Um pedido aos meninos, jovens, adultos e idosos
do sexo masculino"
Verônica Alencar
(Projeto Iluminar - Campinas, São Paulo)
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Não
chamem de tragédia, apenas. Foi uma tragédia, mas foi sobretudo um crime
horrendo, uma chacina bárbara, cometida por um assassino que a planejou
meticulosamente, desde as armas utilizadas até a data escolhida para seu
cometimento. Um crime covarde porque colheu a todos de surpresa, quando uma
família brindava a passagem do ano e sequer poupou o próprio filho, a quem
dizia amar, em meio a essas cartas messiânicas e canalhas. Cartas publicadas
sem o menor pudor pela mídia, que horror.
Não
digam que o móvel do crime foi o fascismo, por favor, poupem-nos disso. O móvel
do crime foi ódio misógino e machista levado a um nível absurdo, mas em que
ele, o matador, um homem com ideias fascistas, com ideário fascista, com o
pensamento raso dos fascistas, matou pelo mais velho e conhecido machismo. Ao
final, seja por covardia, seja por soberba, rejeitando qualquer espécie de
julgamento ou punição, já destruídos quem queria destruir, ele se matou.
Não
digam que os culpados são os de sempre, os pastores de sempre, os que
pastoreiam suas ovelhas carnívoras, os deputados canalhas de sempre, que
homenageiam torturador que foi desprezado pelos torturadores de sua época. Quem
invadiu a casa, quem saltou sobre o muro, quem matou criança, mulheres e seus
maridos, todos desarmados, todos sem esperar a morte brutal que lhes viria, fez
isso porque não suportava ter que responder a uma lei, por ele chamada de Vadia da Penha, não admitia que
sua ex-esposa pudesse representar para ele algum freio e que estivesse
protegendo o menino, filho do casal, que dizia odiar o pai brutal, violento e
abusador.
Não
culpem a morosidade da Justiça, não culpem as restrições impostas até
unilateralmente, porque quando se trata de uma tutela de proteção ante uma
grave e verossímil possibilidade de abuso, as urgências se apressam ainda mais.
Quem decidiu reduzir as visitas estava corretíssimo e o desenrolar pavoroso dos
fatos deu razão a quem limitou as visitas do assassino ao filho que matou.
O
machista não vive em uma caverna, isolado. Ele interage em sociedade, trabalha,
consome, passeia, tem amigos, está nas redes sociais e é acolhido por muitos, a
maioria de nós homens, como “um
cara do bem, mas meio descontrolado, ciumento, quer o melhor para sua família”.
A cultura que nos envolve é machista, a ponto de ele conseguir imaginar que se
justificava, que representava os homens, ao “protestar”
contra a Lei Maria da Penha e a crer que seu gesto teria seguidores.
Na
carta em que destila seu ódio e seu preconceito machista, estão as ideias da
mulher submissa, que o decepcionou, por não ser quem ele gostaria que fosse ou
por não se comportar na maneira por ele determinada. Vadia é seu conceito da mulher
que não atende às suas expectativas, bem ao gosto da cultura patriarcal e
machista, recorrente e que – reconheçamos – assistimos a todos os dias, em
nossas casas, ambientes de trabalho, escolas, bares, etc. Ele julgou e condenou
a ex-esposa, o filho e todos os que a apoiavam.
O
discurso que ele escreveu não é inédito, não surpreende, não tem nenhum dado
criativo pela estúpida razão de se tratar de um discurso comum, clichê. Todos
já o ouvimos de algum parente nessa comilança de fim de ano e rimos, achamos
graça, alguns de nós lhes demos razão, “porque
antes era melhor, havia ordem e cada um sabia de seu lugar”.
Precisamos
falar mais disso, nós, homens machistas, sexistas, provedores patriarcais, nós,
que compramos a revista para ver a bunda da atriz, precisamos falar sobre isso
quando decidimos que filha nossa não pode sair vestida feito puta, que não
suportamos nossas mulheres quando bebem, mas adoramos ver nossas colegas de
trabalho bêbadas para que sobre alguma chance de terminar o happy-hour no
motel.
Precisamos
falar mais sobre as vadias,
precisamos nos aproximar da vadia
que há de existir em nossas mães, esposas e filhas, precisamos
falar e falar, até perder o medo de reconhecer que precisamos matar
urgentemente essa cultura devastadora. Precisamos falar, precisamos reconhecer:
essas mulheres e seus maridos, a criança, uma criança!, morreram porque os
braços estúpidos que os mataram encontraram espaço para crescer nessa cultura
machista, misógina, racista, que nos deixa furiosos, purificadores
autocentrados, em nome de um deus de quem quero distância.
Precisamos
tratar a igualdade de gênero e de raça como questões de sobrevivência, de única
forma de sobrevivermos com um mínimo possível de dignidade, como única maneira
de dividirmos o espaço terreno entre irmãos e irmãs. Enquanto a pauta de
direitos humanos no Brasil pertencer a um segmento, à esquerda, esses
homicídios se repetirão, transgêneros ou quem os proteja serão chacinados,
mulheres e crianças serão mortas em nome de um justiçamento que muito se
aproxima de toras de intolerância jogadas contra um pequeno bote.
Que
se inclua na pauta das escolas, nos sermões cristãos e anti-cristãos, nas
torcidas organizadas, nos sindicatos, nos clubes, nas reuniões burguesas, em
qualquer lugar.
Nenhum
governo poderia ser composto com representantes
do sexo feminino, todavia, com divisão de igualdade e dignidade.
Nenhum seminário de estudos em qualquer ramo do saber científico poderia se
instalar se não houvesse igualdade real e efetiva de gênero e raça; se formos
convidados, deveremos verificar. De minha parte, farei isso.
Em
Ruanda, depois do massacre que matou, em poucos meses, mais de 800.000 pessoas,
uma lei passou a proibir, sob pena de prisão, que se pergunte às pessoas a qual
etnia pertence. A dor do massacre ensinou o caminho e as ferramentas para a
igualdade.
O
machismo não morrerá de morte morrida, tampouco pela evolução. Já evoluímos em tudo
e nunca demos um passo de importância para sairmos desse atoleiro
preconceituoso e genocida em que nos metemos, porque fomos cavando e abrindo
vielas para um machismo líquido e que passa imperceptível, muitas vezes.
O
assassino se matou e não haverá punições.
Mas,
não se preocupem, muitos iguais a ele estão por aqui, bebendo e comendo
conosco, trabalhando conosco, recebendo nosso abraço todos os dias. Nós
fortalecemos esses assassinos, até conseguimos explicar o mal terrível que causam; quando
indefensável, dizemos que se trata de um doente.
Machismo
não é doença. É falha de caráter, de caráter coletivo.
Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca
Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.
Foto:
Eduardo Anizelli/Folhapress
Fonte: Justificando, 3 de janeiro de 2016.
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