A lei de alienação parental, que deputado pretende tornar mais severa, abre brechas para que vítimas de abuso sexual sejam obrigadas a viver com pais suspeitos da agressão
Igor* tinha 4 anos quando fez a primeira queixa. Foi em 2013, num domingo à noite, depois de um fim de semana na casa do pai. Ele tinha tomado banho sozinho, tinha comido pizza e, antes de dormir, reclamou para a mãe que o “bumbum estava doendo muito”. Iolanda*, que estava separada havia dois anos – período em que mantivera uma relação amistosa com o ex-marido –, examinou o filho e constatou que ele estava realmente machucado.
Tentou perguntar alguma coisa, o quê ou quem tinha
causado aquilo, mas viu que o menino se afligia demais e, com medo de piorar a
situação, apenas colocou-o para dormir. Passou a noite em claro, encarando o
teto do apartamento da zona sul do Rio, à procura de explicações que não fossem
terríveis demais. Quando, na manhã seguinte, uma pediatra examinou Igor e disse
que havia lesões indicativas de abuso, Iolanda, uma morena de expressivos olhos
castanhos, à época com 26 anos, teve de sair da sala. “Não queria desabar na
frente do meu filho”, disse.
No mesmo dia, o Instituto Médico-Legal (IML) do Rio de
Janeiro confirmou os indícios de abuso. A polícia passou a
investigar o caso, e a Justiça limitou o contato de Igor com a família paterna
a visitas assistidas. Nesse meio-tempo, Iolanda confrontou o ex-marido e ele
reagiu com nervosismo, disse que não havia abuso nenhum, que devia ser uma
alergia.
“Nessa hora percebi que ele sabia. Mas achava que estava protegendo
o filho do primeiro casamento, que passava o fim de semana com eles”,
contou Iolanda.
Algumas semanas depois, contudo, o menino falou
sobre a causa dos machucados que levariam um mês para cicatrizar: “Você não
está entendendo?”, disse à mãe. “Foi o papai que fez isso comigo.”
Iolanda imediatamente entrou com um pedido de afastamento, novamente acatado
pela Justiça fluminense.
Então as coisas começaram a mudar. Enquanto era
investigado por estupro de vulnerável, o pai de Igor abriu um processo na vara
da família. Alegava que a mãe estava promovendo uma campanha de difamação para
afastá-lo da criança, e pedia a guarda do menino.
Enfurecida, Iolanda procurou aconselhamento de
advogados e de conhecidos que trabalhassem no meio jurídico. De todos escutou o
mesmo alerta: para tomar cuidado, que se fosse adiante com as acusações
correria o risco de perder a guarda do filho. Ela respondia que não era
possível, que havia provas concretas, que a Justiça
não deixaria uma criança à mercê de um abusador, que estavam todos malucos. Não
estavam.
O processo movido pelo pai suspeito de abuso
lançava mão da Lei 12.318, de agosto de 2010. Conhecida
como lei de alienação parental, ela foi criada com o objetivo de impedir que,
em casos de divórcio, um cônjuge sabote a relação do outro com os filhos.
Dificultar o contato da criança com o genitor, mudar de endereço sem
justificativa, ou apresentar falsa denúncia são exemplos de alienação parental
previstos na lei.
Acontece que provas nos casos de abuso sexual são
extremamente difíceis de obter. O crime quase sempre ocorre entre quatro
paredes, muitas vezes não há ferimentos, a janela para colher material genético
do agressor no corpo da vítima é de 24 horas, os depoimentos das crianças são
difíceis de obter e frequentemente carecem de objetividade.
Fica fácil, para a defesa, argumentar que as
acusações são falsas, e a ausência de provas de abuso se torna prova de
alienação parental. Como uma das punições previstas é a inversão de guarda, as
crianças, supostamente vítimas, muitas vezes acabam entregues aos suspeitos.
As mães, por sua vez, passam a ter o acesso aos
filhos limitado, quando não totalmente proibido – penalidades que podem se
tornar mais rígidas, uma vez que, desde fevereiro de 2016, tramita no Congresso o Projeto de Lei 4.488. De autoria do
deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), propõe que a
alienação parental passe a ser considerada um crime. Caso seja aprovado, mães
que denunciarem maridos ou ex-maridos sem conseguir provar poderão ser
condenadas a penas de prisão, que devem variar de três meses a três anos.
Relatos e dados
Numa pesquisa feita nos sites dos 27 tribunais de
justiça brasileiros, cruzando-se os termos “alienação parental” e “abuso
sexual”, foram encontradas 249 ocorrências – número que não abarca os processos
de primeira instância, necessariamente mais numerosos. Não é possível afirmar
em quais dessas ocorrências a lei está sendo usada de forma maliciosa, mas os
relatos se proliferam.
No Rio Grande do Sul, uma mãe diz ter
descoberto que a dificuldade de fala do filho de 4 anos, atribuída a um
possível autismo, se devia ao trauma causado por
abusos recorrentes. Em São
Paulo, uma mãe gravou 11 minutos de agonia dos filhos que choravam e
gritavam as atrocidades cometidas pelo pai, enquanto um oficial de justiça
cumpria o mandado de busca e apreensão, favorável ao suspeito. No Mato Grosso,
uma mãe contou que o pai suspeito de ter cometido abuso sexual pediu a custódia
dos dois filhos e colocou-os num abrigo. Em todos esses casos, relatados em
entrevistas ao repórter, a guarda foi concedida aos pais, sempre com base na
premissa de que as denúncias não passavam de atos de difamação engendrados por
mães vingativas.
A síndrome por trás da lei
A Lei 12.318 baseia-se no conceito de
síndrome de alienação parental (SAP), criado pelo psiquiatra
norte-americano Richard Gardner, em meados da década de
1980. Segundo Gardner, a síndrome se instalaria em crianças, geralmente durante
ou após processos de separação conflituosa, provocada por campanhas de
difamação promovidas por um dos cônjuges, normalmente a mãe, que se tornaria a
“alienadora”.
Entre os vários expedientes utilizados para prejudicar
a imagem do ex-companheiro, estariam as falsas acusações de abuso sexual e a
implantação de memórias nos filhos por meio de lavagens cerebrais. Como
consequência, eles desenvolveriam ódio crescente pelo genitor “alienado” até
que finalmente se juntariam à campanha de difamação. A SAP
causaria distúrbios mentais de ordem variada nas crianças, que nunca se
recuperariam do trauma.
Além de elaborar a teoria da síndrome, o psiquiatra
norte-americano ofereceu um conjunto de ferramentas para combatê-la: a “terapia
da ameaça”. O método propõe tratamentos psicoterápicos impostos pela Justiça
para o alienador, suspensão do sigilo entre paciente e psicólogo e livre acesso
do juiz aos dados do tratamento. Prevê punições como inversão de guarda,
privação total de contato entre o genitor “alienador” e a criança e
encarceramento.
O conceito da SAP logo se espalhou pelos tribunais,
principalmente da Europa e das Américas. O médico norte-americano fez carreira
como psiquiatra forense, tendo atuado em mais de 400 casos de divórcio
litigioso. O que leva à primeira crítica à sua teoria: ele teria criado a SAP
para figurar como arma de defesa nos processos em que trabalhava.
“Este médico fez sua carreira profissional
defendendo indivíduos acusados de abuso sexual de crianças e criou esta teoria
da síndrome da alienação parental, que nunca foi reconhecida pela comunidade
acadêmica e pela ciência, para defender seus clientes”, afirmou à Pública a
ministra do Tribunal Constitucional de Portugal (equivalente ao nosso Supremo)
Maria Clara Sottomayor, que esteve no Brasil a convite do Judiciário
catarinense para falar sobre o tema.
De fato, o rigor de suas pesquisas foi duramente questionado por instituições e
profissionais de saúde mental. A Associação Americana de Psicologia, por
exemplo, afirmou que “não há evidência na literatura psicológica de uma
síndrome de alienação parental diagnosticável”. A Associação Espanhola de
Neuropsiquiatria foi além. “Acreditamos que o sucesso do termo SAP no campo
judicial se deve ao fato de possibilitar uma resposta simples (e simplista) a
um grave problema que preocupa e satura os juizados de família, fornecendo
argumentos pseudopsicológicos e pseudocientíficos”. As declarações estão
citadas no estudo “Síndrome da alienação parental, uma iníqua falácia”,
conduzido pela advogada Cláudia Galiberne Ferreira e pelo juiz Romano José
Enzweiler, a partir de uma extensa pesquisa realizada por eles no Brasil e no
mundo.
Além disso, apesar de uma intensa campanha dos
apoiadores de Gardner, a síndrome da alienação parental não foi incluída na
quinta edição do Manual de diagnóstico e estatística dos transtornos mentais
(DSM-5) – que lista todos os distúrbios mentais já identificados.
As críticas ao criador da SAP, que se suicidou em
2003, miram também afirmações polêmicas, feitas em sua obra seminal, True and
false accusations of child sex abuse (Verdadeiras e falsas acusações de abuso
sexual infantil, numa tradução livre). “Nós estamos vivendo tempos perigosos. A
histeria do abuso sexual é onipresente”, escreveu Gardner já na introdução do
livro lançado em 1992 – um catatau de quase 700 páginas publicado pelo próprio
autor, como todas as suas obras. Mais adiante, sob o intertítulo “Incrementando
a autoestima”, o autor afirmou que os pais pedófilos “precisam ser ajudados a
entender que a pedofilia tem sido considerada normal pela vasta maioria dos
indivíduos na história do mundo”.
Para o autor, os que sofrem do distúrbio devem
“aprender a se controlar se quiserem se proteger das punições draconianas que,
na nossa sociedade, se impõem sobre aqueles que agem por seus impulsos
pedófilos”. Reações que, por si sós, causariam problemas: “É porque nossa
sociedade reage de forma exagerada a isso [pedofilia] que as crianças sofrem”,
escreveu.
Analdino, o pai da lei
brasileira
A despeito da polêmica sobre Gardner e a SAP, o
Congresso brasileiro aprovou uma lei sobre o assunto. Segundo juristas ouvidos
pela Pública, o Brasil foi o único país do mundo a fazê-lo. Tal fato
deve ser creditado, ainda que não exclusivamente, a um bacharel de direito de
65 anos.
Natural de Goiânia e radicado em São Paulo,
Analdino Rodrigues Paulino Neto é presidente e cofundador da Associação de Pais
e Mães Separados (Apase)
– ONG criada em 1997 com o objetivo de dar apoio e aconselhamento a pais e mães
em separações litigiosas. Parte desse aconselhamento ocorre em grupos de
discussão online, e foi num deles que surgiu o embrião da Lei 12.318, a partir da postagem de um
artigo de Richard Gardner.
Enquanto bebericava um chocolate quente no ruidoso
café da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, Paulino Neto
explicou que resolveu estudar processos de divórcio para atuar em causa
própria. “Quando a mãe da minha filha ficou grávida, ela começou a se achar
muito poderosa. Aí eu percebi que ia ter dificuldades”, disse. No processo
de separação, ele disse ter sido judicialmente afastado da filha e da mulher
mais de 20 vezes. Sempre por queixas de agressão, segundo ele, infundadas.
O fenômeno, ainda de acordo com Paulino Neto, teria
se tornado frequente na nossa sociedade após a Constituição de 1988, quando as
mulheres supostamente conquistaram uma situação de igualdade. “Agora, pra
sair da igualdade de relacionamento para esse, digamos, coronelismo das
mulheres, foi um pulo, né?” Para exemplificar a “dominação feminina”, o
presidente da Apase citou a Lei Maria da Penha, criada em 2006 com o
objetivo de coibir a violência doméstica. “Tem mulher até que se
automachuca. Ela bate a perna num lugar, houve um mínimo ferimento, aí ela vai
na delegacia e fala: ‘Foi o fulano que fez isso comigo’.”
O mesmo estaria ocorrendo com as acusações de abuso
sexual. Segundo Paulino Neto, 80% delas são falsas e constituem-se na mais
grave forma de alienação parental. Por outro lado, segundo a Childhood Brasil,
ONG voltada para a proteção de crianças e adolescentes, por fatores como medo
do abusador ou descrença na Justiça, apenas uma fração de mulheres e crianças
denuncia abusos. A organização estima que há sete vezes mais casos do que o
relatado.
Ainda assim, em 2015 foram mais de 14 mil casos de
abuso sexual reportados em todo o país, apenas através do Disque 100 – serviço
de atendimento anônimo voltado para crimes contra crianças e adolescentes. Ou o
equivalente a uma denúncia a cada 37 minutos. No mesmo estudo, a ONG mostrou
que 75% dos casos de violência contra crianças e adolescentes foram perpetrados
por alguém da família; e 72% deles ocorreram na casa da vítima ou do suspeito.
Paulino Neto se contorceu na poltrona de couro
vermelho quando o assunto enveredou pela possibilidade de a lei de alienação
parental ajudar a livrar da Justiça pais abusadores. O próprio termo “abuso
sexual” o incomoda. Ele prefere incesto. “Acho que devemos sempre ouvir a
outra parte e não devemos afastar a criança da convivência com o pai”,
disse.
Quando insisti na pergunta sobre a possibilidade de
abusadores estarem usando alienação parental como escudo e de crianças estarem
sendo condenadas a viver com seus algozes, Paulino Neto se irritou. “Amigo,
nem teu cu está blindado! Não tem nada blindado. Não existe isso. Não existe o
impossível. O que eu quero dizer é que a lei não foi criada pra isso. Ela não
foi inventada pra isso, e os estudos sobre alienação parental nunca tiveram
esse objetivo”, afirmou.
Alguns dias depois e algumas centenas de metros
adiante na avenida Paulista, o ex-deputado federal Régis de Oliveira, autor
oficial da Lei 12.318, acomodou-se numa cadeira de
rodinhas, diante da imponente sala de reuniões de seu escritório no 17º andar.
O advogado, ex-juiz, e prefeito acidental de São Paulo pelos 19 dias em que
Celso Pitta esteve cassado, não se lembra das circunstâncias que o levaram a
propor o texto. Desconhece uma síndrome que tenha embasado o pré-projeto e
nunca ouviu falar de Richard Gardner. Tampouco tem notícias de mães que estejam
perdendo a guarda para suspeitos de abuso.
“Isso não é um problema legal”, afirmou
quando confrontado com a possibilidade. “É problema do pai canalha que está
se utilizando da lei.” Uma lei que, segundo Oliveira, tem o mérito de dar
mais recursos e, principalmente, mais agilidade ao julgador. “Se houver
alguém utilizando a lei pra manipular o juiz… Bem, o juiz que fique esperto”,
concluiu.
Na dúvida, puniu-se a mãe
Em agosto de 2013, a psicóloga forense do estado do
Rio de Janeiro responsável pelo caso Igor terminou o primeiro laudo. Nele,
afirmou que era possível que o menino “tenha sido vítima de um abuso sexual
real – mas não nos pareceu que fosse praticado pelo pai”. Para tal
conclusão, a perita baseou-se sobretudo no fato de que, durante as entrevistas,
o convívio da criança com o pai havia sido harmonioso.
A psicóloga afirmou também que era possível que
Igor estivesse “sendo vítima de alienação parental”, o que era grave,
pois “a crença no abuso gera os mesmos sintomas negativos do abuso real”.
Diante disso, sugeriu que Igor tivesse “o convívio com o núcleo materno
restringido devido à crença da família materna no abuso”. Após este, vários
outros laudos seriam elaborados na tentativa de entender o que realmente se
passara na família de Igor e Iolanda. Todos eles, contudo, acabariam por se
basear nessa primeira avaliação.
Foi essa avaliação também a principal fonte das
ameaças que pontuaram uma audiência sobre os rumos do processo, ocorrida em
meados de 2014. O advogado do pai afirmava que, se não fosse feito um acordo, a
guarda acabaria invertida, com base na lei de alienação parental. “O risco
era eu perder o contato total com o meu filho”, disse Iolanda. “Porque
nenhuma prova era tratada como prova. Os laudos do IML e da pediatra não eram
mais levados em consideração.”
Sem ver outra saída, ela optou por aceitar o que
lhe era proposto: guarda compartilhada. O acerto pôs um ponto final no processo
de custódia, e o inquérito policial que investigava o possível estupro de
vulnerável foi arquivado. Igor passou a viver sete dias com a mãe e sete dias com
o pai. A mãe conta que aos 5 anos ele tinha crises nervosas: batia-se, quebrava
móveis, acusava a mãe de não estar fazendo nada por ele.
Iolanda passou a cogitar medidas drásticas. Ficou
noites no computador em busca de países que não tivessem acordo de extradição
com o Brasil. “Não é difícil”, disse num fim de semana de novembro em
que esteve em São Paulo. “É só dar um Google. Agora, dar um Google é
diferente de sair com uma criança, sem passaporte, foragida. Que vida eu ia
oferecer pro meu filho depois? Ia fazer o quê? Jogar bolinha num sinal na
Finlândia?”
Uma cidadezinha catarinense
no centro dos debates sobre a alienação parental
Apesar do papel de destaque que vem desempenhando
em casos como o de Iolanda, a lei de alienação parental é pouco discutida no
Brasil. Algo que tende a mudar se depender da comunidade jurídica de uma
pequenina cidade catarinense. Encravada na serra Dona Francisca, quase na
fronteira com o Paraná, São
Bento do Sul é limpa e organizada, tem um clima enregelante quase o
ano inteiro e é constantemente assolada por nevoeiros opacos e melancólicos.
Já no meio da tarde, eles costumam encobrir as
construções de arquitetura germânica e as casas modernas de condomínios
fechados, como aquela em que vive o casal Cláudia Galiberne Ferreira, advogada
especialista em direito civil, e Romano José Enzweiler, juiz da vara cível e
diretor do fórum da cidade.
Pouco antes das 20h do dia 20 de outubro passado,
Edson Luiz de Oliveira, também juiz, mas da vara da família, estacionou seu
Fiat Freemont em frente à residência de Enzweiler. No banco do passageiro,
trajando um vestido florido, arrematado por uma blusa de lã bordô, estava Maria
Clara Sottomayor, a ministra do Tribunal Constitucional de Portugal
que se tornou uma das vozes mais eloquentes contra a forma como a teoria de
Gardner vem sendo usada. Ela viajara até ali a convite do Judiciário
catarinense e, no dia seguinte, seria a estrela de um debate sobre alienação
parental.
Enzweiler abriu a porta da frente antes que todos
desembarcassem do carro. Segurava um garfo de churrasco na mão direita e
envergava um paternal avental preto sobre a polo amarelo-gema. “Vamos
entrando que eu vou assar uma carninha pra vocês”, disse com um sotaque
sulista que ornava perfeitamente com a frase.
Mais tarde, em pé diante da churrasqueira (que, por
causa do frio, fica numa sala envidraçada), Enzweiler explicou como a discussão
sobre o tema havia surgido ali mesmo, num papo entre ele, a esposa e Oliveira
em 2014. Instigado pela conversa, o casal começou a levantar os dados da
comarca onde atuava. Não demorou para que expandissem para todo o Brasil e
depois para o exterior a pesquisa que daria origem a dois artigos jurídicos
sobre a alienação parental: “Síndrome da alienação parental, uma iníqua
falácia” e “Duas abordagens, a mesma arrogante ignorância: como a SAP e
a violência doméstica se tornaram irmãs siamesas”.
Segundo Enzweiler, eles constataram que, além dos
casos em que há, de fato, difamação por parte das mães, a lei tem sido usada em
duas situações que subvertem a justiça. Na primeira, como barganha por acordos,
principalmente relativos à guarda compartilhada e ao pagamento de pensão
alimentícia. “As mães, assustadíssimas porque a lei é muito draconiana,
acabam se sensibilizando pra proteger o filho e aceitam acordos desfavoráveis”,
disse.
Na segunda situação, a tese da alienação é usada
como defesa de abusadores, muitas vezes na esfera criminal. “A perversidade
dessa argumentação é que não há como negar. Toda vez que a mãe acusa o pai, ele
alega que ela está alienando. É um círculo vicioso perverso em que não há
alternativa.” Ainda de acordo com Enzweiler, a existência da lei permite
também que, em certas ocasiões, casos sejam julgados de forma automática. “Sentenças
são proferidas com base num slogan, algo que, infelizmente, acontece muito no
nosso sistema judiciário”, disse.
Na noite seguinte, uma sexta-feira fria como quase
todas por ali, o juiz se aboletou ao lado da esposa no auditório do campus
local da Universidade da Região de Joinville (Univille).
A plateia, composta sobretudo por estudantes de direito, advogados, juízes e
desembargadores, ocupava todos os 350 lugares. O debate começou um pouco depois
das 19h, com a fala da desembargadora Hildemar Meneguzzi de Carvalho, defensora
da Lei 12.318. Na segunda rodada de perguntas,
ela foi questionada sobre a possibilidade de a lei ajudar a encobrir abusos
sexuais. A resposta fez Enzweiler se contorcer na cadeira, enquanto Oliveira,
que também participava do debate, baixava a cabeça e cobria os olhos com a mão.
“A vida é feita de escolhas. E somos nós,
mulheres, que escolhemos o nosso companheiro, o nosso marido”, argumentou.
“Não tem como eu dizer que alguém me obrigou a viver com esse ou com aquele
companheiro. E, se a relação não está boa, se existe violência, eu penso que a
mulher deve sair dessa relação.”
Ao final do evento, questionei a desembargadora
sobre o grande número de mães que se dizem injustamente tachadas de alienadoras
após acusarem os ex-maridos de molestar os filhos. Ela alegou ter limitações
para comentar casos que não conhece, mas, quando insisti, afirmou que o mais
provável é que as acusações sejam falsas.
Antes disso, ainda no debate, a ministra portuguesa
Maria
Clara Sottomayor assumiu o microfone na condição de opositora à lei.
“Não aceitamos, sequer como possibilidade, menos que mínima, entregar a
guarda de uma criança a um indivíduo que poderá abusar dela. Mesmo que a gente
não tenha certeza de que isso aconteceu”, exclamou.
Depois argumentou que, por mais injusto que seja,
para um adulto, enfrentar uma falsa acusação de assédio sexual, isso não se
compara à temeridade de entregar a guarda de uma criança ao abusador. E que é
comum que julgadores – por serem adultos e, na maior parte das vezes, homens –
criem empatia com a ideia de que o pai esteja sendo falsamente acusado. Isso,
aliado ao fato de que provas materiais de abuso são extremamente difíceis de
obter, estaria dando vantagem aos molestadores nos tribunais.
“Aparece um exame de medicina legal com
resultado inconclusivo”, exemplificou. “Imediatamente os julgadores
ficam com a consciência tranquila e dizem que não há abuso sexual.
Imediatamente partem os advogados para a ideia de falsidade da acusação e para
a inversão da guarda em prol do suspeito. Isso está de fato a acontecer no
Brasil, em Portugal, na Espanha e em outros países”, disse, reiterando que
o uso da SAP ocorre mesmo em países onde não há uma lei específica para tanto.
Por fim, Sottomayor afirmou que não há lógica na existência de um texto legal
que combata falsas acusações de abuso. “Por que não há então uma teoria que
aponte as falsas acusações de furto, de fraude, de roubo?”, provocou.
Falsas acusações
Ainda que não se tenha números confiáveis dos casos
de alegações inverídicas, elas de fato existem. Assim como existem mães que
fazem de tudo para destruir a reputação de seus ex. Não são poucos os relatos
de pais que mergulharam em depressão após serem injustamente acusados das mais
diversas atrocidades.
Em um artigo escrito em 2009, a psicóloga da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro Marcia Ferreira Amendola debruçou-se
sobre o assunto das falsas acusações. No texto, ela afirmou que os sintomas de
uma criança que sofreu abuso real podem coincidir com os de uma que passou por
um período de tensão como, por exemplo, um divórcio. E que uma criança pode “mentir
para proteger ou agradar uma pessoa da qual depende afetivamente”. Ou ainda
responder de acordo com o que acha que vai satisfazer quem pergunta, um
psicólogo forense, por exemplo. “Não existe um grau de credibilidade
absoluta para o testemunho de uma criança”, escreveu.
Ainda segundo Amendola, é possível que uma criança
invente um abuso, mas isso normalmente ocorre quando ela é induzida por um
adulto. “Nessas condições, a criança tende a acreditar no que lhe foi
imposto como sendo a sua verdade, elaborando um registro psíquico de um abuso
sexual”.
A importância da acurácia dos depoimentos aumenta
diante do fato de que, em casos de estupro e de abuso, a fala da vítima é,
frequentemente, a única prova. “Ninguém estupra ou abusa na frente de outro”,
afirmou o juiz Edson Luiz de Oliveira. “Não há como ser desprezada a palavra
da vítima. E normalmente ela é o que me basta para o convencimento de que eu
necessito para a condenação.” Segundo ele, contudo, é importante que esse
depoimento seja colhido de forma adequada, por profissionais competentes e bem
treinados – o que, fez questão de ressaltar, não ocorre na maioria dos fóruns
brasileiros.
Diante disso, a Childhood Brasil trabalha para
melhorar a forma como as crianças vítimas de abuso são escutadas pela Justiça.
O método que eles propõem, batizado de “escuta protegida”, é bastante
simples: uma sala em que entram apenas o entrevistador e a vítima e onde tudo é
gravado em vídeo. A criança tem à sua disposição alguns bonecos com gêneros
identificados, e o entrevistador, normalmente um psicólogo ou pedagogo, segue
um protocolo de perguntas.
Desde 2015, o Congresso analisa um projeto de lei
que, se aprovado, vai regulamentar esse tipo de procedimento. Nele, a vítima é
escutada apenas uma vez, diferentemente da maratona de oitivas que hoje, de
acordo com o gerente de advocacia da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves,
costuma chegar às dezenas. Segundo ele, a ONG trabalha em conjunto com as
comarcas brasileiras para instalar salas de entrevista e ajudar na capacitação
de profissionais. Até o momento, cerca de 200 fóruns já foram capacitados. O
número tende a crescer, mas está bem abaixo do necessário, e a maioria das
crianças abusadas ainda não é escutada da maneira ideal.
“No Rio de Janeiro, o comum é acareação. Senta o
pai, a criança, e a psicóloga pergunta: ‘O que você disse que o seu pai fazia
em você?’”, disse a psicóloga carioca Ana Maria Iencarelli, autora do livro
Abuso sexual – uma tatuagem na alma de meninos e meninas. Ela também participou
do debate em São Bento do Sul e conversou com a reportagem algumas horas antes,
no restaurante do hotel.
Iencarelli defende o sistema da Childhood, que, por
ser baseado num protocolo único, evitaria “os achismos dos laudos de
psicólogos que saem interpretando o que querem”. Além disso, uma vez que os
dados são padronizados, eles poderiam embasar futuras pesquisas – atualmente
não há padronização nem quanto à forma de se referir ao abuso. Há locais em que
se fala em “ofensa sexual” ou “violência sexual”, por exemplo.
“Quando as crianças são bem perguntadas, elas
falam”, afirmou Iencarelli. “E se elas forem bem perguntadas e estiveram
repetindo o texto de outra pessoa, elas dão dicas de que foi decorado.” Por
outro lado, se a entrevista for mal feita, elas podem se retrair ou voltar
atrás, ainda mais se houver a presença ou a suspeita da presença do abusador
(algo que acontece frequentemente em entrevistas feitas em salas com espelho
falso). Os abusadores, explica a psicóloga, criam uma linguagem particular com
a vítima, que vai além das palavras. Pode permear gestos e olhares, sinais
subliminares de intimidação, o que reforça as críticas ao método da acareação.
“É como se o abusador fosse levando a criança para uma espécie de transe. E
a mente dela dá uma descolada, porque não é suportável lidar com o fato de um
pai usar o corpo dela daquela forma”, explicou Iencarelli.
Eles costumam controlar as vítimas também por meio
de ameaças: “Se você contar, eu mato a sua mãe” é a mais comum. Isso faz
com que a manutenção do segredo ganhe extrema importância e põe as crianças num
estado de preocupação constante. Estão num esforço contínuo para esquecer, mas,
ao mesmo tempo, aflitas pelo medo de um lapso que revele o crime. “É uma
tortura constante, como se vivessem num campo de concentração”, disse a
psicóloga carioca. E ficam sequelas: as vítimas costumam ter problemas de
aprendizado e de relacionamento.
A tese do domínio do abusador sobre a vítima se
choca com um dos pilares da teoria de Gardner. O norte-americano afirma que o
fato de uma acusação de abuso surgir após o divórcio é um indício de que ela é falsa,
de que está servindo de instrumento de vingança. Já para Iencarelli isso se
deve ao fato de o abusador não estar mais presente, sob o mesmo teto, o que
libera a criança da dominação e permite a denúncia.
A psicóloga é uma ferrenha opositora da lei de
alienação parental e da teoria de Gardner, que, para ela, foi enfiada goela
abaixo dos peritos forenses. E resume a situação da seguinte forma: “O direito
à convivência está suplantando o dever da proteção”.
No final de 2015, Igor estava com 6 anos. Após um
período de sete dias na casa do pai, fruto do acordo de guarda compartilhada,
voltou a se queixar de dor, pediu à mãe que fizesse alguma coisa, e Iolanda
novamente o levou à pediatra. A médica examinou o menino, constatou uma pequena
lesão anal e perguntou se a mãe sabia de onde vinha aquele problema, ou se ele
já tinha se queixado antes. “Pode falar que foi o meu pai”, Igor
exclamou, colocando as rodas legais novamente em movimento.
A pediatra cobriu Iolanda de perguntas, enquanto a
recepcionista acionava a polícia. A mãe explicou que já tinha feito de tudo,
que não podia mais denunciar, que se fosse adiante correria o risco de perder
completamente o contato com o filho, mas a médica não acreditou, ameaçou
internar Igor. “Ela achou que eu era conivente. Claro, porque todo mundo
acredita nesse mundo rosa. Todo mundo acredita que não se pode abusar de
criança, que não se pode bater em mulher”, disse Iolanda, que,
completamente aflita, agarrou o filho e foi embora.
Mas era tarde. A pediatra denunciou o caso à
Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), o que gerou um segundo
inquérito contra o pai. Iolanda foi chamada a depor e Igor, submetido a um novo
exame de corpo de delito que não apontou indícios de abuso – resultado de pouca
relevância devido ao tempo transcorrido desde a queixa.
Além disso, o menino se viu mais uma vez obrigado a
contar como havia sido o suposto abuso. No documento produzido a partir da
conversa o investigador afirmou: “Não verificamos nas declarações da
criança, a princípio, indícios de terem sido contaminadas (sugestionadas) por
terceiros”.
Antes disso, logo após o término da entrevista, o
policial quis falar com Iolanda. Disse que Igor havia pedido a ele uma garantia
de que nunca mais seria obrigado a ver o pai, algo que ele não podia oferecer.
“Aquilo foi a gota d’água”, disse Iolanda. “Resolvi não ser mais
conivente. Resolvi que não entregaria mais meu filho.”
Ao decidir isso, ela estava indo contra o acordo
que mantinha Igor sete dias em cada casa e dando combustível para as acusações
de alienação parental. Com base nela, o pai pediu a inversão total da guarda,
que foi concedida em julho de 2015. O processo criminal gerado pela denúncia da
médica corre em segredo de justiça, mas já há uma sentença absolvendo o réu.
Iolanda gastou o dinheiro de um apartamento na zona
sul do Rio com custas processuais e atualmente mora com a mãe. Só pode ver o
filho aos sábados e aos domingos, durante o dia, em visitas assistidas.
Desconfia que o pai continue abusando de Igor, mas acha que o menino se
resignou a essa condição. “Eu tento não falar, não tocar no assunto e
aceitar que essa é a realidade dele, que ele tem de viver com isso. Então digo
só que continuo lutando pra reverter a situação na Justiça.”
*A fim de proteger a identidade de mãe e filho e de
não subverter o direito de defesa do acusado, os nomes Igor e Iolanda são
fictícios. Fatos, dados e locais que pudessem identificar esses personagens
foram suprimidos do relato.
Fonte: Pública, 24 de janeiro e 2017.
Veja mais na reportagem "A lei para proteger pais divorciados que expõe suas crianças ao abuso"
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