Adorno: A psicanálise da adesão ao fascismo
No contexto do dossiê especial dedicado às eleições de 2018, o Blog da Boitempo recupera um artigo fundamental do filósofo alemão Theodor Adorno. O texto não é curto e nosso tempo é escasso, mas a editoria deste Blog recomenda vivamente sua leitura. Ele vira do avesso muitas percepções comuns acerca da adesão ao autoritarismo e fornece um importante inventário dos dispositivos mobilizados pelos demagogos fascistas para levar a cabo a façanha da “abolição da democracia mediante o apoio de massa contra o princípio democrático”.Datado de 1951, o texto dá continuidade à pesquisa sobre a personalidade autoritária publicada no ano anterior em conjunto com Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson e Nevitt Sanford. Nele, Adorno demonstra como a teoria de Sigmund Freud sobre a psicologia das massas desenvolvida em 1921 antecipou de maneira impressionante as dinâmicas pulsionais envolvidas na ascensão de Hitler; e indica como ela pode ser usada para compreender o fenômeno dos agitadores fascistas que ele observava em primeira mão nos EUA do pós-Segunda Guerra Mundial. Passadas mais de seis décadas desde sua publicação, o ensaio de Adorno se mostra de relevância assombrosa para o leitor brasileiro de 2018.
O texto foi publicado originalmente na edição de número #7 da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, e tem tradução de Gustavo Pedroso.
Boa leitura e boa luta.
A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista
Por Theodor W. Adorno.
Durante a última década, a natureza e o conteúdo
dos discursos e panfletos de agitadores fascistas americanos foram submetidos à
pesquisa intensiva de cientistas sociais. Alguns desses estudos, realizados
segundo as linhas da análise de conteúdo, resultaram numa exposição abrangente
[que se encontra] no livro Prophets of deceit, de L. Löwenthal e N.
Guterman1. A imagem
global obtida é caracterizada por dois traços principais. Em primeiro lugar,
com a exceção de algumas recomendações bizarras e completamente negativas –
confinar estrangeiros em campos de concentração ou expatriar sionistas –, o
material de propaganda fascista nesse país preocupa-se pouco com questões
políticas concretas e tangíveis. A maioria esmagadora das declarações dos
agitadores é dirigida ad hominem. Elas são obviamente baseadas mais em
cálculos psicológicos que na intenção de conseguir seguidores por meio da
expressão racional de objetivos racionais. O termo “incitador da turba”, apesar
de censurável por seu desprezo inerente pelas massas, é em boa medida adequado,
já que expressa a atmosfera de agressividade emocional irracional
propositadamente promovida por nossos pretensos hitleristas. Se é desrespeitoso
chamar as pessoas de “turba”, é precisamente o objetivo do agitador transformar
essas mesmas pessoas em uma “turba”, isto é, uma multidão inclinada à ação
violenta sem nenhum objetivo político sensato, e criar a atmosfera do pogrom.
O propósito universal desses agitadores é instigar metodicamente o que, desde o
famoso livro de Gustave Le Bon, é comumente conhecido como “psicologia das
massas”.
Em segundo lugar, o método dos agitadores é
verdadeiramente sistemático e segue um padrão rigidamente estabelecido de
“dispositivos” definidos. Isso não se liga apenas à unidade fundamental do
propósito político – a abolição da democracia mediante o apoio de massa contra
o princípio democrático –, mas mais ainda à natureza intrínseca do conteúdo e
da apresentação da própria propaganda. A similaridade das expressões de vários agitadores
– das figuras bem conhecidas, como Coughlin e Gerald Smith, aos pequenos
disseminadores provincianos de ódio – é tão grande que basta em princípio
analisar as declarações de um deles para conhecê-los todos2. Além disso,
os próprios discursos são tão monótonos que, assim que se fica familiarizado
com o número muito limitado de dispositivos em estoque, o que se encontra são
intermináveis repetições. De fato, a reiteração constante e a escassez de
idéias são ingredientes indispensáveis da técnica toda.
“Como seria impossível para o fascismo ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos.”
Na medida em que a rigidez mecânica do padrão é
óbvia e ela mesma expressão de certos aspectos psicológicos da mentalidade
fascista, não se pode evitar o sentimento de que o material de propaganda de
tipo fascista forma uma unidade estrutural com uma concepção comum total,
consciente ou inconsciente, que determina cada palavra que é dita. Essa unidade
estrutural parece se referir à concepção política implícita tanto quanto à
essência psicológica. Até agora, deu-se atenção científica apenas à natureza
destacada e de certo modo isolada de cada dispositivo; as conotações
psicanalíticas dos dispositivos foram sublinhadas e elaboradas. Agora com os
elementos esclarecidos suficientemente, chegou a hora de centralizar a atenção
no sistema psicológico em si – e pode não ser inteiramente acidental que o
termo invoque a associação da paranóia –, o qual compreende e gera esses
elementos. Isso parece ser o mais apropriado, caso contrário a interpretação
psicanalítica dos dispositivos individuais permanecerá algo fortuita e
arbitrária. Um tipo de quadro de referência teórica terá de ser desenvolvido.
Na medida em que os dispositivos individuais pedem quase irresistivelmente uma
interpretação psicanalítica, não é senão lógico postular que esse quadro de
referência deveria consistir na aplicação de uma teoria psicanalítica mais
abrangente e básica ao método global do agitador.
Tal quadro de referência foi fornecido pelo
próprio Freud em seu livro Psicologia das massas e análise do eu, publicado
em inglês já em 1922, muito antes que o perigo do fascismo alemão parecesse ser
agudo3. Não é exagero
dizer que Freud, apesar de pouco interessado na fase política do problema,
claramente previu a origem e a natureza dos movimentos fascistas de massa em
categorias puramente psicológicas. Se é verdade que o inconsciente do analista
percebe o inconsciente do paciente, pode-se também presumir que suas intuições
teóricas são capazes de antecipar tendências ainda latentes em um nível
racional, mas se manifestando em um nível mais profundo. Pode não ter sido por
acaso que, após a Primeira Guerra Mundial, Freud tenha voltado sua atenção para
o narcisismo e os problemas do eu em sentido específico. Os mecanismos e
conflitos instintuais envolvidos desempenham de forma evidente um papel cada
vez mais importante na época atual, considerando que, de acordo com o
testemunho de analistas praticantes, as neuroses “clássicas”, como a histeria
de conversão, que serviram de modelos para o método, ocorrem menos
freqüentemente agora que na época do próprio desenvolvimento de Freud, quando
Charcot tratou clinicamente a histeria e Ibsen fez dela tema de algumas de suas
peças. De acordo com Freud, o problema da psicologia de massa está bastante
relacionado ao novo tipo de aflição psicológica tão característico da época
que, por razões socioeconômicas, testemunha o declínio do indivíduo e sua
subseqüente fraqueza. Embora Freud não se tenha preocupado com as mudanças
sociais, pode-se dizer que ele revelou nos confins monadológicos do indivíduo
os traços de sua crise profunda e a vontade de se submeter inquestionavelmente
a poderosas instâncias (agencies) coletivas externas. Sem jamais ter
se dedicado ao estudo dos desenvolvimentos sociais contemporâneos, Freud
apontou tendências históricas por meio do desenvolvimento de seu próprio
trabalho, da escolha de seus temas e da evolução dos conceitos-guia.
“Isso é precisamente o que Freud quer fazer. Ele busca descobrir quais forças psicológicas resultam na transformação de indivíduos em massa.”
O método do livro de Freud consiste numa
interpretação dinâmica da descrição da mente de massa por Le Bon e numa crítica
de alguns conceitos dogmáticos – palavras mágicas, por assim dizer – empregados
por Le Bon e outros psicólogos pré-analíticos como se fossem chaves para alguns
fenômenos surpreendentes. Em primeiro lugar, entre esses conceitos está o de
sugestão, que, aliás, ainda desempenha um papel importante na opinião popular
como uma maneira possível de explicar o encanto exercido por Hitler e
assemelhados sobre as massas. Freud não questiona a precisão das famosas
caracterizações das massas, feitas por Le Bon, como sendo altamente
desindividualizadas, irracionais, facilmente influenciáveis, propensas à ação
violenta e, de modo geral, de uma natureza regressiva. O que o distingue de Le
Bon é antes a ausência do tradicional desprezo pelas massas, que é o thema
probandum da maioria dos psicólogos mais antigos. Em vez de inferir das
descobertas descritivas habituais que as massas são inferiores per se
e assim tendem a permanecer, ele se pergunta, no espírito do verdadeiro
Iluminismo: o que transforma as massas em massas? Freud rejeita a hipótese
fácil de um instinto social ou de rebanho, que para ele denota o problema e não
sua solução. Além das razões puramente psicológicas que dá para essa rejeição,
poder-se-ia dizer que Freud está em terreno seguro também do ponto de vista
sociológico. A comparação direta de formações de massas modernas com fenômenos
biológicos dificilmente pode ser considerada válida, uma vez que os membros das
massas contemporâneas são, pelo menos prima facie, indivíduos, filhos
de uma sociedade liberal, competitiva e individualista, condicionados a se
manter como unidades independentes e auto-sustentáveis; eles são continuamente
advertidos de que devem ser “duros” e prevenidos contra a rendição. Mesmo que
se assumisse que instintos arcaicos, pré-individuais, sobrevivam, não se
poderia simplesmente apontar para essa herança, mas se teria de explicar por
que homens modernos revertem a padrões de comportamento que contradizem
flagrantemente seu próprio nível racional e a presente fase da civilização
tecnológica esclarecida. Isso é precisamente o que Freud quer fazer. Ele busca
descobrir quais forças psicológicas resultam na transformação de indivíduos em
massa. “Se os indivíduos no grupo estão combinados em uma unidade, deve haver,
seguramente, algo para uni-los, e esse vínculo poderia ser precisamente o que é
característico de um grupo.”4 Essa
indagação, porém, equivale a uma exposição do ponto fundamental da manipulação
fascista. Pois o demagogo fascista, que tem de obter o apoio de milhões de
pessoas para objetivos altamente incompatíveis com seu próprio auto-interesse
racional, só pode fazê-lo criando artificialmente o vínculo que Freud
está buscando. Se o método dos demagogos é realista – e seu sucesso popular não
deixa dúvidas de que o seja –, poder-se-ia lançar como hipótese que o vínculo
em questão é exatamente o mesmo que o demagogo tenta produzir sinteticamente;
na realidade, que ele é o princípio unificador por trás de seus vários
dispositivos.
Em acordo com a teoria psicanalítica geral, Freud
crê que o vínculo que integra os indivíduos em uma massa é de uma natureza libidinal.
Psicólogos anteriores tocaram ocasionalmente nesse aspecto da psicologia de
massa. “Na opinião de McDougall, as emoções dos homens em um grupo são
excitadas a um nível que raramente ou nunca atingem sob outras condições; e é
uma experiência prazerosa para os participantes se render tão ilimitadamente às
suas paixões e ser assim absorvidos no grupo e perder o senso dos limites de
suas individualidades.”5 Freud vai além
de tais observações, explicando a coerência das massas inteiramente nos termos
do princípio de prazer, quer dizer, das gratificações reais ou vicárias que os
indivíduos obtêm pela rendição a uma massa. Hitler, aliás, estava bastante
atento à fonte libidinal da formação da massa por rendição quando atribuiu
características especificamente femininas e passivas aos participantes de seus
comícios, e apontou assim também para o papel da homossexualidade inconsciente
na psicologia de massa6. A
conseqüência mais importante da introdução que Freud fez da libido na
psicologia de grupo é que os traços geralmente atribuídos às massas perdem o
caráter ilusoriamente primordial e irredutível refletido pela construção
arbitrária de instintos específicos de massa ou de rebanho. Esses últimos são
antes efeitos que causas. O que é peculiar às massas é, de acordo com Freud,
não tanto uma qualidade nova quanto a manifestação de qualidades antigas
normalmente escondidas. “Do nosso ponto de vista, não precisamos atribuir tanta
importância ao aparecimento de novas características. Seria suficiente dizer
que em um grupo o indivíduo é posto sob condições que lhe permitem se livrar
das repressões de seus instintos inconscientes.”7 Isso não
apenas dispensa hipóteses auxiliares ad hoc, mas também faz justiça ao
simples fato de que aqueles que acabam por submergir nas massas não são homens
primitivos, mas exibem atitudes primitivas contraditórias com seu comportamento
racional normal. Ainda assim, mesmo as mais triviais descrições não
deixam dúvidas sobre a afinidade de certas peculiaridades das massas com traços
arcaicos. Menção particular deveria ser feita aqui ao potencial atalho de
emoções violentas para ações violentas enfatizado por todos os autores de
psicologia de massa, um fenômeno que, nos escritos de Freud sobre culturas
primitivas, leva à suposição de que o assassinato do pai da horda primitiva não
é imaginário, mas corresponde à realidade pré-histórica. Em termos de teoria
dinâmica, o reflorescimento de tais características deve ser entendido como o
resultado de um conflito. Também pode ajudar a explicar algumas das
manifestações da mentalidade fascista que dificilmente poderiam ser
compreendidas sem a suposição de um antagonismo entre diversas forças
psicológicas. Deve-se pensar aqui acima de tudo na categoria psicológica da
destrutibilidade, que Freud discutiu em seu O mal-estar na civilização.
Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a
reocorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela civilização. É pouco
adequado definir as forças da rebelião fascista simplesmente como poderosas
energias do isso que se livram da pressão da ordem social existente. Em vez
disso, essa rebelião empresta suas energias em parte de outras instâncias
psicológicas que são forçadas a servir ao inconsciente.
“Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a reocorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela civilização.”
Uma vez que o vínculo libidinal entre membros de
massas não é obviamente de uma natureza sexual desinibida, o problema se
apresenta em termos de quais mecanismos psicológicos transformam a energia
sexual primária em sentimentos que mantêm as massas unidas. Freud enfrenta-o
por meio da análise dos fenômenos cobertos pelos termos sugestão e sugestibilidade.
Ele reconhece a sugestão como a “proteção” ou “anteparo” que oculta “relações
amorosas”. É essencial que as “relações amorosas” por trás da sugestão
permaneçam inconscientes8. Freud
enfatiza o fato de que, em grupos organizados como o Exército ou a Igreja, ou
não há menção alguma a amor entre seus membros, ou ele é expresso apenas de
maneira sublimada e indireta, por meio da mediação de alguma imagem religiosa,
pelo amor da qual os membros se unem e cujo amor abrangente (all-embracing)
eles devem imitar em sua atitude mútua. Parece significativo que na sociedade
atual, com suas massas fascistas artificialmente integradas, a referência ao amor
esteja quase completamente excluída9. Hitler
afastou-se do papel tradicional do pai amoroso e substituiu-o inteiramente pelo
papel negativo da autoridade ameaçadora. O conceito de amor foi relegado à
noção abstrata de Alemanha e raramente mencionado sem o epíteto de
“fanático”, pelo qual mesmo esse amor obtinha um tom de hostilidade e
agressividade contra aqueles que ele não englobava. Um dos princípios básicos
da liderança fascista é manter a energia libidinal primária em um nível
inconsciente, de modo a desviar suas manifestações de uma forma adequada a fins
políticos. Quanto menos uma idéia objetiva, como a de salvação religiosa,
desempenha um papel na formação da massa, e quanto mais a manipulação da massa
se torna o único fim, mais completamente o amor desinibido tem de ser reprimido
e moldado em obediência. Muito pouco há, no conteúdo da ideologia fascista, que
pudesse ser amado.
O padrão libidinal do fascismo e toda a técnica
dos demagogos fascistas são autoritários. É aqui que as técnicas do demagogo e
do hipnotizador coincidem com o mecanismo psicológico pelo qual os indivíduos
são compelidos a sofrer as regressões que os reduzem a meros membros de um
grupo. Pelas medidas que toma, o hipnotizador desperta no sujeito uma porção de
sua herança arcaica que o tinha também feito obediente a seus pais, tendo ainda
experimentado uma reanimação individual em sua relação com o pai: o que é,
assim, despertado é a idéia de uma personalidade todo-poderosa e perigosa, em
relação à qual apenas uma atitude passivo-masoquista é possível, e à qual a
vontade tem de se render – enquanto estar sozinho com ela, “olhá-la no rosto”,
parece uma aventura arriscada. É apenas em tais formas que podemos descrever a
relação do membro individual da horda primitiva com o pai primitivo […]. As
características estranhas e coercitivas das formações de grupos, que são
reveladas em seus fenômenos de sugestão, podem então com justiça ser remetidas
ao fato de sua origem a partir da horda primitiva. O líder do grupo ainda é o
temido pai primitivo; o grupo ainda deseja ser governado por força irrestrita;
ele tem uma paixão extrema pela autoridade; no dito de Le Bon, tem sede de
obediência. O pai primitivo é o ideal do grupo, e governa o eu no lugar do
ideal do eu. A hipnose pode, com justiça, ser descrita como um grupo de duas
pessoas; a esse respeito permanece como uma definição para sugestão – uma
convicção que não é baseada em percepções e raciocínios, mas em um vínculo
erótico.10
Isso na verdade define a natureza e o conteúdo da
propaganda fascista. Ela é psicológica por causa de seus fins autoritários e
irracionais, que não podem ser alcançados por meio de convicções racionais, mas
apenas pelo hábil despertar de “uma porção [da] herança arcaica” do
sujeito. A agitação fascista está centrada na idéia do líder, não importando se
ele lidera de fato ou se é apenas o mandatário de interesses do grupo, porque
apenas a imagem psicológica do líder é apta a reanimar a idéia do todo-poderoso
e ameaçador pai primitivo. Essa é a raiz da – de outro modo enigmática – personalização
da propaganda fascista, seu incessante propagandear de nomes e supostos grandes
homens, em lugar da discussão de causas objetivas. A formação da imagem de uma
figura paterna onipotente e não controlada, transcendendo em muito o pai
individual e com isso apta a ser ampliada em um “eu do grupo”, é a única
maneira de disseminar a “atitude passivo-masoquista […] à qual a vontade
tem de se render”, uma atitude tanto mais exigida do seguidor fascista quanto
mais seu comportamento político se torna irreconciliável com seus próprios
interesses racionais como pessoa privada, bem como com os do grupo ou classe ao
qual pertence de fato11. A
irracionalidade redespertada do seguidor é bastante racional do ponto de vista
do líder: ela necessariamente tem de ser “uma convicção que não é baseada em
percepções e raciocínios, mas em um vínculo erótico”.
“A irracionalidade redespertada do seguidor é bastante racional do ponto de vista do líder: ela necessariamente tem de ser ‘uma convicção que não é baseada em percepções e raciocínios, mas em um vínculo erótico’.”
O mecanismo que transforma a libido na ligação
entre líder e seguidores, e entre os próprios seguidores, é o da identificação.
Uma grande parte do livro de Freud é dedicada a sua análise12. É
impossível discutir aqui a diferenciação teórica muito sutil, particularmente
aquela entre identificação e introjeção. Deve-se notar, entretanto, que o Ernst
Simmel tardio, ao qual devemos valiosas contribuições à psicologia do fascismo,
tomou o conceito de Freud da natureza ambivalente da identificação como um
derivado da fase oral da organização da libido13, e o ampliou
em uma teoria analítica do anti-semitismo.
Contentar-nos-emos aqui com umas poucas
observações sobre a relevância da doutrina da identificação para a propaganda e
a mentalidade fascistas. Foi observado por vários autores, e por Erik Homburger
Erikson em particular, que o tipo de líder especificamente fascista não parece
ser uma figura paterna, tal como o rei dos tempos antigos. A inconsistência,
porém, entre essa observação e a teoria freudiana do líder como o pai primitivo
é apenas superficial. Sua discussão sobre a identificação pode nos ajudar a
entender, em termos de dinâmica subjetiva, certas mudanças que na verdade se
devem a condições históricas objetivas. A identificação é “a expressão mais primitiva
de uma ligação emocional com outra pessoa”, desempenhando “um papel na
história inicial do complexo de Édipo”14. Pode bem
ser que esse componente pré-edipiano da identificação ajude a provocar a
separação entre a imagem do líder como a de um pai primitivo todo-poderoso e a
imagem paterna real. Uma vez que a identificação da criança com seu pai como
uma resposta para o complexo de Édipo é apenas um fenômeno secundário, a
regressão infantil pode ir além dessa imagem paterna e, por um processo
“anaclítico”, alcançar uma mais arcaica. Além disso, o aspecto primitivamente
narcisista da identificação como um ato de devorar, de tornar o objeto
amado parte de si mesmo, pode nos fornecer uma pista para o fato de que a
imagem do líder moderno às vezes parece ser mais a ampliação da própria
personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, do que a imagem de
um pai cujo papel durante as fases tardias da infância do sujeito pode bem ter
diminuído na sociedade atual15. Todos esses
aspectos pedem uma clarificação adicional.
O papel essencial do narcisismo em relação às
identificações que estão em jogo na formação de grupos fascistas é reconhecido
na teoria de Freud da idealização. “Vemos que o objeto é tratado da
mesma maneira que nosso próprio eu, de modo que quando estamos apaixonados uma
quantia considerável de libido narcisista transborda no objeto. É até mesmo
óbvio, em muitas formas de escolha amorosa, que o objeto sirva como um
substituto para algum ideal de eu que não conseguimos atingir. Nós o amamos por
causa das perfeições que nos esforçamos em alcançar para nosso próprio eu, e
que agora gostaríamos de obter desse modo indireto, como um meio de satisfazer
nosso narcisismo”16. É
precisamente essa idealização do eu que o líder fascista tenta promover em seus
seguidores, e que é auxiliada pela ideologia do Führer. As pessoas com as quais
ele tem de contar geralmente padecem do conflito moderno e característico entre
uma instância17 do eu
racional e autopreservadora fortemente desenvolvida e o fracasso contínuo em
satisfazer as demandas de seu próprio eu. Esse conflito resulta em impulsos
narcisistas fortes, que só podem ser absorvidos e satisfeitos pela idealização
entendida como transferência parcial da libido narcisista para o objeto. Isso,
por sua vez, corresponde à semelhança da imagem do líder com uma ampliação do
sujeito: ao fazer do líder seu ideal, o sujeito ama a si mesmo, por assim
dizer, mas se livra das manchas de frustração e descontentamento que estragam a
imagem que tem de seu próprio eu empírico. Esse padrão de identificação por
idealização, caricatura da solidariedade verdadeira, consciente, é, porém, um
padrão coletivo. É efetivo em um vasto número de pessoas com disposições
caracterológicas e inclinações libidinais semelhantes. A comunidade do
povo fascista corresponde exatamente à definição de Freud para grupo:
“[São] vários indivíduos que substituíram seu ideal de eu pelo mesmo objeto e
conseqüentemente se identificaram uns com os outros em seus eus”. A imagem de
líder, por sua vez, empresta da força coletiva, por assim dizer, sua
onipotência semelhante à do pai primitivo18.
“A agitação fascista está centrada na ideia do líder, não importando se ele lidera de fato ou se é apenas o mandatário de interesses do grupo, porque apenas a imagem psicológica do líder é apta a reanimar a ideia do todo-poderoso e ameaçador pai primitivo.”
A construção psicológica que Freud faz da imagem
do líder é corroborada por sua notável coincidência com o tipo fascista de
líder, pelo menos no que se refere à sua constituição (build-up)
pública. Suas descrições convêm à imagem de Hitler não menos que às
idealizações pelas quais os demagogos americanos tentam se amoldar. A fim de
permitir a identificação narcisista, o líder tem de aparecer como absolutamente
narcisista, e é desse insight que Freud deriva o retrato do “pai
primitivo da horda”, que poderia igualmente ser Hitler.
Ele, já no início da história da humanidade, era
o super-homem que Nietzsche esperava apenas no futuro.19 Mesmo hoje
os membros de um grupo necessitam da ilusão de que são amados igualmente e de
forma justa por seu líder; mas o líder não precisa amar mais ninguém, ele pode
ser de uma natureza magistral, absolutamente narcisista, mas autoconfiante e
independente. Sabemos que o amor põe o narcisismo em xeque, e seria possível
mostrar como, operando desse modo, ele se tornou um fator de civilização.20
“Mostrando-se como um super-homem, o líder deve ao mesmo tempo realizar o milagre de aparecer como uma pessoa comum, da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio.”
Uma das características mais conspícuas dos
discursos dos agitadores, nomeadamente a ausência de um programa positivo e de
qualquer coisa que eles pudessem “dar”, bem como a prevalência paradoxal de
ameaça e negação, é assim explicada: o líder só pode ser amado se ele próprio
não amar. Todavia, Freud está atento a outro aspecto da imagem do líder que
aparentemente contradiz o primeiro. Mostrando-se como um super-homem, o líder
deve ao mesmo tempo realizar o milagre de aparecer como uma pessoa comum, da
mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e
barbeiro de subúrbio. Também isso Freud explica em sua teoria do narcisismo. De
acordo com ele,
“o indivíduo desiste de seu ideal do eu e o
substitui pelo ideal do grupo tal como encarnado no líder. [Porém,] em muitos
indivíduos, a separação entre o eu e o ideal do eu não é muito avançada; os
dois ainda coincidem prontamente; o eu freqüentemente preservou sua
autocomplacência inicial. A escolha do líder é facilitada em muito por essa
circunstância. Ele só precisa possuir, de forma particularmente pura e
claramente marcada, as qualidades típicas dos indivíduos envolvidos, e só
precisa dar impressão de maior força e maior liberdade de libido; e nesse caso
a necessidade de um chefe forte vai ao seu encontro e o investe de uma
superioridade que de outro modo ele talvez não pudesse reclamar para si. Os
outros membros do grupo, cujo eu ideal, fora dessa situação, não se teria
encarnado em sua pessoa sem alguma correção, deixam-se, então, levar com o
restante pela “sugestão”, quer dizer, por meio da identificação.”21
Mesmo os impressionantes sintomas de
inferioridade do líder fascista, sua semelhança com atores canastrões e
psicopatas insociais são assim antecipados pela teoria de Freud. Por causa
daquelas partes da libido narcisista do seguidor que não foram investidas na
imagem do líder, mas permanecem ligadas ao próprio eu do seguidor, o
super-homem deve ainda se assemelhar ao seguidor e aparecer como sua
“ampliação”. Em acordo com isso, um dos dispositivos básicos da propaganda
fascista personalizada é o conceito do “grande homem comum” (great little
man), alguém que sugere tanto onipotência quanto a idéia de que é apenas
um de nós, um americano simples, saudável, não conspurcado por riqueza material
ou espiritual. A ambivalência psicológica ajuda um milagre social a se
realizar. A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor de se submeter
à autoridade e de ser ele próprio a autoridade. Isso corresponde a um mundo no
qual o controle irracional é exercido, apesar de ter perdido sua convicção
interna em função do esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos
ditadores sentem que eles são supérfluos. Elas se reconciliam com essa
contradição por meio da presunção de que elas próprias são o opressor cruel.
“As pessoas que obedecem aos ditadores sentem que eles são supérfluos. Elas se reconciliam com essa contradição por meio da presunção de que elas próprias são o opressor cruel.”
Todos os dispositivos-padrão (standard)
dos agitadores são projetados em acordo com a linha da exposição feita por
Freud daquilo que mais tarde se tornou a estrutura básica da demagogia
fascista, a técnica da personalização22, e a idéia
do grande homem comum. Limitamo-nos aqui a alguns exemplos escolhidos ao acaso.
Freud apresenta uma explicação exaustiva do
elemento hierárquico em grupos irracionais. “É óbvio que um soldado toma seu
superior, isto é, propriamente, o líder do Exército, como seu ideal, enquanto
se identifica com seus iguais, e deriva dessa comunidade de seus eus (Ichgemeinsamkeit)
as obrigações de dar ajuda mútua e de compartilhar o que possuir, obrigações
essas implicadas pela camaradagem. Mas ele se torna ridículo se tenta se
identificar com o general”23, isto é,
direta e conscientemente. Os fascistas, até o último demagogo obscuro,
enfatizam continuamente cerimônias ritualísticas e diferenciações hierárquicas.
Quanto menos a hierarquia é justificada no interior da organização de uma
sociedade industrial altamente racionalizada e quantificada, mais as
hierarquias artificiais sem uma raison d’être objetiva são construídas
e rigidamente impostas por fascistas, por razões puramente psicotécnicas.
Pode-se acrescentar, entretanto, que essa não é a única fonte libidinal
envolvida. Assim, estruturas hierárquicas estão em completa harmonia com os
desejos do caráter sadomasoquista. A famosa fórmula de Hitler, “Verantwortung
nach oben, Autorität nach unten” (responsabilidade para com os de cima,
autoridade para com os de baixo), racionaliza bem a ambivalência desse caráter24.
A tendência a pisar nos de baixo, que se
manifesta tão desastrosamente na perseguição a minorias fracas e desamparadas,
é tão franca quanto o ódio contra os de fora. Na prática, ambas as tendências
freqüentemente ocorrem juntas. A teoria de Freud joga luz sobre a distinção
disseminada e rígida entre o amado in-group e o rejeitado out-group.
Por toda nossa cultura, esse modo de pensar e se comportar acabou sendo
considerado tão auto-evidente que a questão sobre por que as pessoas amam o que
lhes é semelhante e odeiam o que é diferente raramente é discutida de modo
suficientemente sério. Aqui, como em muitos outros casos, a produtividade da
abordagem de Freud está no questionamento daquilo que é geralmente aceito. Le
Bon notara que a multidão irracional “vai diretamente a extremos”25. Freud
amplia essa observação e aponta o fato de que a dicotomia entre in-group
e out-group é de uma natureza tão profundamente enraizada que afeta
mesmo aqueles grupos cujas “idéias” aparentemente excluem tais reações. Já em
1921 ele foi, por isso, capaz de se livrar da ilusão liberal de que o progresso
da civilização provocaria automaticamente um aumento da tolerância e uma
diminuição da violência contra os out-groups.
“É provavelmente a suspeita do caráter fictício de sua própria ‘psicologia de grupo’ que torna as multidões fascistas tão inabordáveis e impiedosas. Se parassem para raciocinar por um segundo, toda a encenação desmoronaria, e só lhes restaria entrar em pânico.”
Mesmo no reino de Cristo, aquelas pessoas que não
pertencem à comunidade dos crentes, que não o amam e às quais ele não ama,
encontram-se fora desse vínculo. Portanto uma religião, mesmo se se qualifica
como religião do amor, deve ser dura e desamorosa para com aqueles que não
pertencem a ela. Fundamentalmente, de fato, toda religião é do mesmo modo uma
religião de amor para todos aqueles a quem abraça; enquanto são naturais a toda
religião a crueldade e a intolerância em relação àqueles que não pertencem a
ela. Por mais difícil que seja, não devemos reprovar muito severamente os
crentes por isso – a esse respeito os descrentes ou indiferentes estão melhores
do ponto de vista psicológico. Se hoje em dia aquela intolerância não se mostra
mais tão violenta e cruel como nos séculos anteriores, dificilmente podemos
concluir que houve uma suavização nos costumes dos homens. A causa deve antes
ser encontrada no inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos
vínculos libidinais deles dependentes. Se outros vínculos grupais tomarem o
lugar do religioso – e o vínculo socialista parece estar tendo sucesso nisso –,
então haverá para com os de fora a mesma intolerância que havia na era das
Guerras de Religião.26
O erro de Freud em prognose política – culpar os
“socialistas” pelo que seus arquiinimigos alemães fizeram – é tão surpreendente
quanto sua profecia sobre a destrutibilidade fascista, o impulso de eliminar o out-group27. De fato, a
neutralização da religião parece ter conduzido apenas ao oposto daquilo que o
iluminista Freud antecipara: a divisão entre crentes e não-crentes foi mantida
e reificada. De qualquer modo, tornou-se uma estrutura em si mesma,
independente de qualquer conteúdo ideacional, e é ainda mais obstinadamente
defendida desde que perdeu sua convicção interna. Ao mesmo tempo, o impacto
mitigante da doutrina religiosa do amor desapareceu. Essa é a essência do
dispositivo “joio e trigo” empregada por todos os demagogos fascistas. Uma vez
que não reconhecem nenhum critério espiritual com relação a quem é escolhido e
quem é rejeitado, eles o substituem por um critério pseudonatural como o de
raça28, o qual
parece ser inevitável e pode, portanto, ser aplicado até mais impiedosamente do
que o conceito de heresia durante a Idade Média. Freud teve sucesso em
identificar a função libidinal desse dispositivo. Ele age como uma força
negativamente integradora. Já que a libido positiva está completamente
investida na imagem do pai primitivo, o líder, e já que poucos conteúdos
positivos estão disponíveis, um negativo deve ser encontrado. “O líder ou a
idéia central também podem, por assim dizer, ser negativos; o ódio contra uma
pessoa ou instituição particular poderia operar da mesma maneira unificadora e
levar ao mesmo tipo de vínculos emocionais que os afetos positivos”29. É
desnecessário dizer que essa integração negativa alimenta o instinto de
destrutibilidade ao qual Freud não se refere explicitamente em seu Psicologia
de grupo, mas cujo papel decisivo reconheceu em O mal-estar na civilização.
No contexto presente, Freud explica a hostilidade contra o out-group
por meio do narcisismo:
“Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as
pessoas sentem em relação aos estrangeiros com quem entram em contato, podemos
reconhecer a expressão do amor-próprio – do narcisismo. Esse amor-próprio
trabalha para a auto-afirmação do indivíduo, e se comporta como se o
aparecimento de qualquer divergência sobre suas linhas particulares de
desenvolvimento envolvesse uma crítica e uma solicitação de mudança dessas
mesmas linhas.”30
O ganho narcisista fornecido pela
propaganda fascista é óbvio. Ela sugere continuamente, e às vezes de maneiras
bastante maliciosas, que o seguidor, simplesmente por pertencer ao in-group,
é superior, melhor e mais puro que aqueles que estão excluídos. Ao mesmo tempo,
qualquer tipo de crítica ou autoconsciência é ressentida como uma perda
narcisista e provoca fúria. Isso explica a reação violenta de todo fascista
contra o que julga zersetzend [destrutivo], aquilo que desmascara
seus próprios valores obstinadamente mantidos, e também a hostilidade das
pessoas preconceituosas contra qualquer tipo de introspecção.
Concomitantemente, a concentração de hostilidade no out-group elimina
a intolerância no interior do grupo, com o qual a relação, de outro modo, seria
altamente ambivalente.
“O ganho narcisista fornecido pela propaganda fascista é óbvio. Ela sugere continuamente, e às vezes de maneiras bastante maliciosas, que o seguidor, simplesmente por pertencer ao grupo, é superior, melhor e mais puro que aqueles que estão excluídos. Ao mesmo tempo, qualquer tipo de crítica ou autoconsciência é ressentida como uma perda narcisista e provoca fúria.”
Mas o todo dessa intolerância desaparece,
temporária ou permanentemente, por meio da formação do grupo, e no grupo.
Enquanto a formação do grupo persistir, ou pelo período em que ela se estender,
os indivíduos se comportam como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades
de outras pessoas, colocam-se no mesmo nível, e não têm sentimentos de aversão
em relação a elas. Tal limitação do narcisismo, de acordo com nossas concepções
teóricas, só pode ser produzida por um fator, um vínculo libidinal com outras
pessoas.31
Essa é a linha perseguida pelo estandardizado
“truque da unidade” dos agitadores. Eles enfatizam suas diferenças em relação
aos que não pertencem ao grupo, mas as minimizam no interior do próprio grupo e
tendem a nivelar suas qualidades distintivas, com exceção da hierárquica.
“Estamos todos no mesmo barco”; ninguém deveria ser melhor; o esnobe, o
intelectual, o hedonista são sempre atacados. Como fator subjacente, o
igualitarismo malicioso, a fraternidade da humilhação geral, é um componente da
propaganda fascista e fascista ele próprio. Esse igualitarismo encontrou seu
símbolo na notória ordem de Hitler para o Eintopfgericht*. Quanto menos desejam que a estrutura
social inerente mude, mais tagarelam sobre justiça social, querendo dizer que
nenhum membro da “comunidade do povo” deve se permitir prazeres individuais.
Igualitarismo repressivo em vez da realização da verdadeira igualdade pela
abolição da repressão é parte e parcela da mentalidade fascista e se reflete no
dispositivo “se-você-soubesse” dos agitadores, que promete a vingativa
revelação de todo tipo de prazeres proibidos desfrutados por outros. Freud
interpreta esse fenômeno em termos da transformação de indivíduos em membros de
uma “horda fraterna” psicológica. Sua coerência é uma formação de reação contra
o ciúme primário mútuo, forçada a servir à coerência do grupo.
O que aparece mais tarde na sociedade na forma do
Gemeingeist, esprit de corps, “espírito de grupo” etc. não
desmente sua derivação do que era originalmente ciúme. Ninguém deve querer se
pôr à frente, todos devem ser o mesmo e ter o mesmo. Justiça social significa
negarmos a nós mesmos muitas coisas, de forma que outros também tenham de
passar sem elas, ou, o que dá no mesmo, não possam reclamá-las.32
Pode-se acrescentar que a ambivalência em relação
ao irmão encontrou uma expressão bastante notável e sempre recorrente na
técnica dos agitadores. Freud e Rank apontaram que, em contos de fadas,
pequenos animais, como abelhas e formigas, “seriam os irmãos na horda
primitiva, assim como, no simbolismo do sonho, insetos e animais daninhos
significam os irmãos e irmãs (desdenhosamente considerados como bebês)”33. Como os
membros do in-group supostamente “foram bem-sucedidos em se
identificar mutuamente por meio do amor similar pelo mesmo objeto”34, eles não
podem admitir esse desprezo recíproco. Assim, esse desprezo é expresso por uma
catexe completamente negativa desses animais baixos, fundido com o ódio contra
o out-group, e projetado nele. De fato um dos dispositivos prediletos
dos agitadores fascistas – examinado detalhadamente por Leo Löwenthal35 – consiste
em comparar out-groups, todos estrangeiros, e particularmente os
refugiados e judeus, com animais baixos ou daninhos.
Se temos o direito de assumir uma correspondência
dos estímulos da propaganda fascista com os mecanismos discutidos na Psicologia
das massas, de Freud, devemos nos fazer a pergunta quase inevitável: como
aqueles agitadores fascistas, rudes e semi-educados obtiveram conhecimentos
sobre esses mecanismos? Referências à influência exercida por Minha luta,
de Hitler, sobre os demagogos americanos não levariam muito longe, já que
parece impossível que o conhecimento teórico de Hitler sobre psicologia de
grupo fosse além das mais triviais observações derivadas de um Le Bon
popularizado. Tampouco se poderia afirmar que Goebbels era um gênio da
propaganda e estava completamente a par das descobertas mais avançadas da
psicologia moderna. A leitura de seus discursos e de trechos selecionados de
seus diários recentemente publicados dá a impressão de uma pessoa astuta o
bastante para participar do jogo da política do poder, mas totalmente ingênua e
superficial em relação a todas as questões sociais ou psicológicas abaixo da
superfície de suas próprias palavras de ordem (catchwords) e
editoriais de jornal. A concepção do Goebbels intelectual sofisticado e
“radical” é parte da lenda demoníaca associada a seu nome e promovida pelo
jornalismo zeloso; uma lenda, aliás, que pede ela mesma uma explicação
psicanalítica. O próprio Goebbels pensava por estereótipos e estava
completamente sob o encanto da personalização. É preciso, portanto, buscar
outras fontes além da erudição, para o muito propagandeado domínio fascista de
técnicas psicológicas de manipulação de massas. A fonte primária parece ser a
já mencionada identidade básica entre líder e seguidor, a qual circunscreve um
dos aspectos da identificação. O líder pode adivinhar os desejos e necessidades
psicológicas dos que são suscetíveis à sua propaganda porque a eles se
assemelha psicologicamente e deles se diferencia pela capacidade de expressar
sem inibições o que neles está latente, em vez de lançar mão de alguma
superioridade intrínseca. Os líderes são geralmente tipos de caráter oral, com
compulsão a falar incessantemente e a enganar os outros. O famoso encanto que
exercem sobre seus seguidores parece depender largamente de sua oralidade: a
própria linguagem, destituída de sua significação racional, funciona de um modo
mágico e promove aquelas regressões arcaicas que reduzem os indivíduos a
membros de multidões. Uma vez que essa mesma qualidade de discurso desinibido
mas largamente associativo pressupõe pelo menos uma falta temporária de
controle do eu, ela bem pode indicar fraqueza em lugar de força. A jactância de
força dos agitadores fascistas é, de fato, freqüentemente acompanhada por
traços de fraqueza, particularmente quando imploram por contribuições
monetárias – traços que, deve-se admitir, são habilmente unidos à própria idéia
de força. A fim de ir com sucesso ao encontro das disposições inconscientes de
sua audiência, o agitador, por assim dizer, volta seu próprio inconsciente para
fora. Sua particular síndrome de caráter lhe possibilita fazer exatamente isso,
e a experiência o ensinou conscientemente a explorar essa faculdade, a fazer
uso racional de sua irracionalidade, de modo semelhante ao ator ou a certo tipo
de jornalista que sabe como vender sua estimulação e sua sensibilidade. Sem
sabê-lo, ele é, assim, capaz de falar e agir em acordo com a teoria psicológica
pela simples razão de que a teoria psicológica é verdadeira. Tudo o que ele tem
a fazer para que a psicologia de sua platéia funcione é explorar maliciosamente
sua própria psicologia.
“O líder pode adivinhar os desejos e necessidades psicológicas dos que são suscetíveis à sua propaganda porque a eles se assemelha psicologicamente e deles se diferencia pela capacidade de expressar sem inibições o que neles está latente, em vez de lançar mão de alguma superioridade intrínseca.”
A adequação dos dispositivos dos agitadores à
base psicológica de seus objetivos é aperfeiçoada por outro fator. Como
sabemos, a agitação fascista tornou-se uma profissão, por assim dizer, um meio
de vida. Ela teve bastante tempo para testar a efetividade de seus vários atrativos
(appeals), e, pelo que poderia ser chamado de seleção natural, apenas
os mais cativantes sobreviveram. Sua efetividade é, ela própria, uma função da
psicologia dos consumidores. Por um processo de “congelamento” (freezing),
que pode ser observado em todas as técnicas empregadas na moderna cultura de
massa, os atrativos sobreviventes foram estandardizados, de forma similar aos
slogans de propaganda que provaram ser valiosos na promoção dos negócios. Essa
estandardização, por sua vez, corresponde ao pensamento estereotipado, ou seja,
à “estereopatia” daqueles suscetíveis a essa propaganda e a seu desejo infantil
por repetição interminável e inalterada. É difícil predizer se essa última
disposição psicológica evitará que os dispositivos-padrão (standard)
dos agitadores fiquem embotados pelo uso excessivo. Na Alemanha
nacional-socialista costumavam-se ridicularizar certas expressões
propagandísticas como “sangue e solo” (Blut und Boden), contraída
jocosamente para Blubo, ou o conceito da raça nórdica, do qual o verbo
paródico aufnorden (“nortizar”) foi derivado. Não obstante, esses
atrativos não parecem ter perdido seu apelo. Antes, sua própria “impostura” (phonyness)
pode ter sido cínica e sadicamente saboreada como um sinal de que o poder
sozinho decidia o destino das pessoas no Terceiro Reich, ou seja, o poder
desembaraçado da objetividade racional.
Além disso, pode-se perguntar: por que a
psicologia de grupo aplicada discutida aqui é mais peculiar ao fascismo que à
maioria dos outros movimentos que buscam apoio de massa? Mesmo a comparação
mais casual da propaganda fascista com a dos partidos liberais e progressistas
mostra que é assim. Contudo, nem Freud nem Le Bon consideraram tal distinção.
Eles falavam de multidões “como tais”, de modo similar às conceitualizações
utilizadas pela sociologia formal, sem distinguir os objetivos políticos dos
grupos em questão. De fato, ambos pensavam antes nos movimentos socialistas
tradicionais que em seu oposto, embora se deva notar que a Igreja e o Exército
– exemplos escolhidos por Freud para a demonstração de sua teoria – são
essencialmente conservadores e hierárquicos. Le Bon, no entanto, está
preocupado principalmente com multidões não organizadas, espontâneas e
efêmeras. Somente uma teoria explícita da sociedade, que transcenda em muito os
limites da psicologia, pode responder completamente à pergunta feita aqui. Por
ora nos contentamos com algumas sugestões. Primeiro, as finalidades objetivas
do fascismo são amplamente irracionais na medida em que contradizem os interesses
materiais de grande número daqueles que elas tentam incorporar, não obstante o boom
pré-guerra dos primeiros anos do regime de Hitler. O risco contínuo de guerra
inerente ao fascismo significa destruição, e as massas sabem disso ao menos
pré-conscientemente. Desse modo, o fascismo não é totalmente mentiroso quando
se refere a seus poderes irracionais, não importando se é falsa a mitologia que
ideologicamente racionaliza o irracional. Como seria impossível para o fascismo
ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve
necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada
psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e
regressivos. Essa tarefa é facilitada pelo estado de espírito de todos aqueles
estratos da população que sofrem frustrações sem sentido e desenvolvem, por
isso, uma mentalidade mesquinha e irracional. O segredo da propaganda fascista
pode bem ser o fato de que ela simplesmente toma os homens pelo que eles são –
os verdadeiros filhos da cultura de massa estandardizada atual, amplamente
despojados de autonomia e espontaneidade – em vez de estabelecer metas cuja
realização transcenderia o status quo psicológico não menos que o
social. A propaganda fascista tem apenas de reproduzir a mentalidade existente
para seus próprios propósitos – não precisa induzir uma mudança –, e a
repetição compulsiva, que é uma de suas características primárias, estará em
acordo com a necessidade dessa reprodução contínua. Ela se apóia absolutamente
na estrutura total tanto quanto em cada traço particular do caráter
autoritário, que é, ele mesmo, produto de uma internalização dos aspectos
irracionais da sociedade moderna. Sob as condições prevalecentes, a
irracionalidade da propaganda fascista se torna racional no sentido da economia
pulsional. Pois, se o status quo é tomado como algo aceito e
petrificado, é necessário um esforço muito maior para se ver através dele do
que para se ajustar a ele e obter pelo menos alguma satisfação por meio da identificação
com o existente – o núcleo da propaganda fascista. Isso pode explicar por que
os movimentos de massa ultra-reacionários usam a “psicologia das massas” num
grau muito maior do que movimentos que mostram mais fé nas massas. Entretanto,
não há dúvida de que mesmo o movimento político mais progressista pode se
deteriorar até chegar ao nível da “psicologia da multidão” e de sua
manipulação, se seu próprio conteúdo racional é despedaçado pela reversão ao
poder cego.
“O segredo da propaganda fascista pode bem ser o fato de que ela simplesmente toma os homens pelo que eles são – os verdadeiros filhos da cultura de massa estandardizada atual, amplamente despojados de autonomia e espontaneidade – em vez de estabelecer metas cuja realização transcenderia o status quo psicológico não menos que o social. A propaganda fascista tem apenas de reproduzir a mentalidade existente para seus próprios propósitos – não precisa induzir uma mudança –, e a repetição compulsiva, que é uma de suas características primárias, estará em acordo com a necessidade dessa reprodução contínua.”
A assim chamada psicologia do fascismo é
amplamente gerada por manipulação. Técnicas racionalmente calculadas provocam o
que é ingenuamente considerado a irracionalidade “natural” das massas. Esse insight
pode nos ajudar a resolver se o fascismo como fenômeno de massa pode ser
explicado em termos psicológicos. Apesar de certamente existir uma potencial
suscetibilidade ao fascismo entre as massas, é igualmente certo que a
manipulação do inconsciente, o tipo de sugestão explicada por Freud em termos
genéticos, é indispensável para a atualização desse potencial. Isso,
entretanto, corrobora a suposição de que o fascismo como tal não é uma questão
psicológica e também de que qualquer tentativa para entender suas raízes e seu
papel histórico em termos psicológicos permanece no nível das ideologias, como
a das “forças irracionais”, promovidas pelo próprio fascismo. Embora o agitador
fascista indubitavelmente assuma certas tendências internas àqueles aos quais
se dirige, ele o faz como mandatário de interesses econômicos e políticos
poderosos. Disposições psicológicas não causam, na verdade, o fascismo; antes,
o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada com sucesso pelas
forças que o promovem por razões completamente não-psicológicas de interesse
próprio. O que acontece quando massas são apanhadas pela propaganda fascista
não é uma expressão primária espontânea de instintos e desejos, mas uma
revitalização quasi-científica de sua psicologia – a regressão
artificial descrita por Freud em sua discussão sobre os grupos organizados. A
psicologia das massas foi controlada por seus líderes e transformada em meio
para sua dominação. Ela não se expressa diretamente pelos movimentos de massa.
Esse fenômeno não é completamente novo, mas foi pressagiado pelos movimentos
contra-revolucionários ao longo da história. Longe de ser a fonte do fascismo,
a psicologia se tornou um elemento entre outros em um sistema sobreposto cuja
própria totalidade é tornada necessária pelo potencial de resistência das
massas – a própria racionalidade das massas. O conteúdo da teoria de Freud – a
substituição do narcisismo individual pela identificação com a imagem dos
líderes – aponta na direção do que poderia ser chamado de apropriação da
psicologia de massa pelos opressores. Esse processo tem, com certeza, uma
dimensão psicológica, mas também indica uma tendência crescente à abolição da
motivação psicológica no sentido antigo e liberal. Tal motivação é
sistematicamente controlada e absorvida por mecanismos sociais que são
regulados a partir de cima. Quando os líderes se tornam conscientes da
psicologia de massa e a tomam nas próprias mãos, ela deixa de existir, num
certo sentido. Essa potencialidade está contida no constructo básico da
psicanálise, porquanto para Freud o conceito de psicologia é essencialmente
negativo. Ele define o reino da psicologia pela supremacia do inconsciente e
postula que o que é isso deveria se tornar eu. A emancipação do homem
do domínio heterônomo de seu inconsciente seria equivalente à abolição de sua
“psicologia”. O fascismo promove essa abolição no sentido oposto, pela
perpetuação da dependência em lugar da realização da liberdade potencial, pela
expropriação do inconsciente por meio do controle social em lugar de tornar os
sujeitos conscientes de seus inconscientes. Pois, ao mesmo tempo que sempre
denota algum aprisionamento do indivíduo, a psicologia também pressupõe
liberdade no sentido de uma certa auto-suficiência e autonomia do indivíduo. Não
é acidental que o século XIX tenha sido a grande era do pensamento psicológico.
Numa sociedade completamente reificada, na qual não há virtualmente nenhuma
relação direta entre homens e na qual cada pessoa foi reduzida a um átomo
social, a uma mera função da coletividade, os processos psicológicos, apesar de
persistirem dentro cada indivíduo, deixaram de aparecer como forças
determinantes do processo social. Assim, a psicologia do indivíduo perdeu o que
Hegel teria chamado de sua substância. Talvez o maior mérito do livro de Freud,
apesar de ter se restringido ao campo da psicologia individual e sabiamente se
abstido de introduzir fatores sociológicos de fora, tenha sido, não obstante,
alcançar o momento decisivo no qual a psicologia renuncia a seu poder. O
“empobrecimento” psicológico do sujeito que “se entregou ao objeto”, o qual
“substituiu seu componente mais importante”36, isto é, o
supereu, antecipa quase com clarividência os desindividualizados átomos sociais
pós-psicológicos que formam as coletividades fascistas. Nesses átomos sociais,
as dinâmicas psicológicas da formação de grupo foram para além de si mesmas e
não são mais uma realidade. A categoria da “impostura” (phonyness) se
aplica aos líderes tanto quanto ao ato de identificação por parte das massas e
a seus supostos frenesi e histeria. Do mesmo modo que, no fundo do coração, as
pessoas pouco crêem nos judeus como o demônio, elas também não acreditam
completamente no líder. Não se identificam realmente com ele, mas simulam essa
identificação, encenam seu próprio entusiasmo e participam, assim, da
performance de seu líder. É por meio dessa encenação que atingem um equilíbrio
entre seus desejos instintuais continuamente mobilizados e a fase histórica de
esclarecimento que alcançaram e que não pode ser arbitrariamente revogada. É
provavelmente a suspeita do caráter fictício de sua própria “psicologia de
grupo” que torna as multidões fascistas tão inabordáveis e impiedosas. Se
parassem para raciocinar por um segundo, toda a encenação desmoronaria, e só
lhes restaria entrar em pânico.
“A psicologia das massas foi controlada por seus líderes e transformada em meio para sua dominação. Ela não se expressa diretamente pelos movimentos de massa.”
Freud descobriu esse elemento de “impostura” em
um contexto inesperado, isto é, quando discutia a hipnose como um retrocesso
dos indivíduos à relação entre a horda primitiva e o pai primitivo.
“Como sabemos por outras reações, os indivíduos
preservaram um grau variável de aptidão pessoal para reavivar velhas situações
desse tipo. Algum conhecimento de que, apesar de tudo, a hipnose é apenas um
jogo, uma renovação ilusória dessas antigas impressões, pode, porém, permanecer
por detrás e cuidar para que haja uma resistência contra quaisquer
conseqüências sérias da suspensão da vontade na hipnose.”37
Nesse meio tempo, esse jogo foi socializado, e as
conseqüências provaram-se muito sérias. Freud estabeleceu uma distinção entre
hipnose e psicologia de grupo descrevendo a primeira como a que toma lugar
entre duas pessoas apenas. Entretanto, ao apropriar a psicologia de massa e
aperfeiçoar sua técnica, os líderes coletivizaram o feitiço hipnótico. O grito
de guerra nazista – “Desperta, Alemanha”– esconde seu próprio contrário. A
coletivização e a institucionalização do feitiço, no entanto, tornaram a
transferência cada vez mais indireta e precária, de forma que o aspecto de
performance, a “impostura” da identificação entusiástica e de toda a dinâmica
tradicional da psicologia de grupo, foi tremendamente aumentado. Aumento esse
que bem pode terminar numa súbita consciência da inverdade do feitiço e, por
fim, em seu colapso. A hipnose socializada cria no interior de si mesma as
forças que eliminarão o fantasma da regressão por controle remoto, e que, no
fim, despertarão aqueles que mantêm seus olhos fechados apesar de não estarem
mais dormindo.
* Artigo publicado originalmente na revista Margem Esquerda.
Fonte: Blog da BoiTempo
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