinal, como consagra a Constituição, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito ao respeito e à dignidade, protegendo-a de qualquer forma de violência, crueldade e opressão.



*Flavia Cristina Piovesan -Doutora em Direito do Estado PUC/SP - Harvard Law School. Áreas de interesse: Direitos Humanos. Grupos de pesquisa na graduação e pós-graduação: Justiça, Democracia e Direitos Humanos. Projeto de pesquisa na graduação e pós-graduação: Código Internacional dos Direitos Humanos, repensando a Interpretação e a Aplicação do Direito, Política Judiciária e Administração da Justiça.

fonte: artigo publicado no Jornal O Globo, 12 de agosto de 2010.

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