Adrian
Ghenie. “Pie Fight Study 2”, 2008.
Quando um caso de violência contra mulheres chega à grande
imprensa, o debate é orientado quase sempre pela mesma pergunta: qual a
motivação do crime? Mas o que é que motiva a formulação dessa pergunta?
Deixando de lado o procedimento jurídico que levará em consideração as
motivações do crime dentro de um protocolo de investigação policial, o
senso-comum e os consumidores de notícias em geral desejam encontrar uma
explicação individual, específica e subjetiva. E a pergunta pela motivação do
crime atende a essa necessidade. Muitos dizem: “era louco”, “era um monstro”,
“não era humano”.
Quando se diz que alguém que assassina brutalmente uma mulher o
fez simplesmente porque era “louco” se reforça o estigma do louco perigoso e,
ao mesmo tempo, se isenta o assassino de responsabilidade. É uma forma de
dizer: “ele não sabia o que estava fazendo”. Já a ideia de “monstro” pretende
colocar os casos de violência contra as mulheres como exceção, coisa que
aconteceria fora do mundo,
realizada unicamente por monstros desumanos.
O assassino de Campinas não é um monstro: ele é assustadoramente
humano, capaz de um mal naturalizado e banalizado que vitima mulheres todos os
dias. O ponto aqui é trazer de volta esses casos para o mundo, entendendo não
se tratarem de exceções. Fugir da perspectiva dominante que invariavelmente
termina por justificar a violência culpando a vítima.
Por Daniela Lima.
Quando um caso de violência contra
mulheres chega à grande imprensa, o debate é orientado quase sempre pela mesma
pergunta: qual a motivação do crime? Mas o que é que motiva a formulação dessa
pergunta? Deixando de lado o procedimento jurídico que levará em consideração
as motivações do crime dentro de um protocolo de investigação policial, o
senso-comum e os consumidores de notícias em geral desejam encontrar uma
explicação individual, específica e subjetiva. E a pergunta pela motivação do
crime atende a essa necessidade. Muitos dizem: “era louco”, “era um monstro”,
“não era humano”.
Quando se diz que alguém que assassina
brutalmente uma mulher o fez simplesmente porque era “louco” se reforça o
estigma do louco perigoso e, ao mesmo tempo, se isenta o assassino de
responsabilidade. É uma forma de dizer: “ele não sabia o que estava fazendo”.
Já a ideia de “monstro” pretende colocar os casos de violência contra as
mulheres como exceção, coisa que aconteceria fora do mundo, realizada
unicamente por monstros desumanos.
O assassino de Campinas não é um
monstro: ele é assustadoramente humano, capaz de um mal naturalizado e
banalizado que vitima mulheres todos os dias. O ponto aqui é trazer de volta
esses casos para o mundo, entendendo não se tratarem de exceções. Fugir da
perspectiva dominante que invariavelmente termina por justificar a violência
culpando a vítima.
O que faz a chacina de Campinas ser um
caso emblemático em relação aos esforços de procurar possíveis justificativas
para o injustificável é que o assassino deixou uma carta. Existe então um sem
número de possibilidades e de psicologismos que poderiam vir à tona para evitar
que se diga: esse caso não é exceção. Criam-se paredes de contenção para evitar
que se fale sobre misoginia.
O assassino antecipa a acusação de
misoginia na carta, estabelecendo as regras dos jogos de verdade e falsas
justificativas que o fariam escapar da acusação. É a carta que deve ser lida,
escrutinada, interpretada – e não a sociedade e as suas relações de poder.
Sidnei Ramis de Araújo diz na carta que
não odiava mulheres, ou seja, que não era misógino, que odiava tão somente as
“vadias” – curiosamente todas as mulheres da família de sua ex-companheira eram
vistas como “vadias”. Neste ponto, o assassino reforça a ideia do senso comum
de que toda violência pode ser justificada por meio da desumanização. É sob a
ideia perversa de que “vadias” não são humanas e que, portanto, podem sofrer
toda forma de violência que a misoginia se esconde e se sustenta.
A carta se inicia com Ramis
reivindicando para si a identidade de um “homem de bem”, assim como aconteceu
com os assassinos de Luiz Carlos Ruas. Essa repetição nos leva a perguntar: o
que define um “homem de bem”? Talvez o “homem de bem”, neste contexto, seja
aquele que trabalhe para a manutenção das relações de dominação de uns (sempre os
mesmos) sobre outros (também sempre os mesmos), ou seja, aquele que use a
violência para a manutenção do status quo.
O assassino revela também um ódio ao
que ele chama de “sistema feminista” – um delírio absoluto em um país cuja taxa
de feminicídios é a quinta maior do mundo, mas são tempos vertiginosos em que o
absurdo se estabelece e se enraíza como a verdade do senso comum.
Essa visão do feminismo parece retomar a famosa frase de Rebecca West: “eu mesma nunca consegui saber direito o que é feminismo. Só sei que me chamam de feminista quando expresso sentimentos diferentes de um capacho”. Fica expresso na carta um ódio às feministas, que, no fim das contas, são todas as mulheres que, como diz West, expressam sentimentos diferentes de um capacho. Pior: um ódio contra todas as mulheres, independentemente de como se expressem.
Há ainda a questão ética envolvida na
publicação da carta do assassino, pois além da exploração do crime como
espetáculo, o texto da carta traz em diversos momentos incitações de violência
contra “vadias” – e, como dito acima, “vadias” são todas as mulheres. Ramis
incita a violência misógina retomando o antigo discurso da “legítima defesa da
honra”, que sustentou por décadas um discurso jurídico para inocentar “homens
de bem” que cometiam femicídios. Destaco este trecho da carta:
“A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os
filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das
vadias.”
É preciso analisar aqui o que leva a
imprensa a publicar o discurso de ódio contido nessa carta, sobretudo em um
momento em que a mesma parece reproduz e reforça uma suposta divisão entre as
mulheres “de boa índole”, “belas, recatadas e do lar” e as “vadias”. Os dois
discursos se imbricam em uma perigosa e perversa abertura para justificar o
feminicídio.
A partir daí é que precisamos
prosseguir o debate sobre as múltiplas tecnologias do poder que naturalizam o
feminicídio por meio de separações, tais quais “mulheres de bem” e “vadias”.
Heleieth Saffioti nos diz: “não obstante a força de todas as tecnologias
sociais, especialmente as de gênero, […] a violência ainda é necessária para
manter o status quo”*. Talvez o crime de Campinas seja justamente sobre
a manutenção das relações de poder, do status quo, em um momento em que
as disputas de narrativas sobre os casos de feminicídio trazem à tona crimes
perversos que – é importante ressaltar – acontecem diariamente, embora nem
sempre sejam tão noticiados.
* SAFFIOTTI, Heileieth. Gênero,
patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
Daniela Lima é escritora e
ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva
(2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos
para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio
literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para
diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta
Capital, Margem Esquerda, Territórios
Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete,
biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista
Jandira (2014).
Fonte: Blog BoiTempo, em 2 de janeiro de 2016
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