7 de out. de 2016

Polícia: a possível resistência - Entrevista com Elisandro Lotin

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Líder dos PMs críticos assegura: espalha-se, na corporação, oposição a reprimir os pobres e as lutas. Mas primeiro passo para combater violência é garantir direitos dos policiais
Por Manuela Azenha, na Brasileiros

Abusos da polícia não são um desvio de função da corporação – muito pelo contrário. Desde a sua origem, o sistema de segurança pública no Brasil existe para servir ao Estado e não à sociedade. É o que defende Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina: “Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica econômica. A polícia tem por função manter o controle social de 95% da população, que está fora de qualquer discussão político-econômica, quando necessário, com a utilização da violência. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desse 95% de excluídos”.

Lotin é presidente da Anaspra (Associação Nacional dos Praças), membro da diretoria Aprasc (Associação dos Praças de Santa Catarina), do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pelo Código Penal Militar, ele não poderia sequer dar a entrevista a seguir. “Já fui preso várias vezes. Os policiais são subcidadãos, não podemos nem falar. Mas cada vez mais, nosso pessoal questiona e se mobiliza contra isso”.

Para ele, defender os direitos dos policiais é o primeiro passo para combater a violência cometida pela instituição e repensar um novo modelo de segurança pública: “Se o policial é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador, ele vai respeitar os direitos dos outros?”

elisandro-lotin-reproducao-facebook

Revista Brasileiros – A polícia do Brasil é uma das que mais matam e que mais morrem no mundo. A quem serve o sistema de segurança pública no Brasil?

Elisandro Lotin – Em sua origem, o sistema de segurança pública do Brasil serve a um pequeno grupo de pessoas, detentoras do poder político e econômico. Desde as origens das instituições de segurança pública, quando a polícia caçava escravos, mantinha os pobres afastados e isso não mudou muito. Foi assim no passado e é assim hoje, o desafio é mudar esta lógica e fazer da polícia uma instituição para proteger o cidadão.

A violência da polícia no Brasil pode ser considerada um desvio ou é justamente essa a finalidade dela?

Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica econômica. Ela é uma polícia montada e treinada nessa lógica econômica e política, naturalmente tem por função manter o controle social de 95% da população que está fora de qualquer discussão, e é obrigada a ficar nos seus espaços, não pode agir. A polícia tem que manter essas pessoas controladas a qualquer custo, quando necessário com a utilização da violência.

O senhor defende que o policial é vítima e não algoz da violência. Por quê?

O policial também faz parte desses 95% de pessoas que precisam ser controladas. O policial não faz parte da elite, da classe dominante. Acontece que no treinamento do dia a dia, e através de regras e legislações que tiram dele a cidadania, ele avalia que está fora – mas não está. Não é só dentro dos quartéis. O Estado brasileiro é um Estado militarizado. Não é só a polícia, que está na linha de frente, um órgão de coerção. O Judiciário é assim, o Ministério Público é assim. O Estado gira em torno de manter 95% da sociedade sob controle, todos os órgãos estão a serviço disso.

E qual o papel da formação do policial nesse contexto de violência?

Temos dois modelos de policiamento no mundo, que se destacam nos países ocidentais. O policiamento inglês, um modelo de policiamento comunitário, de proximidade, de bairro, onde a polícia está próxima do cidadão. Alguns estados dos EUA, Inglaterra, Japão desenvolvem esse modelo. O outro é o modelo francês, que é da polícia do Estado. No Brasil temos o modelo francês, que é de Estado, e dominado pelo poder econômico. A formação do policial vai nessa lógica, formá-lo para defender o Estado e o poder econômico – não a sociedade. Não só do policial, mas de todos os segmentos que deveriam estar protegendo a sociedade e não estão. Na formação do policial você passa por uma ideologização, tem que ver naquela outra pessoa, naqueles 95%,  um inimigo do Estado – como tal, vai criar conflito. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desse 95% por conta dessa ideologização ao longo de sua formação e do desempenho de suas atividades.

E como se dá essa ideologização?

Eu defendo que nas academias de polícia os cursos sejam dados por pessoas capacitadas em suas áreas. Alguns estados têm evoluído para um novo modelo de policial, mas outros estão muito atrasados. Por exemplo, no curso de direitos humanos. É preciso falar mais sobre isso, sobre cidadania, formação da sociedade, antropologia, sociologia, psicologia. Claro, se partirmos da lógica de que é preciso controlar a ferro e fogo os policiais, e o modelo impõe isso, matérias militares se fazem necessárias, afinal o objetivo delas é justamente controlar e adestrar. Sim, somos adestrados, os manuais militares dizem isso, que somos adestrados e não treinados. Ainda temos uma lógica em algumas instituições em que um policial,  no adestramento, vai para o mato e fica uma semana apanhando, passando fome, sem dormir, sendo humilhado e até torturado física e psicologicamente. Me pergunto: que benefício este tipo de treinamento trará para a segurança pública? Que tipo de policial queremos? Em que momento esse tipo de treinamento vai ajudar a termos uma segurança pública cidadã, que defenda e prime pelos direitos humanos, por exemplo? A própria palavra, adestramento, já é uma afronta. É óbvio que neste contexto o policial vai priorizar coisas que não são a cidadania, o respeito aos direitos.

Para ajudar nisso tudo, temos uma legislação penal, militar, regulamentos, que acaba por nos forçar  a ser assim também. Por exemplo, eu tenho que cumprir uma reintegração de posse de uma fazenda que está lá improdutiva e que o Incra está em processo de desapropriação para entregar à reforma agrária. Eu, enquanto cidadão, pensador policial e defensor de uma outra lógica de polícia, tenho a compreensão de que aquele trabalho é injusto e errado. A Constituição garante a utilização social da terra. Só que se eu não for cumprir essa ordem judicial, eu vou preso. Todo mundo sabe que não pode bater e espancar. Mas se o policial é espancado no seu treinamento, se ele é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador, ele vai respeitar os direitos dos outros? Não. Ele não sabe o que é isso. Minha tese é de que somos produto de um modelo, não se pode culpar o policial. Ele foi treinado para ser assim. O policial é violento porque a sociedade é violenta, o Estado é violento. O Estado é obrigado a dar saúde e educação, por exemplo. Quando ele não dá, a população se revolta. Quem é que vai lá controlar essa população? A polícia. É um órgão do Estado pago para fazer o que o Estado deveria fazer e não faz. Nós estamos agindo na falha e omissão do Estado.

 
O senhor diz que as denúncias de tortura contra policiais têm aumentado. O senhor acha que as denúncias é que aumentam ou os casos de tortura em si?

Acho que isso se deve ao aumento de denúncias formais, bem como ao “novo” policial que começa a surgir e que tem consciência de seus direitos e deveres. Este “novo” policial surge consciente da evolução social, conhece seus direitos, ou seja, ele acompanha a evolução do mundo, da sociedade, do Brasil.  Temos muitos policiais hoje com nível superior, ele não aceita mais determinadas situações e isso tem criado um aumento de denúncias, o policial hoje é mais questionador. Os policiais brasileiros querem mudar a realidade – as estatísticas dizem isso. O problema é que encontramos barreiras dos dois lados: do Estado que não deseja mudar nada, que vem com todo seu poder de força disciplinar e tenta calar o policial, e por outro lado encontramos uma resistência da sociedade em geral, que também é moldada em uma lógica excludente.  A sociedade brasileira é violenta e exige, inclusive, que o policial seja assim, claro, desde que não seja com ele, com o filho, o amigo, o parente, enfim. Vivemos um antagonismo. Imagino um policial cheio de interrogação na cabeça. Ao mesmo tempo em que a sociedade prega a defesa dos direitos humanos, pesquisas mostram que 50% defende que bandido bom é bandido morto. Ao mesmo tempo que o policial deseja mudar, o Estado, que deveria ser o principal indutor desta mudança, age de forma oposta.

A militarização em si da polícia é um problema?

Eu sempre fui um defensor da desmilitarização,  porém ao longo de anos de estudo e por experiência empírica, creio que hoje, para termos uma melhoria de fato na segurança pública, não basta só desmilitarizar. É preciso mudar o modelo, a cultura. A sociedade é “militarizada”, a política é “militarizada”, belicistas, e quando falo militarizada refiro-me à questão cultural. Veja a Polícia Civil, por exemplo, lá também tem órgãos tão “militarizados” quanto a PM, repito, refiro-me à cultura. Na Guarda Municipal ou civil, a mesma coisa. Enfim, a sociedade brasileira é militarizada. Isso porque o grupo dominante quer que seja assim. Desmilitarizar por desmilitarizar não vai adiantar.

A desmilitarização é um processo bem mais complexo do que simplesmente deixar de estar vinculada ao exército. Existem no mundo instituições com um organograma militar, mas com cultura diferente, cidadã, humana. Quando os policiais falam em desmilitarização, eles querem dizer humanização, respeito, dignidade, respeito aos direitos dos mesmos, enfim. A questão é: nosso modelo militarizado aceitaria isso? Me parece que não, e neste caso é preciso desmilitarizar. A quem interessa o modelo militar de segurança pública, que prende policial ou bombeiro por questões disciplinares irrelevantes no contexto da segurança pública, ou mesmo da eficiência do trabalho?  A resposta me parece clara, interessa a um grupo de pessoas que deseja nos manter alijados de um debate mais progressista. Para a sociedade civil, desmilitarização significa acabar com a violência, e isso não vai ocorrer, pois a sociedade é violenta e o Estado maximiza essa violência na medida em que é formatado e mantido para um pequeno grupo de pessoas.

Se o senhor relaciona a violência a qual o policial é submetido dentro dos quartéis com a que ele comete na rua, então não são visões tão diferentes.

A violência sofrida dentro dos quartéis tem o cunho de moldar, de controlar, é tudo impositivo, sem discussão, e se um PM no seu dia a dia sofre com isso, ele absorve e externa essa realidade  para a sociedade. Me parece meio lógico, se você é maltratado, desrespeitado e aviltado em seus direitos mais básicos, você fará o mesmo com os outros. Quando o policial fala em desmilitarização, ele fala isso em função dele enquanto cidadão detentor de direitos que são sistematicamente violados pelo Estado. A sociedade, quando fala em desmilitarizar,  tem a crença de que a violência policial  acabará, o que não é verdade, visto que a própria sociedade fomenta a violência, ou seja, contribui para a violência policial. Em outras palavras, o policial é produto de um modelo que o torna violento. A violência policial e a violência da sociedade possuem uma ligação direta. Como eu disse, e insisto, no Brasil existe uma banalização da violência, fomentada pelo Estado, pela mídia e por parte da sociedade.

O senhor está na ativa. De acordo com o Código Penal Militar, o senhor poderia estar dando essa entrevista?

Não, nem pelo código penal militar e nem pelos regulamentos internos nossos. Estou sujeito à punição. Os nossos regulamentos, em sua maioria, são da década de 80, ou seja, de antes da Constituição.

O senhor já recebeu algum tipo de punição?

Já, eu e inúmeros outros companheiros. Mas a gente insiste porque estamos defendendo inclusive o próprio policial e um novo modelo de segurança pública, o qual tenha por princípio a dignidade humana, o respeito, a humanização, enfim. Nós não gostamos do que estamos vendo em termos de segurança pública, até porque este modelo faz vítima de todos os lados, sejam policiais ou da população. Defendemos um novo modelo de polícia, com cidadania, ética, e respeito. E isso é defender, inclusive, os polícias e a polícia. Faço parte de vários grupos de discussão sobre segurança pública, como por exemplo “Policiais antifascismo”; “Policial Pensador”, “Militares para a Democracia”. Hoje temos milhares de policiais (civis, militares, guardas municipais, policiais federais, rodoviários federais, agentes prisionais), de todos os níveis hierárquicos que debatem segurança pública.

E qual foi a punição que o senhor recebeu?

Já fiquei preso, peguei punição administrativa. De 1997 para frente, várias polícias no Brasil fizeram greve, seja para reivindicar salário, mudança de jornada de trabalho, e greve na polícia é algo proibido. Vários policiais que discutem isso já foram punidos. Estamos sujeitos a todo tipo de punição disciplinar. Aqui em Santa Catarina tivemos um policial expulso. Em outro estado, teve um que defendeu a desmilitarização na tese de mestrado e foi expulso. Não podemos falar sobre segurança pública. Imagina um médico, uma enfermeira ou auxiliar de enfermagem que não pode falar sobre saúde?  É absurdo.

O senhor ficou preso quanto tempo?

Se somar tudo, eu nem sei. Fui preso várias vezes. Fiquei 48 horas uma vez, 24 horas, enfim. Foram várias punições ao longo desses 20 anos discutindo a situação da polícia. Claro que tem conjuntura política nessa jogada. Em SC, por exemplo, faz algum tempo que não tenho tido nenhum problema. Algumas polícias estão aplicando mudanças, como a de SC, já começa a chegar uma nova geração de oficiais, de gestores, que já pensam pós-Constituição de 1988. Mas em estados como Rio Grande do Norte, e outros do Nordeste, o militarismo e as regras militares, principalmente que tolhem qualquer cidadania do policial, ainda são muito aplicadas.

O senhor é presidente da Anaspra, ex-presidente da Aprasc e membro da diretoria. Como é ser sindicalista nesse ambiente militar?

Difícil, muito difícil. Para começar, essa palavra “sindicalista” para nós é proibida, vetada pela Constituição. Tanto que não temos um sindicato, mas uma associação. Fomos processados em 2009, pelo governo de SC, por estarmos agindo como sindicato. Primeiro você tem que vencer barreiras internas, nosso próprio pessoal tem dificuldade em aceitar que tem direitos e que tem que lutar por esses direitos. Falar em manifestação, o cara fica com um ponto de interrogação, não sabe se é trabalhador, se é policial ou militar. Se ele é cidadão, se não é. Ele é condicionado ao longo da sua vida para não pensar nisso. E tu sofre barreiras jurídicas, legais. Apesar disso, em SC hoje, a gente já está em outro patamar, superamos essas questões politicamente. Somos a maior entidade de praças do Brasil, proporcionalmente. Temos praticamente todo o efetivo da PM e BM, tanto da ativa quanto da reserva, filiados à entidade, são 15 mil. E temos uma inserção social muito grande, o que nos dá uma certa blindagem política. Tivemos um deputado eleito duas vezes aqui. Eu fui candidato a deputado estadual pelo PSOL. A gente criou um certo respeito e reconhecimento das autoridades.

Esse cenário é atípico para o resto do País?

Só ocorre em Santa Catarina e Minas Gerais, que foi o primeiro estado do Brasil a fazer uma greve, em 97, quando inclusive um cabo da PM foi assassinado. A maioria ainda tem uma lógica secular, que existia na época da ditadura. No RN teve um policial que fez um comentário numa plataforma de debates na internet e pegou 15 dias de prisão. Eu sou presidente da Anapra, temos feito essa discussão com outras organizações e o debate tem evoluído, as discussões sobre modelo de segurança pública estão mais acirradas, o que obriga o Estado a pensar mais nessa questão. Mas ainda existe uma repressão muito grande com relação aos policiais pensadores. Parta da premissa de que até 1988 soldado e cabo eram proibidos de votar. A política é muito nova no nosso meio. Aí em São Paulo a segurança pública é um absurdo e os policiais são vítimas disso, de um lado do Estado e do outro do crime organizado. Sofre uma influência do PSDB, que está há 20 anos no poder. Em termos de regulamento, ainda não se adequou à Constituição de 88, existem problemas sérios com relação à sociedade civil organizada que vê no policial o inimigo, quando na verdade ele é tão vítima quanto os outros.

Quando a gente pensa no combate à violência policial, de quem devemos cobrar? Quem é o responsável por repensar esse modelo de segurança pública?

Nós vivemos um modelo completamente arcaico. Temos duas polícias, uma civil e uma militar, que em tese se complementam, o que não existe em nenhum lugar do mundo, por isso somos defensores do ciclo completo de polícia. Cada órgão de polícia fazer todo o procedimento do início ao fim. O modelo de segurança público é suis generis, porque o Estado, a União tem pouca gerência sobre o modelo. O artigo 144 da Constituição é muito falho, foi muito limitado. Os estados é que gerenciam as suas polícias, existem normas gerais que a União legisla, mas quem gerencia são os Estados. A PM, por exemplo, é força auxiliar reserva do Exército. Se todos os efetivos da PM estivessem no Itaquerão, vai chegar o presidente da República e me dar uma ordem, o governador do Estado para dar outra ordem, o comandante geral da PM dá outra ordem e vai chegar o general comandante do Exército e dar outra. A gente entra em parafuso, não sabemos a quem responder. Devemos obediência a vários senhores.

Que tipo de tortura um policial sofre dentro dos quartéis?

Tem imagens na internet, qualquer um pode ver, de policial em treinamento e comendo a mesma comida que um cachorro, na mesma gamela. Tortura psicológica, isso é regra. As ameaças. O índice de assédios moral e sexual de mulheres nos órgãos de segurança pública chega a quase 40%, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tivemos casos de policiais fazendo flexão no asfalto quente às 16h, num sol de 40 graus. O filme “Tropa de Elite” mostra aquela cena dos caras comendo comida no chão. Aquilo acontece.

Apesar dos avanços que o senhor aponta com relação aos direitos para policiais, o número de suicídios na polícia é alto e crescente. Por quê?

Aqui em SC, nos últimos cinco anos, foram 20 suicídios nos órgãos de segurança pública. Em 2015 até agora foram 9 suicídios na PM, com um efetivo de 9 mil pessoas. É um numero absurdo. Temos em média quase sete vezes mais chance de se suicidar do que a sociedade comum. Isso se deve a vários fatores: assédios, a gente trabalha com a área que a sociedade joga para debaixo do tapete. Ao mesmo tempo em que atendo uma ocorrência de algo lindo como um parto, dez minutos depois vou atender uma ocorrência de um pai que estuprou uma menina de um ano. Existe ainda uma lógica na sociedade que o policial é herói. Ele não é herói, é um ser humano como qualquer outro. Se ele está num ambiente muito propício de ter altos e baixos psicológicos, que sofre uma carga negativa muito grande com o pior tipo de violência que existe, que tem todo um regramento que priva ele de cidadania, de poder falar, inclusive, isso tudo aumenta os índices de suicídio.

Existe um atendimento psicológico para os policiais?

Esse é um outro problema. Aqui em SC nós conseguimos a partir de 2011 aprovar várias leis que davam acompanhamento psicológico. Porém essa legislação chegava na mão do governador e ele vetava porque é inconstitucional criar custos para o Estado na Assembleia.

Pois bem, a partir de um caso que ganhou repercussão nacional (um PM que teve um surto psicótico em Joinville e tirou a farda, enfim), com o apoio do governo federal, bem como por conta de nossas cobranças, o comando da PM da época, criou um programa de acompanhamento dos policiais e bombeiros, mas ainda existem algumas dificuldades do ponto de vista prático.  Temos um efetivo muito pequeno e aí às vezes o policial teria que ser afastado e não é, a orientação do psicólogo não é atendida pela necessidade de ter policial na rua.  Para além destas dificuldades, temos o fato de que os próprios policiais por vezes resistem a procurar ajuda, afinal, para todos e para ele ele é um super herói e assim imune a tudo e todos. Em suma, existem programas que funcionam de forma muito tímida ainda.

E com relação à atual conjuntura política e os projetos que tramitam no Congresso? O senhor se sente contemplado pela bancada da bala?

Absolutamente não. Sou radicalmente contra a redução da maioridade penal, a mudança do estatuto do desarmamento. Nós tivemos uma ruptura institucional ilegítima com o impeachment de Dilma e temos um Congresso extremamente conservador.  Temos vários policiais discutindo melhoras na segurança pública enquanto temos um Estado que, com essa ruptura, vai no sentido contrário do que estamos discutindo. Estamos regredindo em termos de Estado ao mesmo tempo em que avançamos em termos de policiais pré-dispostos a discutir isso. Acho que o governo federal anterior pecou muito, poderia ter dado uma contribuição muito maior, não fez e ainda abriu portas para que esse governo de agora piore o que já era ruim. Lula e Dilma poderiam ter feito esse debate de forma muito mais propositiva. Não fizeram e aí vem esse governo agora conservador que vai na lógica de retirar direitos dos trabalhadores, inclusive dos militares que até então estavam blindados na previdência, pelo menos. Eles também serão vitimas disso, só que quem vai ser utilizado para manter sob controle esses trabalhadores que vão perder direitos? O Estado comete erros e utiliza os policiais para manter a massa sob controle. O grande diferencial agora é que esses policiais também vão ser vítimas diretas desse conservadorismo e vão ter seus direitos mais aviltados ainda. Como que eles vão reagir? Não sei. O que temos dito para nossos policiais é:  nenhum direito a menos e só a luta muda a lei.

É comum ter policiais de esquerda com o senhor?

Somos milhares em vários grupos de debate. Tem bastante, mas boa parte não se manifesta por conta desses regulamentos.

O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) é representativo da ideologia predominante na PM?

Sim, e isso me deixa muito frustrado. Conheço o Bolsonaro, debati com ele algumas vezes, é o que representa a maioria da categoria hoje. Ele tem um discurso fácil. A sociedade mundial hoje é fascista. As lógicas de direita e extrema direita, em função das crises econômicas, estão se fortalecendo. Aí você foca sua insatisfação no Bolsonaro, e quem é ele? Está há 20 anos no poder e nunca fez nada pelos policiais ou pela sociedade, exceto discursos fáceis e via de regra divisionistas e maniqueístas.

Fonte: Outras Palavras, 5 de outubro de 2016.

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