Henry Darger
Os preconceitos não são inúteis. Eles tem uma
função importantíssima na economia psíquica do preconceituoso. Sem os
preconceitos, a vida do preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos
servem na prática para favorecer uns e desfavorecer outros, para confirmar
certezas incontrastáveis, manter a ordem e descontextualizar os fenômenos. São
parte fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem para mistificar,
para manipular, mas servem sobretudo para sustentar um ideal falso na pessoa do
preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal de “superioridade”, sem o
qual os preconceitos seriam eliminados porque perderiam, aí sim, a sua função
fundante.
Ainda que sejam psicológicos e não lógicos, daí a
aparência de irracionalidade, os preconceitos funcionam a partir de uma lógica
binária, bem simples, uma espécie de “lógica da identidade”, mas em um sentido
muito elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a vida, as culturas,
as sociedades, as pessoas, ao parâmetro “superior-inferior”. Preconceitos não
funcionam fora de jogos de linguagem que são jogos psíquicos, que produzem
algum tipo de compensação psíquica.
Vivemos tempos de descompensação emocional
profunda, em uma espécie de vazio afetivo (junto com um vazio do pensamento e
um vazio da ação que se resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto
de mercadorias). Nesses tempos, a oferta de preconceitos se torna imensa. No
sistema de preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme uma estranha
oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir o ódio, que é o afeto básico do
preconceito, contra eles. Se há mulheres, homossexuais, negros, indígenas,
lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre eles, conforme haja
oportunidade. Verdade que o ódio é sempre dirigido àquele que ameaça, ou seja,
no fundo do ódio há muito medo. O preconceituoso é, na verdade, em um sentido
um pouco mais profundo, alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu
medo com coragem, ele usa a covardia, justamente porque é impotente para
enfrentar seu próprio medo.
O preconceituoso é, basicamente, um covarde.
Tendo isso em vista, é importante falar de um preconceito
que está em voga nesse momento: o anti-intelectualismo. Há um ódio que se
dirige atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao
esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo, esse ódio é velado, pois o
lugar do saber é um lugar de poder que é interessante para muitos. Se podemos
falar em “coronelismo intelectual” como um uso elitista do conhecimento, e de
“ignorância populista”, como um uso elitista da ignorância, como duas formas de
exercer o poder manipulando o campo do saber, podemos falar também de um ódio à
inteligência, do seu apagamento.
Há, dividindo espaço com opressões próprias ao
campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e
desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um
saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância
que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia
intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível
institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser
observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre
Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como
formulador de políticas públicas do Ministério da Educação ao projeto repleto
de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da
“negação do saber”) da “Escola sem partido”. Do silêncio em torno da exclusão
de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à
expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do
conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com
a educação (consagrado na PEC 241) ao tratamento conferido aos professores em
todo Brasil (na cidade do Rio de Janeiro, uma das mais constantes críticas
direcionadas ao candidato Marcelo Freixo, que disputa o segundo turno das
eleições municipais contra o pastor licenciado da IURD Marcelo Crivella, é de
que por ser professor não falaria “a linguagem do povo”).
O alto índice de abstenções, votos nulos e brancos
(bem como a expressiva votação de políticos que se apresentavam como
não-políticos) também é um sintoma do anti-intelectualismo, na medida em que o
eleitor identifica o político como aquele que detém o “saber político”, um
“saber” que foi demonizado pelos meios de comunicação de massa.
No sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é
aquele que julga da forma que o povo desinformado julgaria, mesmo que para isso
seja necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da
República. Por outro lado, não são raros os casos de juízes e promotores de
justiça que respondem a procedimentos administrativos acusados de decidir
contra o senso comum propagado pelos meios de comunicação de massa.
Em meio à onda anti-intelectualista, não causa
surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias
pré-modernas como o “messianismo” e a “peste”. O messianismo identifica-se com
a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e
destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem
corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar
provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos
problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas
formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou
pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e “peste”, fenômenos
típicos de um conservadorismos carente de reflexão, onde desaparece o saber e a
educação.
A barbárie está em curso.
Fonte: Revista Cult
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