9 de nov. de 2010

A INFÂNCIA TRISTE




Tania Virginia e outras histórias

conto da jornalista Eleonora Ramos








Eu me lembro de Tânia Virgínia com uns seis, sete anos. Tinha por volta de dez e, fora meus irmãos e primos, não conhecia na intimidade nenhuma outra criança. Os colegas de escola, naquele tempo, eram colegas de escola. Com raras exceções, não eram vistas com bons olhos maiores proximidades. Pouco se sabia de suas famílias e todas, quase todas, tinham “podres” a esconder, tipo desfalques, crimes de mando e, principalmente, amantes. Muitos homens ostentavam segundas famílias ou teúdas e manteúdas, personagens comuns e marginalizadas da sociedade sergipana de então.


A elite tinha dinheiro, muito dinheiro. O resto eram comerciantes e profissionais liberais, basicamente médicos, dentistas e advogados. Pobres feito Jó. Quando conseguiam juntar alguma coisa, estavam velhos e honrados, naturalmente.

Comerciantes como seu Moreira, homem sério, que conseguia ser kardecista, comunista, maçon, sócio do Lyons e diretor da Associação Atlética. Tudo ao mesmo tempo. Sertanejo de origem, depois vendedor ambulante e lojista, seu Moreira falava pouco, inteligente o bastante para não expor seus parcos conhecimentos, sua cultura de almanaque. Fazia o estilo honesto, caladão, rígido, infalível. O Pai.

Não fosse D. Núbia, aquela casa era uma tristeza. Ela andava e falava o tempo todo, professora, poeta,modista. O casamento sem amor aos 15 anos tornou-a envelhecida já aos 30, nervosa, cercada por quatro filhos adolescentes. Como seu Moreira, parecia infalível, senhora onipotente de tudo que existia atrás dos altos muros de sua casa. Nada se passava que não soubesse, apesar das inúmeras atividades. Fundara e dirigia um colégio, estava sempre envolvida com cursos de dança, shows beneficentes, festas de Natal, procissões, desfiles. Escrevia discursos, apesar da ortografia capenga, lia Allan Kardec e era mestra em vestidos de noiva .

Tânia Virgínia nasceu nessa família, mas nunca foi exatamente dessa família. Cresceu no quartinho dos fundos da casa, com a mãe, D.Novelina, que chamávamos Velina e que não se cansava de maldizer a sorte, a vida que levava criando de favor uma menina endiabrada dentro da casa dos patrões. Velina, cabocla forte, de pés enormes, trabalhou em regime escravo por mais de trinta anos na família Moreira. Como os escravos, nunca teve férias, nem feriados, nem horário de trabalho. Diferente deles recebia um mísero salário no fim do mês. Melhor para os patrões: garantiam um quartinho no fundo e a comida. O resto era com eles, os empregados domésticos.

Tânia Virgínia cresceu como um estorvo, nasceu devedora, perdedora. Se os filhos de D. Núbia comiam cuzcuz com manteiga, o dela era encharcado de leite. Os outros podiam gritar e correr pela casa, o que lhe era terminantemente proibido.

Mesmo assim, repetiam-lhe que tinha sorte porque comia bem, tinha um teto, roupas e bom colégio. E de fato, nas datas festivas, usava um vestido novo, que tinha de vir mostrar a D. Núbia. Um desfile humilhante a que as outras crianças não eram obrigadas. “Está linda, muito bem, vê se se comporta!”

Estudar justamente no colégio de D. Núbia podia ser um privilégio, mas marcou sua alma de muitas cicatrizes. Os colegas sabiam que era a filha da empregada. Viam quando ia pra cozinha da casa merendar, geralmente bolachão com refresco. Amigos mesmo, nunca teve nenhum. E deveria tirar as melhores notas, afinal, estava de graça no colégio da patroa e ainda era preguiçosa? Preguiçosa, mentirosa, treiteira. Motivos suficientes para surras, muitas surras. De todos, a toda hora.

Talvez no fundo ficasse revoltada, mas a violência dos patrões tinha o poder de despertar a ira de Novelina que baixava sem pena o tamanco de madeira na cabeça de Tânia Virgínia, nas pernas, na bunda magra. Parecia que quanto mais a menina gritava, mais ela se sentia redimida, em dia com os patrões. Estava fazendo a sua parte, castigando aquela peste de menina. No fundo, ela admirava os filhos de d. Núbia. Meninos bonitos, limpos, sempre bem penteados. E a caçula então! Uma boneca, quase um anjo. Por que gente pobre tinha de ser feia e desgrenhada, por que sua Tânia Virgínia estava sempre com aquela cara de fome, por que não engordava como os outros? Ora, porque, porque teimava em não comer, não comer nada, nunca, como se não fosse gente, nem bicho.

Durante os anos em que convivi com a família Moreira, nunca entendi porque consideravam tão graves as faltas de Tânia Virgínia. Do alto dos meus dez anos, tinha uma pena infinita dela, magrinha, feia, a boca enorme, sempre apertada num esgar de raiva e desprezo. Por causa da pele, marronzinha clara, avermelhada, como diziam, era chamada de formiga de roça. Geniosa, que menina geniosa. Sempre tive admiração pelas crianças que os adultos classificavam de “geniosas”. Apanhavam caladas, choravam sem lágrimas, repetiam o erro, odiavam em silêncio.

Mas ser geniosa na situação de Tania Virgínia já era heroísmo. Por isso ficava de longe olhando pra ela, vi-a algumas vezes apanhando com a boca cheia de comida, que mandavam “engula, engula” e ela vomitava. Não comia nunca, como se assim ajudasse a dar fim ao seu próprio corpo martirizado. Talvez sonhasse em acabar tudo, em morrer enfim, para se livrar da mão enorme de seu Moreira, à noite, nos dias em que lhe faziam alguma grave denúncia a seu respeito. Faltas graves teriam de ser castigadas pelo seu Moreira em carne e osso. Coisas como pegar goiaba no pé, atrasar a comida dos passarinhos, andar descalça ou demorar em tirar a mesa.

Certa vez perdeu o lápis e mais, o lápis e uma borracha branca, novinha, agarrada no alto. Prejuízo pro seu Moreira, falta gravíssima. Seu Moreira não usava nada além da própria mão, batendo com força na bunda, nas pernas, nas costas. Mesmo toda manchada de vermelho, Tânia continuava em falta, a surra aborrecia seu Moreira, lhe fazia mal.

Acostumou-se desde pequenininha a pegar os chinelos de D.Núbia, a procurar seus óculos, a correr na venda para comprar linha, bolachão, sal. Entre fazer os deveres da escola, cumprir ”suas obrigações” e dormir mal, acossada por muriçocas e pesadelos, não sobrava tempo para Tânia brincar. Acostumamo-nos a incluí-la nas brincadeiras apenas aos domingos e feriados, ou quando os donos da casa viajavam para o Rio de Janeiro, duas vezes por ano.

Como nós, Tânia também cresceu. Muito magra, a boca sempre cerrada e os olhos rasgados, tristes mas espertos, como se planejassem uma grande vingança. Como se um dia pudesse vibrar o cinturão nas pernas de D.Núbia. O dia em que jogaria no chão o prato cheinho de comida. O dia em que responderia só não. Vá fazer isso, já. Não, não, não vou, não quero, não acho.

Tânia acabou crescendo sem comer quase nada e sem nunca dizer não. Os olhos espertos cedo escureceram. Lembro-me das vezes que a vi sentada diante de um monte de feijão, carne e farinha, o chinelo de couro de d.Núbia, virado com a sola suja pra cima, pousado ao lado do prato. Pratos enormes, muitas chineladas, a comida ia parar na vasilha do cachorro e Tânia maldita, mil vezes maldita, culpada por levar d. Núbia àquele estado de nervos.

O que mais me admirava era como conseguia cumprir a ordem que acompanhava os tapas e chineladas: “engula o choro, já” e ela engolia, tinha uma técnica de espremer o rosto e engolir, mesmo, os soluços. Eu, meus irmãos, meus primos, ninguém conseguiria tal proeza.

As surras em Tânia marcaram também a minha infância. Será que ela encarnava um pequeno demônio e por isso precisava ser permanentemente exorcizada a pancadas? Não entendia porque a castigavam tanto. Seria tão perigosa, tão infame? Brincando com a gente de cozinhado, de circo, de escola, era uma menina normal, sempre meio assustada. E ria, sabia rir.

Crescemos, não brincávamos mais e um dia, afinal, Tânia e Velina se mudaram. Conseguiram uma casa num programa social. Tânia fez o segundo grau, curso de magistério. A vida seguiu seu rumo e nos perdemos.

Uma vez perguntei a D. Núbia por ela. Falou como uma mãe fala de uma filha. “Matriculei no São Tomás, ela fez todo o segundo grau. Vai bem. É professora da prefeitura. Casou, mas não deu certo. Engravidou, mas perdeu, duas vezes. Sustenta a mãe, dizem que é uma pessoa muito direita.”

Enquanto ela falava, revi sua antiga cara de ódio, ouvi os gritos de Tânia, o chinelo em cima da mesa. Lembrei o cinturão, Tânia repetindo as mesmas lições, as mesmas cópias, aquela letra horrorosa, você além de burra, é malcriada. Tomávamos refresco de mangaba na varanda e ela lá, naquela mesa bem no meio da sala, à vista de todos, tentando inutilmente fazer os deveres.

Anos depois, de repente, a avistei. Eu, de férias, queimada de sol, encharcada de água de côco, ela, sobrevivente, numa esquina do centro de Aracaju, ainda magra, precocemente curvada. Acho que voltava do trabalho, os cabelos de formiga da roça esfiapados, brilhando ao sol do fim da tarde. Parecia cansada, caminhava devagar, as pernas finas bem separadas, o saltinho pequeno e torto do sapato preto, o vestido velho, bem passado. E a mesma boca grande retorcida. Do que ainda teria raiva? Reconheci o mesmo jeito de olhar para os lados, como se visse cinturões vibrando no ar.

Claro, o casamento não deu certo, o segundo grau de pouco lhe valeu, perdeu os filhos que gerou. Talvez não tenha querido botar filhos no mundo, não no mundo que conhecera. Talvez tivesse ficado com medo do marido, de todos os possíveis maridos. Talvez nunca tivesse ousado uma promoção no emprego público, talvez nunca tenha conseguido, de fato, ser professora. Talvez nunca tenha esquecido as mãos enormes de seu Moreira, o tamanco de Velina, as humilhações.

Talvez ainda lhe doam as noites de São João. Tantos fogos bonitos e ela só olhando. Como se a luz dos fogos e da fogueira expusessem sua desgraça, sua imensa solidão. As noites de São João talvez tenham ajudado a matar, para sempre, suas chances de ser feliz.

Bahia/2005



3 comentários:

  1. É triste mas é real, é a melhor forma de ilustrar e dar acesso aos que nem imaginam o estrago que faz, na vida de uma pessoa, os maltratos da infância. Parabéns Eleonora Ramos, por vc ser uma profissional de contribuição reflexiva à sociedade.Meire Reis

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  2. Amei! E confesso que por um segundo julguei que estavas falando de mim.
    Quem sabe todas as "Tânias Virginias" tenham tanto em comum.
    Parabéns pela bela narrativa!

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  3. Excelente conto, amei! Nos faz refletir a importância e o cuidado que devemos ter com as crianças. Porque uma criança sem infância é uma criança sem vida. E uma criança que sofre qualquer tipo de violência/agressão vai ter para sempre a sensação de uma infância roubada.

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