2 de jan. de 2017

O monstro: sobre a chacina de Campinas, misoginia e notícias - Daniela Lima\Boitempo




Adrian Ghenie. “Pie Fight Study 2”, 2008.

Quando um caso de violência contra mulheres chega à grande imprensa, o debate é orientado quase sempre pela mesma pergunta: qual a motivação do crime? Mas o que é que motiva a formulação dessa pergunta? Deixando de lado o procedimento jurídico que levará em consideração as motivações do crime dentro de um protocolo de investigação policial, o senso-comum e os consumidores de notícias em geral desejam encontrar uma explicação individual, específica e subjetiva. E a pergunta pela motivação do crime atende a essa necessidade. Muitos dizem: “era louco”, “era um monstro”, “não era humano”.


Quando se diz que alguém que assassina brutalmente uma mulher o fez simplesmente porque era “louco” se reforça o estigma do louco perigoso e, ao mesmo tempo, se isenta o assassino de responsabilidade. É uma forma de dizer: “ele não sabia o que estava fazendo”. Já a ideia de “monstro” pretende colocar os casos de violência contra as mulheres como exceção, coisa que aconteceria fora do mundo, realizada unicamente por monstros desumanos.


O assassino de Campinas não é um monstro: ele é assustadoramente humano, capaz de um mal naturalizado e banalizado que vitima mulheres todos os dias. O ponto aqui é trazer de volta esses casos para o mundo, entendendo não se tratarem de exceções. Fugir da perspectiva dominante que invariavelmente termina por justificar a violência culpando a vítima.







Quando um caso de violência contra mulheres chega à grande imprensa, o debate é orientado quase sempre pela mesma pergunta: qual a motivação do crime? Mas o que é que motiva a formulação dessa pergunta? Deixando de lado o procedimento jurídico que levará em consideração as motivações do crime dentro de um protocolo de investigação policial, o senso-comum e os consumidores de notícias em geral desejam encontrar  uma explicação individual, específica e subjetiva. E a pergunta pela motivação do crime atende a essa necessidade. Muitos dizem: “era louco”, “era um monstro”, “não era humano”.


Quando se diz que alguém que assassina brutalmente uma mulher o fez simplesmente porque era “louco” se reforça o estigma do louco perigoso e, ao mesmo tempo, se isenta o assassino de responsabilidade. É uma forma de dizer: “ele não sabia o que estava fazendo”. Já a ideia de “monstro” pretende colocar os casos de violência contra as mulheres como exceção, coisa que aconteceria fora do mundo, realizada unicamente por monstros desumanos.


O assassino de Campinas não é um monstro: ele é assustadoramente humano, capaz de um mal naturalizado e banalizado que vitima mulheres todos os dias. O ponto aqui é trazer de volta esses casos para o mundo, entendendo não se tratarem de exceções. Fugir da perspectiva dominante que invariavelmente termina por justificar a violência culpando a vítima.


O que faz a chacina de Campinas ser um caso emblemático em relação aos esforços de procurar possíveis justificativas para o injustificável é que o assassino deixou uma carta. Existe então um sem número de possibilidades e de psicologismos que poderiam vir à tona para evitar que se diga: esse caso não é exceção. Criam-se paredes de contenção para evitar que se fale sobre misoginia.


O assassino antecipa a acusação de misoginia na carta, estabelecendo as regras dos jogos de verdade e falsas justificativas que o fariam escapar da acusação. É a carta que deve ser lida, escrutinada, interpretada – e não a sociedade e as suas relações de poder.


Sidnei Ramis de Araújo diz na carta que não odiava mulheres, ou seja, que não era misógino, que odiava tão somente as “vadias” – curiosamente todas as mulheres da família de sua ex-companheira eram vistas como “vadias”. Neste ponto, o assassino reforça a ideia do senso comum de que toda violência pode ser justificada por meio da desumanização. É sob a ideia perversa de que “vadias” não são humanas e que, portanto, podem sofrer toda forma de violência que a misoginia se esconde e se sustenta.


A carta se inicia com Ramis reivindicando para si a identidade de um “homem de bem”, assim como aconteceu com os assassinos de Luiz Carlos Ruas. Essa repetição nos leva a perguntar: o que define um “homem de bem”? Talvez o “homem de bem”, neste contexto, seja aquele que trabalhe para a manutenção das relações de dominação de uns (sempre os mesmos) sobre outros (também sempre os mesmos), ou seja, aquele que use a violência para a manutenção do status quo.


O assassino revela também um ódio ao que ele chama de “sistema feminista” – um delírio absoluto em um país cuja taxa de feminicídios é a quinta maior do mundo, mas são tempos vertiginosos em que o absurdo se estabelece e se enraíza como a verdade do senso comum.


Essa visão do feminismo parece retomar a famosa frase de Rebecca West: “eu mesma nunca consegui saber direito o que é feminismo. Só sei que me chamam de feminista quando expresso sentimentos diferentes de um capacho”. Fica expresso na carta um ódio às feministas, que, no fim das contas, são todas as mulheres que, como diz West, expressam sentimentos diferentes de um capacho. Pior: um ódio contra todas as mulheres, independentemente de como se expressem.


Há ainda a questão ética envolvida na publicação da carta do assassino, pois além da exploração do crime como espetáculo, o texto da carta traz em diversos momentos incitações de violência contra “vadias” – e, como dito acima, “vadias” são todas as mulheres. Ramis incita a violência misógina retomando o antigo discurso da “legítima defesa da honra”, que sustentou por décadas um discurso jurídico para inocentar “homens de bem” que cometiam femicídios. Destaco este trecho da carta:


“A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias.”


É preciso analisar aqui o que leva a imprensa a publicar o discurso de ódio contido nessa carta, sobretudo em um momento em que a mesma parece reproduz e reforça uma suposta divisão entre as mulheres “de boa índole”, “belas, recatadas e do lar” e as “vadias”. Os dois discursos se imbricam em uma perigosa e perversa abertura para justificar o feminicídio.


A partir daí é que precisamos prosseguir o debate sobre as múltiplas tecnologias do poder que naturalizam o feminicídio por meio de separações, tais quais “mulheres de bem” e “vadias”. Heleieth Saffioti nos diz: “não obstante a força de todas as tecnologias sociais, especialmente as de gênero, […] a violência ainda é necessária para manter o status quo”*. Talvez o crime de Campinas seja justamente sobre a manutenção das relações de poder, do status quo, em um momento em que as disputas de narrativas sobre os casos de feminicídio trazem à tona crimes perversos que – é importante ressaltar – acontecem diariamente, embora nem sempre sejam tão noticiados.


* SAFFIOTTI, Heileieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.



Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta Capital, Margem Esquerda, Territórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014). 

Fonte: Blog BoiTempo, em 2 de janeiro de 2016


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)