Sobre as expressões que atravessam as gerações, passando de pai para filho e o pensamento ignorante que elas geram
Espectro político trata fundamentalmente de economia. Você acha que a propriedade privada é a raíz de todo o mal? Vá para a esquerda. Você acha que a propriedade privada pode resolver problemas? Vá para a direita.
Agora, deixe isso de lado. Não me importa, porque o ponto que quero discutir neste texto é comum a todos.
Algumas expressões vem se propagando por gerações. Como uma espécie de roteador que só replica o sinal, a nova geração repete os discursos da geração anterior. Me assusta ver que jovens, como eu, que tiveram acesso a boas escolas, conteúdos e discussões, estejam dando continuidade às falácias mal estruturadas dos mais velhos.
“Esse povinho defensor de bandido… quero ver quando for assaltado.”
Olha só: ninguém é a favor de bandido. Ninguém mesmo. Muito menos os direitos humanos. Ninguém quer que assalto, assassinato, furto e outros crimes sejam perdoados ou descriminalizados.
Por que alguém, em sã consciência, seria a favor de assaltos, homícidios, latrocínios e furtos? Você não deveria sair gritando palavras de ódio sem entender o argumento do qual discorda — a não ser que você se aceite como ignorante, isto é, que ignora parte dos fatos para manter-se na inércia do conforto.
Depois que este texto terminar, você pode continuar discordando, mas espero que desta vez com outros argumentos, argumentos fundamentados.
Antes de mais nada, o que você prefere?
Gostaria de propor dois cenários e que você escolhesse o que mais te agrada.
I) Uma sociedade onde há muitos criminosos, logo há muitos assaltos, latrocínios e homícidios. Entretanto, nesta sociedade, 99% dos crimes são resolvidos e os indivíduos são presos. Após voltarem as ruas, tornam-se reincidentes, ou seja, cometem novamente um crime. Mas nesta sociedade, este criminoso é pego novamente em 99% das vezes. Há pena de morte.
II) Uma sociedade onde quase não há criminosos. Os poucos criminosos que existem, quando pegos, são presos. Além de punidos com tempo de reclusão, os criminosos também são reabilitados (as maneiras são indiferentes, se com cursos profissionalizantes, tratamento psicológico, ambos ou outros) para que possam tentar uma nova vida. Não há pena de morte.
Nenhum destes casos é o do Brasil. No nosso país e em muitos outros, temos altos índices de criminalidade, poucos programas de reabilitação e o senso comum vingativo de que o Lex Talionis desenvolvido há cerca de 4.000 anos ainda serve como solução. Todavia, há países parecidos com os dois casos propostos, o que torna tangível a estrutura. Mas e para o Brasil? Qual dessas você preferiria para o nosso país?
Posso te ajudar neste raciocínio com alguns pontos:
OBS: Em nenhum momento quero impor uma falácia de falsa dicotomia. Existem infinitas possibilidades de combinações aqui. Entretanto, este é apenas um exercício que facilita o entendimento do argumento.
A pessoa nasce bandida ou torna-se bandida?
Pergunta importante: você acha que as pessoas já nascem bandidas? O bebê — sim, aquele de colo — já é um bandido?
Prefiro pensar que ninguém acredita que as pessoas já nascem criminosas. É um pouco lunática a visão de um mundo Minority Report, onde o bebê será preso ali mesmo, nos primeiros momentos de vida. Mesmo para quem acredita neste mundo, o próprio filme trata do problema que isso poderia causar.
Partindo da pressuposição de que ninguém nasce bandido, vou utilizar um personagem fictício como exemplo: João, o bebê. Imagine o bebê da maneira como quiser, isso pouco importa, a única certeza que temos sobre João, o bebê, é que ele não nasceu bandido. É uma criança como qualquer outra, ainda dependente dos pais, que pouco faz da vida além de dormir e chorar. Mas neste mundo fictício, o tempo passou, e João cresceu. Aos 16 anos cometeu um latrocínio. Se João não nasceu bandido, então tornou-se bandido. A palavra "tornou-se" implica transformação e esse é o X da questão.
Os seres humanos se constroem com as experiências e aprendizados, portanto o meio em que se vive tem grande influência sobre ele. Sabendo disso, temos a visão clara de que algo acontece na sociedade que transforma as pessoas em marginais. E se você acha que não, talvez seja curioso saber que a taxa de homícidios no Brasil em 2008 era de 26,4 a cada 100.000 habitantes, enquanto que na Islândia o índice não passou de 1,8 a cada 100.000 no mesmo ano. Se o motivo desta diferença não for social, então só resta que seja biológico. Por ora, me nego a acreditar num "gene da marginalidade"¹.
O fato é: há algo na sociedade (que não será discutido neste texto) que leva as pessoas a cometerem crimes.
Quando você diz que reduzir a maioridade penal é uma boa ideia, você não está focando na raíz do problema, está apenas sugerindo uma maneira de remediar. E como veremos a frente, dado o nosso sistema, isto só aumenta a chance de criar um deliquente reincidente. Então note, pouco importa se a maioridade penal é de 16, 18 ou 21 anos se o país continua a formar criminosos. Devemos pensar em maneiras de diminuir a criminalidade, no processo que transforma as pessoas em transgressoras da lei, ou logo teremos mais presídios do que universidades e mais marginais do que cidadãos comuns.
¹ Há um estudo que relaciona os genes MAOA, DAT1, DRD2, com a predisposição à agressividade. Entretanto, Guang Guo, que é o responsável pelo estudo, afirma que a interação social é fator decisivo para o comportamento destes genes. Isto é, na maior parte dos casos, a presença dos genes não afeta jovens que possuem influências sociais positivas.
Construir mais penitenciárias e prender mais gente diminui a criminalidade?
O olhar crítico que às vezes não permeia a cabeça das pessoas é que prender as pessoas não faz com que menos pessoas se transformem em criminosas. Penitenciando apenas, você não resolve o problema, apenas posterga enquanto gasta o dinheiro público.
Assim como todo fumante sabe dos males do cigarro, todos que entram para o mundo do crime sabem o risco envolvido. Todo dia no noticiário vemos corpos estirados ao chão, seja do cidadão, do criminoso ou do policial. Não adianta termos penas mais severas: o brasileiro que se torna assaltante já não tem nada a perder, sabe que tem grandes chances de morrer de forma cruel.
Os criminosos brasileiros, depois de presos, ficam ainda mais propensos a perpetuar sua vida marginal. São três os principais motivos: (I) poucas empresas se propõem a contratar ex-presidiários, (II) o trauma vivido dentro da cadeia — como ela é aqui no Brasil — agrava as problemáticas psicológicas do indivíduo e, por fim, (III) não há um programa grande e estruturado de reabilitação de criminosos para que deixem a vida do crime.
Ninguém quer que criminosos não sejam punidos¹. Eles devem pagar suas penas conforme previsto em lei. O único problema é que a pessoa só vai presa depois de cometer o crime, isto é, depois que alguém já foi lesado. Não seria muito melhor se ao invés de precisar prender as pessoas depois do crime consumado, houvesse menos bandidos? Não seria melhor se os criminosos, após cumprirem suas penas, se reintegrassem a sociedade como parte da massa trabalhadora?
Ah, não dá? Dá sim. Na Suécia dá, por que aqui não daria? Vamos supor que você responda, de maneira óbvia, que é por causa da "cultura brasileira". Neste caso, eu devo concordar, porque, realmente, a cultura é diferente: aqui muita gente acredita que pena de morte resolve o problema enquanto lá eles fazem uso da reabilitação.
Deve ser por isso que aqui se constroem presídios e lá se fecham presídios.
Nils Öberg, responsável pelo sistema prisional da Suécia, disse sobre o fechamento presídios no país por falta de condenados:
“Nós certamente esperamos que nossos esforços em reabilitação e prevenção de reincidência tenham tido um impacto, mas nós achamos que isso sozinho não pode explicar a queda de 6%” — reafirmando que a Suécia precisa se esforçar ainda mais em reabilitar os prisioneiros para que eles possam retornar a sociedade.
¹ Existe uma corrente que acredita no chamado Abolicionismo Penal que não vê o sistema punitivista com estes olhos. Eu não conhecia esta ideia no momento em que escrevi o texto, mas um leitor me alertou pelo Twitter e por isso faço questão de incluir aqui.
Direitos Humanos para você também
O artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que:
“Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
O trecho "Toda pessoa (…)" do artigo 3 inclui você.
Ninguém quer que você seja vítima de um crime. Todas as leis do código penal são pensadas para tentar lhe garantir este e outros direitos comuns a todos os seres humanos. Ninguém quer que os bandidos sejam especiais: o que o "povinho dos Direitos Humanos" quer é que a sociedade não crie mais marginais e que a quantidade dos existentes diminua. E é aí que está: infringindo os direitos humanos, você não alcança este objetivo.
O trecho “Toda pessoa (…)” do artigo 3 também inclui o marginal.
É confuso que o cidadão que clama tanto por justiça, que a lei seja cumprida, fique ávido para descumpri-la: tortura, homicídio e ameaça são crimes, mesmo que sejam contra um condenado. Então, não, bandido não tem que morrer, porque isso te tornaria tão marginal quanto.
Se você quer uma sociedade com menos criminosos, conforme discutido no começo deste texto, entenda o papel dos Direitos Humanos. O artigo 5 diz:
“Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”
Ninguém lhe nega o direito a sentir dor, raiva e/ou tristeza após ter sido vítima de um crime. A culpa não é sua e isto nunca foi dito. Só quem é vítima sabe da própria dor. Mas o fato é que o olho por olho não te trará paz, não trará um ente querido de volta, não removerá seus traumas. O dente por dente só te levará para mais perto de uma sociedade violenta, onde o crime se perpetua e você pode ser vítima mais uma vez. Ninguém quer que você seja vítima outra vez.
A punição deve ser aplicada, sim. E com certeza será ainda melhor quando este indivíduo estiver apto a se tornar um cidadão comum, após cumprir sua pena, e nunca mais venha a causar problemas para a sociedade e para você. E é sobre isso que os Direitos Humanos falam.
Portanto entenda
Se você leu o texto um pouco mais exaltado, talvez tenha perdido algum trecho importante, portanto aqui vão alguns dos principais pontos:
Você tem o direito de ficar desolado e/ou enfurecido por ter sido vítima. Ninguém é a favor do crime.
Você é que não tinha entendido antes.
Pós-escrito sobre os espantalhos
Esta seção foi incluída no dia 01/03/2014, após mais de 300.000 visualizações do texto.
Acho muito positivo que as pessoas discordem. É somente com o confronto de ideias que podemos observar o que faz e o que não faz sentido. Entretanto, algumas pessoas tentaram refutar o texto com a chamada “Falácia do Espantalho”.
A expressão “Falácia do Espantalho” descreve um tipo de argumento falacioso, inválido. Esta falácia se dá quando um dos interlocutores distorce o argumento do outro, transformando-o em algo simplista ou exagerado, de forma que torne-se algo fácil de se refutar. O problema com este tipo de argumento é que ele não lida com a alegação real, ao contrário, ele inventa uma nova, na tentativa de ridicularizar a alegação inicial.
Se isto não ficou claro, não se preocupe, pois a seguir listarei alguns exemplos. Parafrasearei algumas das coisas que li e ouvi, e então esclarecerei.
Esta falácia se dá por causa do trecho “O fato é: há algo na sociedade (…) que leva as pessoas a cometerem crimes”.
Apenas como exercício, imagine um campo onde há dezenas de espécies de árvores frutíferas. Neste campo, crianças brincam e comem frutas diretamente das árvores. Os pais observam os filhos. Após algum tempo, crianças começam a apresentar vermelhidão na pele, dificuldade para respirar, vômito e diarreia. Muitas delas morrem.
A culpa é do campo? Não. A culpa é das mamonas, que contém ricina.
Utilizando o cenário-exemplo proposto, é bem razoável que os pais se atentem ao fato de que há algo no campo que leva as crianças ao óbito. Dado isto, é melhor que investiguem as causas das mortes ao invés de somente comprarem remédios ao acaso. Os remédios não evitam que mais crianças se intoxiquem. Ainda no exercício, a melhor saída seria identificar que o problema são as mamonas e, a partir daí, cortar as árvores que as produzem.
Culpa é a responsabilidade de um ou mais indivíduos por um ato que prejudica alguém. Se um indivíduo decide roubar ou matar outra pessoa, a culpa pela morte é dele e somente dele. Repare que "(…) leva as pessoas a cometerem crimes." deixa claro que quem comete os crimes são as pessoas. Sociedades não cometem crimes, seus indivíduos sim. Entretanto, nada disso impede que os indivíduos atuem em busca de uma mudança na estrutura da comunidade, de forma a mitigar a criminalidade.
O texto propõe que o Brasil deve virar a Suécia da noite pro dia.
O texto não diz isso. Nem diz que o Brasil parece a Suécia, ao contrário, diz que a mentalidade sobre este assunto é totalmente diferente.
Quando pensamos em mudar as políticas existentes, sempre há possibilidade de aproveitar o aprendizado de outros países. A Suécia, como muitos outros países nórdicos, apresenta excelentes características e índices relacionados à qualidade de vida.
A maioria das mudanças políticas não apresenta resultados imediatos. Leva tempo para que a sociedade se reestruture e modifique seus processos. Mas a mudança parte da mentalidade e tem que começar em algum momento.
O texto não diz isso. Não torturar e privilegiar são coisas distintas.
Muitas vezes, uma prisão em flagrante requer uso de força, principalmente quando o criminoso reage à voz de prisão. Não há nada de errado nisso, pois é impossível conter um indivíduo relutante com delicadeza. Entretanto, há uma diferença gritante entre uso de força necessária e tortura.
Segundo o artigo 301 do código Código Processual Penal, qualquer cidadão pode prender uma pessoa em caso flagrante delito e, neste caso, deve conduzi-la às autoridades responsáveis. Alternativamente, o cidadão que flagrar o crime pode conter o criminoso e chamar as autoridades responsáveis.
Como exemplo, em um acontecimento recente, um jovem foi espancado e acorrentado pelo pescoço em um poste, nu. O que deve ser avaliado neste caso é se o adolescente foi pego em flagrante, se a polícia foi avisada e se houve tortura. Se alguma das condições previstas em lei não foi atendida, esta foi uma prisão ilegal. E se houve tortura, os responsáveis pela prisão cometeram um crime.
O texto diz que não há impunidade no Brasil e que o cidadão não deve se indignar.
O texto não diz isso. O brasileiro deve se indignar, pois os nossos números passam longe de representar o cenário ideal.
O Estado brasileiro se demonstra incapaz de resolver o problema, tanto por uma via, como pela outra. É urgente a necessidade de uma mudança sistemática. Assim, há de se discutir os caminhos possíveis para tal. O texto se compromete a apresentar apenas um dos pontos importantes que devem ser discutidos nesta pauta, mas não insinua nenhuma fração da falácia acima.
O texto diz que as pessoas pobres não tem escolha, a não ser a criminalidade.
O texto não diz isso. O texto nem mesmo faz distinção de classes sociais.
Normalmente, esta falácia vem acompanhada de um exemplo onde dois irmãos gêmeos estudam na mesma escola, tem os mesmos amigos e mesmo assim optam por caminhos distintos, onde um se torna criminoso e o outro não. Neste caso, é importante notar que não há o caso onde duas pessoas vivem exatamente as mesmas experiências e tem exatamente as mesmas percepções. Mesmo que possuam uma grande semelhança biológica, dois irmãos nunca são tratados pelos demais como uma só pessoa. Além disso, a semelhança biológica não garante a semelhança entre personalidades.
Ser um cidadão que não vive de crime é sim uma escolha. As pessoas quase sempre tem escolhas, mas vale lembrar que às vezes as possibilidade parecem distantes. Por exemplo: qualquer um pode ser tão rico e famoso quanto o Bill Gates, basta fundar uma empresa como a dele. A questão central é quão fácil ou difícil é tomar certas escolhas para si.
A proposta do texto é incentivar uma discussão em torno de como fazer as pessoas não optarem pelo crime, e não impor a ideia conformista de que as coisas são do jeito que são e nada pode ser feito.
Fonte: Blog Ramon Kayo, em 19 de setembro de 2014.
Foto capturada no Blog Periferia Soberana, em 19 de setembro de 2014.
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