22 de out. de 2012

Por uma educação em que o forte proteja e cuide do que ainda é pequeno e frágil

Cão e cordeiro

Foto retirada do site Conversa do Sertão

Porque a violência física intrafamiliar contra crianças e adolescentes passou a ser um tema prioritário na minha ação política?

1) Dentre as violências domésticas sofridas por crianças e adolescentes, a violência física é a que apresenta maior frequência de notificação no sistema VIVA (Vigilância em Violência e Acidentes) do Ministério da Saúde;

2) A maioria dos casos notificados de violência doméstica tem como principal autor da violência os próprios pais biológicos. A violência que afeta as crianças e adolescentes brasileiros ocorre predominantemente na relação familiar;

3) A violência física resulta em casos graves e de alta letalidade. O número de mortes decorrente da violência física predomina em relação às outras formas de violência (AZEVEDO; GUERRA, 1995);

4) Mais naturalizada dentre as violências intrafamiliares;

5) A violência física intrafamiliar como método punitivo disciplinar, aliada a violência psicológica, é um dos instrumentos chaves para a edificação e manutenção da sociabilidade estruturada na relação Comando-Obediência/Dominação-Subordinação.

 


  • Estatísticas que apontam a gravidade da violência física cometida contra crianças e adolescentes:

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  • Estatística que evidencia a letalidade* da violência física cometida contra crianças e adolescentes:

 

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  • Imagens e discursos científicos que ilustram a naturalização do uso de violência física na educação e no cuidado de crianças e adolescentes:

 

Anúncio da máquina a vapor para a rápida correção das meninas e dos meninos

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O texto anúncio diz: “Avisamos aos pais e mães, tios, tias, tutores, tutoras e diretores de internatos e, de modo geral, todas as pessoas que tenham crianças preguiçosas, gulosas, indóceis, desobedientes, briguentas, mexeriqueiras, faladoras, sem religião ou que tenham qualquer outro defeito, que o senhor Bicho-Papão e a senhora Tralha-Velha acabaram de colocar em cada distrito da cidade de Paris uma máquina semelhante à representada nesta gravura e recebem diariamente em seus estabelecimentos, de meio-dia às duas horas, crianças que precisem ser corrigidas” (apud FOUCAULT, 2004, p. 30 - 31).


 

“A naturalização da violência física na educação das crianças não é um fenômeno isolado, tampouco uma mera manifestação do senso comum e popular. Conhecimentos e tecnologias fundamentam e implementam essa naturalização. No século XVIII, uma máquina a vapor foi criada para economizar a energia dos pais ou cuidadores ao punir fisicamente seus filhos.

Canevacci (1981) relata, em um dos capítulos da obra Dialética do indivíduo, algumas histórias acerca da perseguição de crianças por seus pais. Ele descreve a pedagogia familiar do eminente médico alemão Daniel Gottilieb Schreber (1808 - 1861) que escreveu dezoito livros e opúsculos, muitos dos quais abordam seus métodos de educação infantil. Para esse médico, era necessária a elaboração de um sistema educativo que propiciasse obediência total da criança em relação ao adulto. Seus pensamentos associavam-se à crítica que ele fazia da sociedade em que se achava inserido, a qual ele considerava moralmente fraca e em decadência, atribuindo esse fenômeno à pouca energia empregada na disciplina das crianças.

As regras ditadas por ele em suas obras, em termos de disciplinamento das crianças, tinham como objetivo alcançar uma sociedade de uma raça de melhores. Assim, ele elaborou uma série de inventos, testados em seu próprio filho, que castigavam o corpo da criança, comprimindo sua caixa torácica, sua cabeça (elevador de cabeça, espigador, máquina quebra-cabeça). O filho, Daniel Paul Schreber (1842-1911), que passou por essas dolorosas e humilhantes experiências corporais, converteu-se em um eminente juiz que enlouqueceu aos 42 anos, curou-se e voltou a enlouquecer oito anos depois (CANEVACCI, 1981).

A disciplina e a punição física, metodicamente brutal da época do pai de Schreber, pouco a pouco foram suavizadas. Os especialistas da atualidade não recomendam as práticas idealizadas pelo médico alemão, no entanto, o ato de bater em crianças ainda é prescrito aos pais. A doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Marilda Lipp, em entrevista publicada em 5 de fevereiro de 2006 e veiculada no jornal O Popular, informa que, em determinadas circunstâncias – quando a criança começa a engatinhar ou andar e passa a mexer em tudo - uma palmada na mão é mais eficiente do que repetir mil vezes a mesma advertência. De acordo com a matéria, essa profissional garante que a palmada não traz prejuízo algum para a criança e conclui a sua argumentação dizendo: “O que não pode é os pais dependerem da disciplina física para educar a criança” (apud CZEPAK, 2006, p. 5).

Atualmente, na maioria das famílias, a violência física é distribuída em pequenas porções na educação dos filhos. Como afirma Foucault (1987), essa forma de violência travestiu-se de uma casual e aparente inocência. O objetivo da punição disciplinar, expressa na violência física suave, é ampliar o campo de controle dos comportamentos, e, por isso, ela é aplicada em doses pequenas e sempre constantes. O princípio não é punir menos, mas punir melhor, ou punir com maior universalidade.

A roupagem clean, somada à sofisticação da neutralidade técnica-analítica, oferece ao ato de punir aparente ponderação e honradez. A autoridade que pune não é um carrasco, um bruto ou um descontrolado emocionalmente, mas sim um sujeito benevolente, pois pune para o bem do outro ou da sociedade. Essa nova versão da violência física intrafamiliar contra crianças não provoca grandes reações, seja de quem a sofre ou de quem a assiste, pois expressa a idéia de um querer bem, de um cuidado com o filho ou com o seu honrado futuro. O controle é, assim, mais dissimulado, no entanto, mais duradouro e eficiente.

Com essa suavidade, a violência física pode até aparecer em imagens publicitárias para vender uma doce e gostosa goiabada ou até provocar despretensiosos risos em tirinhas de jornal, como aparece em duas ilustrações”(SILVA, 2008, p. 51 – 54).

 

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Anúncio da goiabada A Sul América S/A, publicada no almanaque do Barão de Itararé, em 1949, e reeditada em 2007 na revista Brasil Almanaque da Cultura Popular.

 

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Tiras da personagem Mafalda do cartunista Joaquim Salvador Lavado (Quino). Fonte: Lavado (2002, p. 2; 4).

Na figura acima “fica evidente que a prática da punição física é uma atividade corriqueira e aceitável. Assim a punição, o ato de provocar dor e sofrimento físico, desvencilha-se da idéia de controle e coação e assume a moderna noção de método disciplinar, evidenciando a profunda aceitação que a punição física, em especial a palmada, encontra na sociedade. Retira-se a imagem de sofrimento e crueldade e permanece a de limite e disciplina. Uma dinâmica análoga a de um pequeno tribunal é estabelecida em cada punição disciplinar. Aparece então a idéia de justiça e correção, pois se um sujeito realiza uma conduta, um comportamento considerado por alguns inadequado ou ofensivo, legitima-se à autoridade constituída o direito de punir.

Na relação doméstica entre pais e filhos, a punição disciplinar recria esse miúdo processo penal, no entanto, um elemento é excluído nesse micro e instantâneo tribunal, o direito da defesa. Graciliano Ramos (1977), no livro Infância, conta como foi a sua primeira experiência no sistema judicial doméstico:

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural. (...) Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro (...). O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível. (...) Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça (RAMOS, 1977, p. 31-35)" (SILVA, 2008, p. 55).


  • Discursos de especialistas da saúde mental que evidenciam o princípio que rege o método educativo que usa de violência física na educação e no cuidados de crianças e adolescentes.

No artigo “Tapa de pai é castigo ou carinho?” a psicanalista Carmem Bruder contesta o direito dos legisladores de interferir diretamente na forma como os pais decidem educar seus filhos com a seguinte argumentação: “(…) Para bem exercer o pátrio poder a família precisa de liberdade para interpretar a linguagem dos próprios filhos. (...) E é exatamente sobre isso que essa lei nos faz pensar: qual a intenção de um congresso que se locupleta às custas da miséria de um povo e que, ainda por cima, chama para si a responsabilidade de dizer à Nação como se deve educar? Afinal, como bem dizia a minha avó: ‘quem dá o pão dá o pau’”(BRUDER, 2006).

Içami Tiba também é categórico ao responder à indagação freqüente dos pais sobre se devem ou não utilizar a força física para fazer o filho obedecer, valendo-se novamente de outro ditado popular ele diz: “os pais não devem dar um murro, mas um empurrão bem sentido, que doa no coração. Diz um ditado caipira: “Pé de galinha não machuca os pintinhos”. Tapa de mãe que o filho sabe merecer nunca machuca. Tapa de mãe que o filho sabe merecer e não vem deseduca. Há duas leis que a criança deve aprender desde cedo: a lei criada pelos homens (sentido moral e ético da sociabilidade) e a lei natural, a lei do mais forte. Ainda que não tenha razão, o mais forte tem de ser respeitado, justamente por ser o mais forte (...)” (TIBA apud LONGO, p. 114, 2005).

No princípio da Dominação-Subordinação o mais forte em vez de proteger e orientar o mais fraco deve sim, oprimi-lo, subjugá-lo!


*Letalidade é um conceito utilizado pela epidemiologia que permite verificar a gravidade de um evento, ou seja, ela mede o risco de morte de um determinado evento. No caso em questão, a letalidade da violência física é calculada verificando-se, do total de crianças, adolescentes e jovens adultos vítimas de violência física, quantos foram a óbito por causa desse tipo de violência.

O texto que está entre aspas foi retirado do primeiro capítulo da dissertação de mestrado A VIOLÊNCIA FÍSICA INTRAFAMILIAR COMO MÉTODO EDUCATIVO PUNITIVO-DISCIPLINAR E OS SABERES DOCENTES

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