Lúcia Williams, Professora Dra. Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), apresentando o LAPREV (Laboratório de Análise e Prevenção da Violência).
Por Paolla Magioni Santini, Sheila Prado Soma e Lúcia C. A. Williams
Tivemos a boa notícia de que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania aprovou o texto do Projeto de Lei 7672/10 no dia 21/05/2014, conhecido como “Lei da Palmada”, e que agora irá se chamar “Lei Menino Bernardo”. No entanto, nem todos acreditam ser essa uma boa notícia, argumentando – com base no senso comum – que não deveria existir tal lei. Pretendemos aqui rebater tais argumentos com base no que se tem estudado cientificamente há mais de vinte anos na área de maus-tratos contra crianças, especificamente o castigo corporal – foco do Projeto de Lei em questão[1].
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Palmada não é castigo corporal. É uma forma de educar a criança quando ela se comporta errado.
A definição de castigo corporal é “aplicação de dor física com o propósito de educar ou corrigir comportamentos considerados inadequados”, e isso inclui dar palmadas, dar tapas, empurrar, chutar, beliscar, sacudir, usar objetos para agredir, obrigar a ficar em posturas que provocam dor, provocar queimaduras, etc.
Dizer que a palmada ou qualquer outra forma de castigo físico é uma forma de educar a criança significa defender o direito de violar a integridade física de um indivíduo. Nenhum adulto admitiria ser agredido com um “tapinha” ou “palmadinha” quando se comportasse de modo errado, seja no trabalho, na universidade, etc., e não seria aceitável fazer o mesmo contra um idoso. Por que seria diferente com as crianças?
Os estudos sobre castigo corporal revelam que, em geral, as crianças não são “disciplinadas” com palmadinhas, mas sim espancadas e isso é explicado pelo escalonamento de “corrigir o comportamento” (Patterson, 1982): os pais começam a “disciplinar” com uma palmadinha, mas a criança desenvolve uma habituação até que uma palmadinha não vai mais fazer o efeito esperado pelos pais (ex.: a criança não vai parar o que está fazendo), até que é necessária a aplicação de mais força. Soma-se a isso o nível de estresse e nervosismo do pai/mãe no momento de agressão, o que pode intensificar a gravidade da agressão física na criança. Quando esse panorama é estimado em longo prazo, infelizmente podemos observar casos como o do garoto de oito anos que morreu ao ser espancado pelo pai em março de 2014 no Rio de Janeiro.[2].
Por fim, a agressão física pode fazer com que cesse naquele momento o comportamento indesejável da criança, mas não ensina qual seria o comportamento adequado – ou seja, não educa. Pelo contrário: a agressão ensina à criança que os problemas podem ser resolvidos com o uso da violência. Ela entende, então, que também pode começar a usar a agressividade com os pais, colegas e professores. Além da dor física, a punição corporal pode provocar consequências em longo prazo, como dificuldades de aprendizagem, problemas de comportamento e de socialização, problemas de saúde, além de outros.
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Agressão contra indivíduos já não é proibido? Por que precisa de mais uma lei?
Em tese é proibido, mas no Brasil precisamos de políticas públicas específicas quando se é observado que tal direito não é respeitado. Um exemplo disso é a Lei Maria da Penha – no mesmo sentido, não é tolerável agressões a indivíduos, mas a violência contra a mulher era (e ainda é) banalizada no Brasil, sendo que o estabelecimento dessa lei auxiliou a promover ações do poder público de prevenção e combate à violência, estimulou as denúncias e promoveu campanhas de conscientização para a população, e aos poucos vamos garantindo que os direitos humanos sejam respeitados.
A lei para banir o castigo corporal contra crianças já foi adotada por 37 países, sendo a Suécia a primeira a aderir (1979) e Malta a mais recente (2014). Os resultados obtidos até agora como na Suécia, por exemplo, indicam uma diminuição na taxa de mortalidade infantil por “acidentes disciplinares”, bem como diminuição nas taxas de crime juvenil e em gastos com intervenções assistenciais.
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Campanhas educativas e diálogo são suficientes para mudar a cultura. Uma lei não é necessária.
Há casos específicos, como o do menino Bernardo, que somente campanhas e diálogo não são suficientes. São importantes e devem ser constantes na mídia e em locais de fácil acesso público. No entanto, mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente (Artigo 5º) estabelecendo claramente que nenhuma criança deve ser tratada com violência, a prática de agressão do adulto à criança continua sendo frequente. Nesse sentido, é preciso que haja uma lei específica para que o Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes possa atuar nas irregularidades.
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Eu apanhei quando criança e sou uma pessoa bem sucedida e feliz. As palmadas que levei foram importantes para isso.
Esse é um dos argumentos mais utilizados quando se discute esse PL, e o principal problema é que envolve uma opinião pessoal. Vamos aos dados científicos: uma pesquisa que descreve 20 anos de estudo no tema do castigo corporal contra crianças ao redor do mundo identificou que existe uma associação entre ter sofrido castigos corporais na infância e o fato de se ter problemas na vida adulta, como: comportamentos agressivos, dificuldades de aprendizagem, atos infracionais e violência entre parceiros conjugais (Durrant & Ensom, 2012). Outro estudo que pretendeu destacar a relação entre a violência doméstica e a violência escolar verificou que no caso de alunos que apresentam comportamentos agressivos na escola havia histórico de exposição à violência no ambiente familiar, destacando que a exposição à violência doméstica é fator associado à ocorrência de intimidação nas escolas (Williams & Stelko-Pereira, 2008). Isso nos mostra que ter sofrido castigo corporal é um fator de risco importante para outros problemas na vida adulta.
Se, entretanto, uma pessoa se considera feliz e bem-sucedida, mesmo com um histórico de castigo corporal, ela teve sorte de possuir um número suficiente de fatores de proteção que a auxiliou a minimizar os efeitos de tal histórico, como por exemplo: ter nascido em uma família de renda e escolaridade satisfatória, ter crescido em uma comunidade de baixa vulnerabilidade, ter tido outros modelos adequados (professores, colegas, etc). Esse fenômeno se chama resiliência: apesar de um histórico de maus-tratos, a pessoa consegue se desenvolver e ser bem-sucedida na vida adulta – o que não significa que as cicatrizes dos maus-tratos foram eliminadas da sua vida.
Aqui sugerimos que as pessoas que “apanharam” na infância tentem se lembrar: era bom apanhar? Você aprendeu algo com isso? (Vale lembrar que medo não é sinônimo de respeito nem aprendizado). Então por que fazer isso com seu filho(a), se existem outros métodos eficientes para educar sem o uso de agressão física?
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Um projeto de lei desse tipo não tem sentido, pois é de difícil fiscalização.
Assim como em outros países a implantação foi possível, no Brasil também pode ser. O processo pode ser lento, mas com o apoio da lei, caso seja aprovada, bem como de campanhas de sensibilização – inclusive para a denúncia de suspeitas de caso –e capacitação continuada dos profissionais do sistema jurídico, de saúde, educação e segurança pública, a mudança cultural poderá ser observada e a fiscalização fará parte do cotidiano de todos.
6. Com o problema da superlotação das cadeias, o que será feito se essa lei for colocar todos os pais e responsáveis na cadeia por baterem em seus filhos?
A lei não tem como objetivo condenar ou perseguir os pais e responsáveis, mesmo porque a maioria dos pais brasileiros ainda afirma usar o castigo corporal como prática disciplinar. A lei visa melhorar a qualidade das estruturas de apoio e atenção aos pais para que possam educar seus filhos de forma não violenta, bem como estimular políticas públicas como programas de capacitação a pais para orientação sobre práticas educativas positivas.
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A mídia traz informação necessária sobre o Projeto de Lei.
A mídia tem um papel importante na divulgação de leis e projetos de leis, quando promove debates e discussões, informando a população e auxiliando a desmistificar conceitos propagados pelo senso comum, como os descritos anteriormente. Por outro lado, uma mídia que não se pauta em evidências, que não busca informação com especialistas e pesquisadores da área, pode contribuir com a propagação de conceitos inadequados, reforçando-os ainda mais. Um exemplo disso seria o artigo recente publicado na Veja online por Rodrigo Constantino[3], dizendo que os autores do PL em questão “São filhotes de Skinner, os “educadores” sociais que vão impor, de cima para baixo, as regras da “boa” educação”. Tal visão pejorativa de B. F. Skinner é no mínimo anacrônica, pois ainda que o jornalista não seja um defensor do mesmo, é inegável a contribuição desse psicólogo e pensador americano para o que sabemos sobre a aprendizagem humana, educação à distância e psicoterapia (comportamental e cognitivo-comportamental).
É verdade que Skinner (1953/2003) pontuou as desvantagens do uso da punição:
“O uso da força como um tipo de controle tem desvantagens óbvias. Geralmente requer a atenção contínua do controlador (…). Gera fortes disposições emocionais para contra-atacar. Não pode ser aplicada a todas as formas de comportamento; as algemas restringem parte da fúria de um homem, mas não toda. Não é eficaz sobre o comportamento no nível privado, como se sugere ao dizer que não se pode aprisionar os pensamentos de um homem. (…)” (p.345).
Assim, acreditamos que o propósito de tais autores do PL não é “impor de cima para baixo as regras da boa educação”, mas sim estabelecer diretrizes sobre o modo de disciplinar as crianças com base em pesquisas científicas. A prova que a discussão dessa lei é difícil – e não está sendo imposta – está no tempo em que tramita no Congresso: desde 2003.
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É melhor que meu/minha filho(a) apanhe hoje de mim do que no futuro da polícia.
De acordo com a literatura, atos infracionais de jovens estão associados a maus-tratos na infância e não o contrário, ou seja: um adolescente terá mais chances de apanhar da polícia por um delito se seus pais o tiverem disciplinado com agressões físicas.
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Qual seria a maneira de educar as crianças, senão com tapas, palmadas, etc?
A resposta é complexa, pois o que os pais e mães pensam a respeito dos comportamentos de seus filhos (metaparentagem), bem como a forma como se relacionam com eles, influenciam sobremaneira a forma como irão ou não se engajar em práticas educativas que possam promover o desenvolvimento saudável de seus filhos. A parentagem positiva envolve práticas parentais que quando utilizadas, diminuem a probabilidade dos filhos se engajarem em comportamentos inadequados. Um exemplo de prática parental positiva seria valorizar os comportamentos adequados, e isso não significa dar presentes ou outros objetos, mas sim utilizar de elogios, atenção (olhar nos olhos da criança enquanto ela fala com você), afeto, etc. quando estiverem se comportando de maneira correta. Assim, consegue-se evitar que a criança se comporte de maneira inadequada como forma de chamar a atenção, o que frequentemente acontece. Para isso, é importante estar atento ao que acontece antes dos comportamentos da criança (antecedentes), o comportamento em si, a fim de modelar e praticá-lo repetidas vezes; bem como às consequências de tal comportamento. Existe uma vasta literatura referente a pesquisas baseadas em evidências sobre como educar os filhos de maneira adequada, é só ter interesse e força de vontade para aplicar.
Agora nós temos uma pergunta:
Será que, se esse projeto virar mesmo lei, será respeitado de fato?
Bem, o Brasil é o país das leis. Todos sabemos que muitas leis aprovadas e promulgadas ficaram só no papel. Nesse sentido, é importante que a aprovação sirva de estímulo para que sejam desenvolvidos programas universais de capacitação de pais sobre como educar seus filhos sem o uso da violência, como foi observado em outros países que adotaram leis nesse sentido e conseguiram obter mudanças para uma cultura de paz. Um exemplo de programa universal é o “ACT”, desenvolvido pela Associação Americana de Psicologia, e sua versão adaptada para o Brasil está sendo avaliada por duas Universidades brasileiras (UFSCAR/Laprev e USP-Ribeirão Preto). Tal programa visa auxiliar os pais por meio da discussão de temas relacionados à infância e desenvolvimento infantil, como lidar com comportamentos inadequados de seus filhos, utilizando-se de estratégias de parentagem positiva.
Sugestões de textos para consulta
D’Affonseca, S. M. & Williams, L. C. A. (2013). Metaparentagem: uma nova possibilidade de avaliar a parentagem. Psicologia em estudo, 18 (1), 83-92.
Durrant, J. & Ensom, R. (2012). Physical punishment of children: Lessons from 20 years of research. Canadian Medical Association Journal, 184, 1373-1377.
Felitti, V. J.; Anda, R. F.; Nordenberg, D.; Williamson, D. F.; Spitz, A. M.; Edwards, V.; Koss, M. P. & Marks, J. S. (1998). Relationship of childhood abuse and household dysfunction to many of the leading causes of death in adults: The Adverse Childhood Experiences (ACE) study. American Journal of Preventive Medicine, 14(4), 245-258.
Patterson, G. R. (1982). Coercive family process. Eugene, OR: Castalia.
Santini, P. M. & Williams, L. C. A. (2011). Castigo corporal contra crianças: O que podemos fazer para mudar essa realidade? In: C.V.B. B. Pessoa; C. E. Costa & M. F. Benvenuti (Orgs.), Comportamento em Foco (pp. 603-612). São Paulo: ABPMC. Disponível em: http://abpmc.org.br/site/comportamento-em-foco/.
Skinner, B. F. (2003). Ciência e Comportamento Humano. (J. C. Todorov & R. Azzi, Trads.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1953).
Williams, L.C.A. & Stelko-Pereira, A. C. (2008). A associação entre violência doméstica e violência escolar: Uma análise preliminar. Educação: Teoria e Prática, 18(30), 25-35.
Referências
[1] Santini, P. M. & Williams, L. C. A. (2011).Castigo corporal contra crianças: O que podemos fazer para mudar essa realidade? In: C.V.B. B. Pessoa; C. E. Costa & M. F. Benvenuti (Orgs.),Comportamento em Foco (pp. 603-612). São Paulo: ABPMC. Disponível em: http://abpmc.org.br/site/comportamento-em-foco/.
[2] http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,menino-de-8-anos-e-espancado-ate-a-morte-pelo-pai-para-andar-como-homem,1137536,0.htm
[3] http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/lei-da-palmada-filhotes-de-skinner-ou-um-recado-a-xuxa/
Paolla Magioni Santini e Sheila Prado Soma são doutorandas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSCar e pesquisadoras do Laboratório de Análise e Prevenção à Violência (Laprev).
Lúcia C. A. Williams é Professora Titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (Laprev) e Pesquisadora do CNPq.
Fonte: blog LAPREV OPINA…
SOBRE LAPREV
O Laprev iniciou suas atividades em 1998 e pretende ser um núcleo gerador de pesquisas que contribuam para uma melhor compreensão do fenômeno da violência em geral, e, em específico, da violência intrafamiliar e violência na escola e que desenvolvam projetos de intervenção com vítimas de violência e/ou agressores (sejam eles mulheres, crianças/adolescentes ou homens) e de prevenção na área de violência intrafamiliar e violência na escola. Saiba mais sobre o Laprev.
Foto: Cida Alves, São Carlos, 13 de janeiro de 2012