Estimado leitor
Antecipando a tradicional postagem de domingo, deixo com você alguns fragmentos de narrativas femininas que revelam como a beleza e o perfume de algumas maestras podem assumir um sentido de resistência à violência e à destruição na sempre delicada memória das crianças.
Narrativa de Adelina Ecceli* sobre sua fonte de inspiração para seu distinto trabalho como bedel da Universidade de Verona.
“Eram tempos de guerra e ela sempre era pontual, sempre presente, sempre desprendia um cheiro bom que só ela tinha. Admirei muito essa mulher. Sim a recordo, a vejo sempre altíssima, talvez fosse pela posição: sempre em pé. Eu era pequena e me sentava na primeira fila. Seu perfume me envolvia sempre e ainda poderia reconhecê-lo. Durante a guerra não havia perfumes, nem sabonetes e o nariz era mais sensível aos cheiros. Sempre guardo frasquinhos em casa porque penso que se a guerra voltar é uma das coisas que temos que ter. Aquele cheiro não era de destruição, se conservava desde antes da destruição, inclusive durante a guerra. Inspirei-me muito no modo de ser daquela mulher” (DIÓTIMA, 2004, p. 20).
Comentário Chiara Zamboni sobre a narrativa de Adelina Ecceli:
“O pensar a partir de uma experiência e segui-la em seu percurso não é um processo que reproduza a experiência como um espelho. Para que possa mostrar a verdade do real o pensamento deve ser produtivo. Nada há de naturalista nem de testemunho imitativo nos fatos relatados por Adelina Ecceli - bedel da Universidade de Verona, quando relaciona seu trabalho como uma recordação da professora e com o perfume que ela sempre levava na época da guerra. Um perfume que é signo de vida frente à destruição da guerra: um perfume que é signo de vida no trabalho de Adelina. O pensamento de Adelina avança e dá saltos seletivos, que mostra a presença do passado no presente, que inventa um símbolo na percepção concreta: o perfume do bem” (DIÓTIMA, 2004, p. 26).
Narrativa de Zazi Sadou** sobre as mulheres que dão sentido e coragem a sua luta contra a violência do Grupo Islâmicos Armados (GIA) da Argélia.
“Ser cabeleira em nosso país equivale a estar condenada a morte, porque a cabeleira trabalha para conservar a beleza das mulheres. É verdade, nunca havia visto as argelinas tão belas como as vejo agora. (...) São bonitas porque prestam atenção a sua pessoa, se fazem visíveis, andam orgulhosas pelas ruas e não coladas nas paredes. Este fazer-se visível é um ato de coragem e resistência, creio eu.
Existe uma cidade ao oeste de Argélia, Tiaret, em que foram assassinadas algumas cabeleiras. Mas nenhum salão de beleza fechou. Os salões de beleza são lugares em que as mulheres se reúnem, lugares em que minhas amigas e eu nos encontramos para assinar petições, discutir leis, organizarmos. O mesmo acontece nas festas, nos casamentos e nos funerais. Não posso deixar de falar sobre o que as mulheres converteram os funerais: em efeito nesse país do islam o cemitério se converteu em um lugar de resistência política.
(...) Para todas vocês, mandar seus filhos a escola é uma coisa normal; para nós, enviá-los ao colégio significa risco de não voltar a vê-los mais, por que a escola é um dos flancos mais atacados pelas ameaças e violências dos integristas: mais de 850 escolas foram queimadas.
(...) Em outubro, dia 23 de outubro, onze professoras foram assassinadas na região ocidental da Argélia. Elas foram metralhadas no pequeno ônibus que as transportavam. Cada uma delas havia sido ameaçada segundo disseram suas famílias. Mas nenhuma havia deixado a escola nem um só dia. Sabia-se do perigo, mas disseram a seus familiares, a seus maridos as casadas, a seus pais, a suas mães que seu dever era se fazer presente no encontro com seus alunos que iam a escola aprender. Diziam: ‘É necessário que estejamos ali pra dar-lhes o saber’.
(...) Voltando a Argélia, ali a imprensa falou que uma irmã de um chefe da GIA, (…) desenhou o mapa e traçou o caminho para que o grupo terrorista pudesse entrar no povoado de Benthala e realizar o massacre. (…) As terroristas são a outra cara de meu país, mas estas não são as mulheres que fazem a diferença, não são elas que representam a maioria, não são elas que determinam o curso da história, o futuro de Argélia.
(...) As mulheres que determinam o curso da história são as professoras assassinadas, são as professoras do povo, belas como o sol. É verdade. É surpreendente, com tudo que passaram, vão à escola maquiadas, bem vestidas, algumas com o véu, mas apreendemos que ele assim é algo suave, docemente querido.
Contarei uma história engraçada. Tinha que ir com uma amiga a uma de nossas reuniões e ela chegou maquiadíssima. Ao vê-la disse: ‘tire toda a maquiagem, não penso ir com você tão arrumada assim a um povoado que a menos de um mês e meio estavam sepultando seus mortos e seus filhos’. Ela retirou sua maquiagem sem protestar. Ao chegar fomos recebidas pelas professoras. Elas estavam magníficas, maquiadas, bem maquiadas, então minha amiga contou a cena que eu tinha armado.
As professoras nos explicaram que a maquiagem era normal entre elas, se tratava de algo muito consciente. Queriam que seus alunos, essas crianças que haviam perdido seus pais e mães, vissem nelas, cada manhã, imagens de vida” (DIÓTIMA, 2004, p. 36 - 39).
Nota de Delfina Lisiardi sobre a narrativa de Zazi Sadou:
“Zazi fala a linguagem da admiração e a mim a comunica. Na intensidade da amizade encontro a paixão política, movida pelo prazer do intercambio e do sentimento compartilhando da liberdade. Descubro, através das imagens que nós deixou o relato de Zazi, que este sentimento não conhece limites e sabe colocar em relação diversas línguas, criando uma rica trama de imprevistas matizes. Talvez o novo que nos comove e que pode suscitar estupor e admiração, ou ao contrário, dar medo, é o amor feminino pela beleza. A beleza encarnada, em corpos femininos que querem transmitir o prazer vital do cuidado e opor-se ao delírio de morte e destruição. Na Argélia, como no Afeganistão ou no Sudão, este amor custa à mulheres o preço da sobrevivência” (DIÓTIMA, 2004, p. 49).
*Adelina Ecceli foi eleita por uma integrante do movimento político que combate as tendências hierárquicas e burocráticas nas universidades italianas como exemplo de uma profissional que tem a capacidade de reinventar-se em seu trabalho, atribuindo um sentido próprio a sua ação institucional.
Zazi Sadou** é ativista do movimento feminista argelino em outubro de 1997 recebeu o premio Woman Law Develepment Internacional do Alto Comissionado da ONU para os Direitos Humanos.
Referência: DIÓTIMA (2004) El perfume de la maestra. 2ª edición- Barcelona: Icária.
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