Caros amigos e amigas,
Sinto a necessidade de compartilhar com vocês uma grave situação acontecida em meu estado (Goiás). Um juiz de uma comarca do interior autorizou a visita de um pai biológico acusado de abusar sexualmente da filha, quando esta tinha apenas dois anos de idade. A autorização da visita tem como base a lei da alienação parental.
Hoje, essa menina (supostamente abusada) tem nove anos de idade. Ela vive com a mãe, a irmã mais nova e o padrasto, que afetivamente o considera seu pai. Transcorridos seis anos de distanciamento do pai biológico (que desde 2008 se nega a pagar a pensão das filhas), a menina não aceita a idéia de passar um minuto sequer na companhia paterna e chora compulsivamente quando o assunto da visita é apresentado a ela. A mãe, sem saber o que fazer, procura a ajuda da antiga terapeuta da filha.
Como o caso chegou até mim:
No dia 19 de outubro de 2009, uma colega do Centro Psicossocial (Capsi) Água Viva, da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia, solicita a minha ajuda para tentar reverter uma decisão judicial, que, para ela, traria graves consequências para uma criança que ela atende. Com o objetivo de me inteirar melhor da situação, me encontrei com a mãe da criança no dia 21 de outubro de 2009. Nesse encontro, a mãe relatou algumas violências cometidas pelo pai biológico e informou sobre a situação atual do processo judicial que tem como mérito a garantia da visita paterna.
Decisão do Juiz
No dia 15 de outubro de 2009, às 22 horas, o advogado da mãe da menina supostamente violentada comunica, por telefone, que ela deveria comparecer a uma audiência no dia seguinte (16/10), em uma comarca do interior. Ele pede que sua cliente esteja pronta para viajar às 3 horas da madrugada. Nessa audiência, de acordo com o relato da mãe, o juiz determinou que o pai biológico, acusado de abusar sexualmente de sua filha, visitasse a garota, em Goiânia, no dia 24 de outubro. Segundo a mãe, o juiz deixou claro que, se não fosse cumprida a ordem judicial, ela perderia a guarda das filhas.
As denúncias de abuso sexual e outras violências
Em março de 2003, após ser atendida pela equipe do ambulatório de vítimas de violência sexual do Hospital Materno Infantil, da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, e pela Delegacia de Proteção de Crianças e Adolescentes (DPCA), vinculada à Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, uma menina de dois anos é encaminhada ao Capsi Água Viva para receber o suporte psicossocial, pois havia a suspeita de abuso sexual. Durante um longo período, essa menina recebeu atendimento psicológico nessa unidade de saúde. Nas sessões de terapia, a psicóloga (acima citada) tomou conhecimento das acusações de violências cometidas pelo pai biológico. Para preservar o sigilo profissional não apresentarei o conteúdo de violência relatado pela mãe da criança. Mas faço uma ressalva: são histórias com componentes de grande crueldade e perversão. No entanto, algumas violências se tornaram públicas nessa comarca do interior do estado.
Vejam alguns exemplos notórios:
- Espancar várias vezas a barriga da esposa grávida. O bebê, que seria a primeira filha do casal, não resiste e morre logo após o parto;
- Apontar uma arma de fogo para a cabeça da menina, quando ela tinha menos de um ano de idade, ameaçando-a de morte;
- Fugir com a filha e só a devolvê-la após uma tumultuada operação de busca e apreensão realizada pela polícia dessa comarca;
- Circular pelas estradas próximas de sua fazenda com a menina na camionete, dando tiros para cima e dizendo que ela era dele.
Providências
Ao tomar conhecimento dos fatos relatados pela mãe e pela psicóloga, busquei orientação com alguns especialistas da área da Segurança Pública e do Ministério Público. A primeira medida tomada, por orientação de uma conceituada jurista, foi destituir o advogado (da mãe) que estava acompanhando o processo e contratar outro mais confiável e competente.
No dia 23 de outubro, às 15 horas, depois de muita peleja, chegamos à conclusão de que não havia tempo hábil para nenhuma medida judicial que suspendesse a decisão. Cientes de que não era possível evitar a visita nem desobedecer a ordem do Juiz da comarca do interior, decidimos, eu e a colega psicóloga do Capsi, realizar uma sessão de preparação da família e das crianças para a visita paterna. Essa sessão consistiu em apresentar às crianças as regras da visita e orientar os familiares e as crianças sobre as obrigações legais mediante uma decisão judicial.
Informamos as meninas sobre o período de duração da visita (das 9h às 17h) e que elas estariam acompanhadas, o tempo todo, por alguém de confiança. No período da manhã elas seriam acompanhadas pela tia materna e no período vespertino pela avó materna.
Questionamentos infantis
A menina mais velha, que sofreu o possível abuso sexual, demonstrou em suas perguntas um maior grau de ansiedade. Em um dado momento da sessão terapêutica, ela perguntou à mãe se teria que comer alguma coisa na casa em que ficaria, pois temia que o pai biológico colocasse alguma coisa na sua comida. Para demovê-la desse receio e convencê-la de ir à visita, a mãe sugeriu que se levasse um lanche para ela se alimentar nesse dia.
A cada nova questão apresentada pelas crianças, a mãe, o padrasto e a avó materna buscavam construir uma alternativa que tranquilizasse as meninas, visando convencê-las da necessidade daquela visita. A criança mais nova (de 8 anos), querendo ajudar na resolução do impasse criado pela irmã mais velha, que relutava em não aceitar a visita, disse: “
eu vou. É só um uma dia mesmo. Quando uma coisa é ruim, é melhor fazer logo para acabar logo”.
Temores e verdades
Movida pelo temor da possível perda da guarda das filhas e apoiada em suas convicções religiosas, a mãe apela para idéia do perdão, ao tentar convencer a filha de aceitar o reencontro com o pai. A mãe diz:
“Filha, o perdão é coisa de Deus. Você tem que perdoar. Talvez o seu pai tenha mudado” Mas a menina mais velha é incisiva:
“Eu não vou perdoar nunca meu pai”.
Após um longo diálogo, em que as crianças expressavam as suas dúvidas e inquietações e nós, adultos (familiares e profissionais), buscávamos construir recursos objetivos e subjetivos para tranqüilizá-las, iniciamos o desfecho da sessão de preparação para a visita. É nesse exato momento em que a filha mais velha cai em prantos e diz:
“Eu não vou, ninguém pode me obrigar a fazer o que não quero”. Ao explicarmos que uma ordem judicial não pode ser questionada, ela retrucou imediatamente:
“Por que não? Esse juiz não pode mandar na minha vontade. E os meus direitos? Por que esse juiz não me perguntou se eu queria ou não essa visita?”
Por uns segundos, ficamos todos paralisados ante a força e convicção dessa pequena menina. Eu e minha colega psicóloga tivemos que engolir a seco essas palavras, tão verdadeiras. Nessa hora, eu desejei profundamente que o juiz que autorizou a visita do pai estivesse naquela sala e ouvisse como as palavras dessa criança ecoaram por todas as paredes do recinto. Parafraseado o poema
Divisa de Jacob Levi Moreno, desejei que esse juiz estivesse perto, pois assim “
arrancar-te-ia os olhos e colocá-los-ia no lugar dos meus; e arrancaria meus olhos para colocá-los no lugar dos seus; então ver-te-ias com os meus olhos” a imensa dor e desespero que a sua decisão acarretou no coração e na mente dessa menina de 9 anos.
Visita e desespero
Na tentativa de minimizar a sua ansiedade em relação ao encontro com o pai me comprometi de estar presente no momento da visita paterna. Chegamos todos mais cedo no local acertado pelo acordo judicial. Antes da chegada do pai, as meninas estavam brincalhonas e amistosas. Mas quando são comunicadas que chegara a hora do pai levá-las, a filha mais velha entra em pânico, chora e se nega a sair do lugar em que se encontrava e ir até a porta da rua para receber o pai. A mãe, em um ato desesperado, ordena que a filha vá, pelo menos até a calçada para que o pai a veja. Quando a menina chegou à porta e viu o pai, ela começou a gritar que não queria ir; que não iria perdoar o pai, que ele a roubou.
Numa luta titânica, com uma força inimaginável para uma menina tão pequena, ela fincou os pés no chão e não saiu do lugar onde estava. Ao ouvir os gritos e protestos da filha, o pai biológico disse que a filha
"estava mentindo; que nunca fez nada contra ela; que foram outras pessoas que puseram coisas na sua cabeça (...); que ela é uma mentirosa".
Em sua luta desatinada pelo que acreditava ser justo, ou seja, o respeito de sua própria vontade, ela assegurou nos seus gritos, choros e, principalmente, na imobilidade de seu corpo, que não fosse levada à visita.
Onde estão os seus direitos?
Eu já presenciei, nos 12 anos em que atendo pessoas em situação de violência, crianças, adolescentes e mulheres não se renderem, compassivamente, às arbitrariedades a elas expostas. Já vi muita gente determinada e forte. Mas, o mais comum é acontecer o contrário, pois as pessoas que passam por situações de violência ficam tão frágeis e vulneráveis que nem sempre conseguem força para fazer valer as suas vontades. Enfraquecidas e sem um suporte profissional, tendem a se resignar ante a violência, aceitando assim o lugar de vítimas das circunstâncias ou do destino.
Essa menina me fez sentir, ao mesmo tempo dois sentimentos antagônicos: admiração por sua extraordinária força psíquica e vergonha das ordens e regras do nosso mundo adulto. Não foram os instrumentos legais dos profissionais do Direito, nem os laudos técnicos dos psicólogos, nem tão pouco os argumentos das pessoas que lutam em defesa dos direitos da criança e do adolescente que fizeram valer a vontade e autonomia dessa criança. Foi ela, somente ela, ninguém mais, que fez imperar os seus direitos. Apesar do sofrimento, da dor e do desespero presente no momento da visita, pude vivenciar uma cena de beleza estética e ética inigualável. Em seu drama pessoal, uma menina de nove anos reivindica o leme de sua vida e, como protagonista principal de sua própria história, se afirma como um sujeito íntegro e dono de sua vontade.
Reflexões e alertas
Após presenciar a dinâmica da família atual da menina atendida pela psicóloga do Capsi e os sentimentos expressos por ela e a irmã na seção de preparação para visita e no momento do encontro com seu pai biológico, sugiram algumas dúvidas:
- Quando existe uma incompatibilidade de direitos, como no caso do pai biológico que quer estar com sua filha e o da filha de não concordar com a proximidade física desse pai, qual direito deveria prevalecer?
- Na balança do juiz não deveria sempre pesar mais os direitos das crianças e dos adolescentes, pois como afirma o artigo 4º do Estatuto da Criança e Adolescente eles são uma prioridade absoluta?
- Será que nos casos de dúvidas entre a palavra do pai e a da mãe, não seria prudente ouvir a opinião da criança?
- Nos casos que a criança ainda é incapaz de expressar sua vontade não seria pertinente ouvir a equipe multiprofissional que a atende?
- Qual visão de vínculo parental sustenta uma decisão judicial que não considera todas as partes envolvidas, particularmente as crianças? Seria a visão idealizada, portanto irreal e falsa, do incondicional amor paterno e materno?
- Sem considerar o contexto e as dinâmicas familiares, as decisões baseadas na alienação parental não estariam de fato investido em vínculos artificiais?
Para algumas crianças a simples presença do pai agressor ativa muitas sensações e lembranças negativas, que é quase insuportável para elas qualquer aproximação. Algumas passam mal, tem ânsias de vômito, então, qual o real benefício desta aproximação?
Em 2001, em conjunto com outros profissionais do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil – UCG, atendi 5 irmãos (3 meninas e 2 meninos) que sofreram violências sexuais do pai biológico. Ainda me lembro dos danos e sofrimentos causados aos cinco irmãos, quando esses eram obrigados a visitar o pai na prisão. Essa visita acontecia por insistência de uma assistente social do sistema prisional de Goiás, que de forma intransigente, defendia o direito do pai de conviver com seus filhos. No entanto, essa mesma assistente social não viu, nem tão pouco imaginou, as conseqüências deixadas, no corpo e na mente desses irmãos, das repetidas chantagens e coações que esse pai fazia aos filhos no momento da visita dominical.
Não tenho dúvidas de que o juiz que autorizou a visita do pai, suposto autor de violências sexuais contra a filha, é um grande jurista e um profundo conhecedor da Lei de Alienação Parental. Acredito ainda, que a assistente social, que insistia na visita dominical dos 5 filhos do sentenciado por violência sexual, é uma competente profissional e uma grande defensora dos direitos dos apenados. No entanto, esses dois profissionais ensinaram as crianças, que foram afetadas por suas decisões, o profundo e complexo significado da canção
Agora eu sei, que diz: “
Tem gente boa que me fez sofrer. Tem gente boa que me faz chorar, me faz chorar "(Freddy Haiat / Guilherme Isnard).