9 de nov. de 2013

Um precioso presente feito de palavras e comoção

Estimado(a) leitor(a),

Compartilho com você uma grande alegria, recebi no dia de ontem o texto completo do comentário que o prof. Dr. Marcos Loureiro fez sobre a tese ALFORRIA PELO SENSÍVEL - CORPOREIDADE DA CRIANÇA E FORMAÇÃO DOCENTE” de minha autoria.

 

Marcos Loureiro

COMENTÁRIO DO PROFESSOR MARCOS LOUREIRO

Com certeza, vou repetir aqui muito do que disse na qualificação, até porque, naquela oportunidade, o público se reduzia aos colegas do grupo de pesquisa da Cida. Penso que essa repetição se faz necessária porque o que foi dito deva ser ouvido por uma plateia mais ampliada do que aquela que aqui se encontrava naquela ocasião.

Em primeiro lugar, quero ressaltar o mérito deste trabalho, com certeza ligado a sua sensibilidade, cujo tema é a violência contra a criança, todo e qualquer tipo de violência, seja ela física ou psicológica. Através dele, você entra fundo na discussão sobre a violência dentro da família, que é onde mais se perpetra a violência contra a criança, grande parte das vezes, sob o pretexto de que se trata de um método educativo eficaz. Você se posiciona em seu trabalho radicalmente contra todo e qualquer tipo de violência, mesmo, e principalmente, aquele que você denominou já em sua dissertação de mestrado e continua denominando aqui método educativo punitivo-disciplinar. Isto porque esse método é, muitas vezes, a porta de entrada para a aceitação de outros tipos de violência, mais pronunciadas do que a palmada que educa, frequentemente justificados porque a criança teima em não se submeter aos ditames dos adultos.

O tema é, portanto, muito significativo não só para a educação familiar como para a educação como um todo, em especial para a formação de professores. Como você deixa transparecer em alguns depoimentos, a violência contra a criança é assunto sobre o qual essa formação tem se calado. Como mais um depoimento a corroborar os seus argumentos, fico impressionado como este tema esteve ausente durante tanto tempo dos programas de Psicologia da Educação, como se não se tratasse de uma realidade insistentemente presente na vida das crianças. Isso mostra que ainda não estamos convencidos de que a violência contra a criança deixa marcas, se não indeléveis, muito difíceis de apagar e que, por isso, é inaceitável sob qualquer pretexto.

Tentar convencer o leitor sobre essa realidade você persegue do início ao fim do seu trabalho. E o faz através de um texto extremamente atraente, com qualidade literária, mesclando com maestria duas formas de conhecimento: a arte, por meio da literatura, e a ciência. Coisa que pode causar espécie a mentalidades exacerbadamente positivistas, que não aceitam a inclusão da emoção em áreas cujo espaço deveria ser domínio da razão. Em seu texto você demonstra que razão e emoção devem caminhar juntas. A propósito, mesmo que você não o tenha citado, ao preparar essa arguição, lembrei-me de uma passagem de Gramsci, autor de base materialista dialética, corrente teórica cujos pressupostos você afirma adotar em seu trabalho. Mesmo que ele não esteja entre suas referências, ele apoiaria essa sua atitude intelectual. Não me lembro exatamente de suas palavras, mas ele disse algo mais ou menos assim: É impossível compreender sem estar apaixonado não só pelo saber como também pelo objeto desse saber; é impossível fazer ciência sem essa paixão. Ele se refere, é claro, à ciência na concepção materialista, como aquela à qual importa não só interpretar o mundo, mas transformá-lo, ou seja fazer história; então, o que ele diz, literalmente, é impossível fazer política-história sem essa paixão. Paixão pelo objeto do seu saber que você demonstra do início ao fim do trabalho. Mas essa paixão, oriunda da sua sensibilidade para perceber os problemas está aliada à argúcia para defini-los e pesquisá-los, outra qualidade que você demonstra com muita força neste trabalho.

Pessoalmente, sinto minha percepção da criança mudada a partir da leitura de seu trabalho. Sinto-me mais sensível à criança como um OUTRO EM PROCESSO, e não apenas como um vir-a-ser. Nesse sentido, passei a ter uma percepção mais aguda de sua desvalia diante do adulto forte e opressor. A revisão que você faz do grito do Marcos, de la Rioja, ao Jesus maltratado e açoitado na procissão da semana santa: defende-se!, que no caso de uma criança diante dos maus tratos de um adulto deveria ser defende-me! é emblemática dessa mudança. É claro que minha leitura pode ser interpretada como reação de alguém que já demonstra alguma sensibilidade à violência contra a criança, mas nunca a reação de alguém é única; com certeza muitas outras pessoas poderão sensibilizar-se em defesa das crianças. Como a quantidade é elemento fundamental para a transformação da qualidade, com certeza, este trabalho pode ter papel importante nessa transformação.

Essa paixão pelo objeto resultou em outra característica extremamente positiva do trabalho: ter dado continuidade ao tema trabalhado no mestrado, assimilando à tese partes importantes da dissertação, que receberam interpretação em novo contexto. No trabalho científico, é importante essa continuidade no aprofundamento de uma temática, o que só propicia maior compreensão do objeto.

Outra qualidade, à qual já havia me referido na qualificação, e que é extremamente positiva do seu trabalho é a autoria. Você não deixa dúvida em qualquer momento de que as posições aqui expostas são suas. O eixo condutor do trabalho é seu. Apesar das interlocuções com inúmeros autores, estes são trazidos ao texto para confirmar os seus raciocínios ou para contestá-los.

Você faz um trabalho de revisão bibliográfica e fundamentação teórica primoroso, que não deixa passar por menos nenhum conceito. Vai a fundo na busca das concepções teóricas que podem ajudá-la a melhor entender e explicar o seu tema.

É gratificante, tendo participado do seu exame de qualificação, perceber a medida em que você soube apropriar-se das nossas contribuições; enfim, como você acata com maestria e discernimento as sugestões e o conteúdo das discussões realizadas durante a qualificação.

Creio que seu objetivo geral com a pesquisa, de construir fundamentos pedagógicos para uma formação docente que contribua para a desnaturalização da violência física intrafamiliar como método educativo punitivo disciplinar foi atingido. Nos objetivos específicos, essa tese buscou identificar e analisar experiências formativas que realizaram em sua proposta pedagógica uma integração entre conhecimentos objetivos e subjetivos na formação docente. Buscou-se ainda investigar os conhecimentos construídos pelos profissionais que atuam como formadores de referência nos temas que envolvem situações de violências contra crianças

O que digo a partir daqui, e que se trata de minha arguição propriamente dita, tome apenas como sugestões para trabalhos futuros. O primeiro aspecto que para mim se destaca no seu trabalho e, talvez, derive da própria paixão com que você o trata, é que, no capítulo em que você apresenta os dados das entrevistas e das observações, embora não tenhamos a transcrição completa das entrevistas, creio que você tenha explorado pouco os seus dados. Enfim, senti dificuldade de que você deixasse os dados falar mais, conduzidos, é claro, pelas suas interpretações teóricas e não mais pelo aporte da interpretação de outros autores ao interior do capítulo, o que algumas vezes aconteceu. Acredito que essas entrevistas poderão servir para trabalhos futuros seus, onde poderiam ser melhor exploradas.

Um grande mérito do seu trabalho foi sua capacidade de inserir a violência no interior da dialética social mais ampla da qual a primeira é uma expressão. Você não usa, como é comum a pessoas que tratam do tema, o contexto social apenas como pano de fundo, mas você insere a questão da violência como parte constitutiva desse contexto social.

Só tenho, portanto, que parabenizá-la pelo seu trabalho e já que em defesa de dissertações questionar é preciso, concluo minha participação nessa banca com uma questão que me intriga e à qual já havia chamado sua atenção no exame de qualificação. Você sinta-se à vontade para comentá-la. Você escreveu: “Os pressupostos teóricos e o caminho metodológico adotado na pesquisa foram norteados por uma concepção de mundo e de homem que nega a naturalização dos fenômenos sociais e compreende que a realidade imediata esconde desigualdades historicamente construídas que são justificadas ou ocultadas por ideologias”. E, logo a seguir, “Realizou-se a discussão sobre o conceito de violência no sentido de contribuir para a desconstrução do mito de que o homem é naturalmente violento”.

A observação que faço a respeito é que essa negação tem que ser uma negação dialética, qual seja, que implica a transformação da natureza. Trata-se aqui de reconhecer a dialética natureza-cultura: o que impera no mundo natural é a lei da selva, segundo o qual os mais fortes sobrevivem, mesmo que sob o uso da violência. A transformação em cooperação da agressividade natural, que, como tem acontecido, pode desaguar em violência, é fundamental para a existência do homem enquanto espécie e essa transformação é fruto das condições materiais de existência. Portanto é a transformação dessas condições que deve ser o alvo final de nossa teoria e nossa prática. O “homem naturalmente violento não é apenas mito”, mas fruto de condições materiais de existência que não só permitem, mas, muitas vezes, o incitam à violência.

Era isso o que eu tinha a comentar. Mais uma vez, meus parabéns pelo trabalho. E não se iluda. Este é apenas um ponto de passagem, não um ponto de chegada. Novos desafios virão e espero que se dedique a eles com a mesma garra que, até agora, tem-se dedicado.

Goiânia, 30 de agosto de 2013

Prof. Dr. Marcos Corrêa da Silva Loureiro

 


Foto: Osair Manassan, 30 de agosto de 2013.

Prof. Dr. Marcos Corrêa da Silva Loureiro - possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1971), mestrado em Educação, área de concentração em Psicologia da Educação, pelo Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas - IESAE-FGV, Rio de Janeiro (1982), e doutorado em Psicologia, área de concentração em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pela Universidade de São Paulo (1997). Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Goiás, de cujo Programa de Pós-graduação em Educação foi coordenador de 1998 a 2002 e de cuja Faculdade de Educação, de 2002 a 2006, foi diretor. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Psicologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: formação de professores e representações sociais. (Fonte: currículo lattes – atualizado em 18/09/2008.

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