21 de ago. de 2020

O direito de ser criança roubado pela violência sexual e pelo medo - Maris Assis, Diário da Manhã

 

Presentes, balões e mensagens de anônimos foram entregues no hospital onde menina de 10 anos ficou internada. Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo


O bom de ser criança é ter a leveza nos pensamentos, a diversão na mente e um sorriso presente. É ter a oportunidade de crescer ouvindo histórias, cultivando sonhos e momentos, preocupando apenas com os ralados nos joelhos. Tudo isso recebendo muito amor, educação, cuidado, carinho e principalmente respeito. Entretanto, a realidade é que muitas crianças perdem de maneira muito precoce o direito de serem crianças. Em muitos casos, por serem vítimas de violência sexual.

O caso da capixaba de 10 anos, que chocou o país, é um exemplo. A menina do Espírito Santos, viu sua infância ser impedida aos 6 anos quando a pessoa que ela tratava como tio começou a abusar sexualmente dela. Os abusos, por conta das ameaças que eram feitas por ele, duraram até a última semana quando, após o teste de gravidez feito por exame de sangue dar positivo, a criança confessou a violência sexual que era submetida à assistente social e ao médico que acompanharam o caso.

Casos como o dela são recorrentes em nosso país. De acordo com o anuário brasileiro de segurança pública de 2019, a cada hora quatro meninas de até 13 anos são vítimas de violência sexual no Brasil. Além disso, segundo dados oficiais do país, seis meninas, com faixa etária de 10 a 14 anos, que engravidaram após serem estupradas, são internadas diariamente para fazerem aborto no território nacional. Dados tabulados pela BBC news Brasil, no sistema de informações hospitalares do SUS, mostram que 642 internações foram registradas só em 2020.  

Ademais, dados do relatório do disque 100 de 2019 mostram que tanto a Negligência como a Violência Sexual são cometidas, na maioria dos casos, na casa da vítima (56% e 45%, respectivamente) ou na casa do suspeito (19% e 28%, respectivamente). Na violação com negligência, a mãe figura como a suspeita em 56% das denúncias. Nos casos de Violência Sexual, pais e padrastos representam 40% dos suspeitos. Isso significa que a maioria das crianças e adolescentes no Brasil sofrem esse tipo de violência dentro da própria casa, por pessoas pelo qual possuem vínculos afetivos.

Essas informações apresentadas representam a realidade de muitas crianças e adolescentes no Brasil, como gera muitas dúvidas a população brasileira. Por que muitas crianças omitem a violência sexual? Como ela é conduzida nesses tipos de caso? O que a lei fala? Como prevenir esse tipo de situação? Como denunciar? Esses são alguns dos vários questionamentos que são feitos diariamente.

A causa da omissão por ser vítima de violência sexual; é o medo

A menina do Espírito Santo tinha 10 anos quando decidiu contar a violência que vivenciava desde os 6 anos. O motivo segundo ela era as ameaças que eram proferidas pelo tio, cujo dizia que caso a criança contasse a alguém, ele mataria o avô dela. O medo é um dos principais motivos para uma vítima não denunciar o caso de abuso sexual.

Raiane dos Santos, de 24 anos, relembra momentos dolorosos de quando sofria abuso pelo próprio padrasto. “Eu tinha cinco anos de idade e morava na roça com a minha avó. Meu padrasto tinha muito ciúmes de mim e eu chamava o de pai. Um dia ele chegou de uma viagem e eu lembro como se fosse a primeira vez do primeiro toque. Eu estava dormindo e eu senti uma mão fria sobre o meu corpo. A cena até hoje eu lembro e dá vontade de vomitar, me dá raiva, enjoo ”, relata Raiane que foi vítima de abuso sexual durante anos pela pessoa que ela considerava como pai. A jovem ainda conta que o medo de perder quem mais amava era o principal motivo para não denunciar. “Os abusos foram acontecendo com frequência e quando eu falava que eu ia denunciar, falar pra minha vó, ele falava que ia me matar e matar todo mundo quando estivesse dormindo. Aquilo eu tinha muito medo! ”.

Os abusos constantes faziam com que Raiane fosse uma criança diferente, instável. “Na sala de aula eu era inquieta. Nunca tinha amizade com ninguém, tinha dia que eu chegava sorrindo, tinha dia que eu tava chorando. Do nada eu começava a chorar e eu chorava porque pensava -meu Deus! Quando chegar em casa será a mesma coisa! ”, diz a jovem.

Cida Alves, psicóloga e doutora em educação, trabalha com o acompanhamento de vítimas de violência na saúde pública de Goiânia há 23 anos. A psicóloga comenta que o caso de Raiane é uma história que se repete entre muitas crianças e demonstra aversão ao questionamento do porque as vítimas não contaram antes.

Cida comenta sobre um dos casos marcantes que passaram por ela durante os 23 anos de atuação. Ela conta sobre o caso de duas garotas que vieram da Bahia e que foram abusadas sistematicamente pelo padrasto. “Elas eram pequenininhas e de uma inteligência enorme!” , relembra a psicóloga. As meninas relataram que eram ameaçadas e violadas constantemente pelo padrasto. “Olha, não conta pra ninguém não! Se vocês contarem, eu mato a mãe de vocês!” , ameaçava o autor.

“Elas suportaram aquilo morrendo de medo de que a ameaça fosse cumprida, até que um dia elas não conseguiram suportar tanta dor e contaram. O padrasto matou a mãe com várias facadas. ”, afirma Cida. Com isso, a psicóloga enfatiza a importância de as pessoas pararem de questionar o porquê das crianças não contarem antes. “As crianças não contaram antes porque estão com medo, porque são ameaçadas, porque estão confusas, porque geralmente quem as abusa são pessoas ligadas a própria família, pessoas que muitas vezes são aquelas que mantém a casa, que cuida da família, e elas sabem do peso que terão se elas saírem desse cenário. ”, explica a profissional.  

A justiça pela criança

Mayara Batista Braga, Defensora Pública do Núcleo de Defensoria Pública Especializadas em Infância e Juventude de Goiânia há 3 anos, explica ao Diário da Manhã como funciona o processo jurídico diante ao caso de violência contra crianças e adolescentes. “Quando a gente trabalha nessa perspectiva de atendimento à criança vítima de violência, sendo ela como um todo, a gente fala que existe várias pautas de entrada ”, explica a Mayara.

Ela esclarece que a denúncia pode chegar através da Defensoria Pública, conselho tutelar, pela escola que muitas vezes identifica os sinais de violência sendo ela física ou sexual, pelo Disk 100 que é o canal de denúncias anônimas, e pela Polícia Militar. “Existem vários órgãos dentro dessa rede de Sistema dos Direitos e Garantias da Criança e Adolescente, em que todos esses podem ser a porta de entrada para a criança junto com a família vai procurar”, diz a defensora.

Mayara explica que logo após, a justiça percorre a situação em dois eixos: a de responsabilização do agressor e o eixo de proteção da vítima. Para a defensora, o grande desafio é conseguir dialogar entre os órgãos e conseguir estabelecer um fluxo único para que a criança receba um atendimento especializado integral, sendo que para isso ela precisa de um atendimento especializado a um centro de saúde para as devidas precauções como risco de morte, gravidez, doenças. A partir disso, ela é encaminhada para a delegacia para registro de ocorrência, realizar o corpo de delito sobre o acompanhamento da assistente social que passa a observar a criança e a família para verificar se o âmbito familiar é considerável para o bem-estar daquela criança.

A defensora afirma que toda essa situação pode ser bastante dolorosa para a criança e que, para tentar amenizar essa situação, cabe a justiça seguir todos os procedimentos estabelecidos pela Lei n° 13.431/7, de 4 de abril de 2017 onde está determinado nos artigos 7º e 10º respectivamente, que a escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade e que a escuta o depoimento especial têm que ser realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência.

No demais, Mayara comenta a importância de todo o processo ser mantido em sigilo, protegendo a integridade moral e física da criança como rege o artigo 2° das disposições gerais da Lei n° 13.431/7 –  “A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha.”

A psicóloga Cida Alves comenta também sobre a importância de haver um sigilo. Para ela, a partir do momento que terceiros ficam sabendo do caso da vítima, a sociedade passa a enxerga-la somente como uma vítima. “Quanto mais pessoas ficam sabendo, mais ela passa ser tratada a partir daquela experiência”, afirma a profissional. Ela alega que a criança pode ficar ainda mais constrangida perante a essa situação que lhe foi imposta.

A criança e o direito à vida

A partir do momento que uma criança é vítima de abuso sexual, ela já corre um grande risco de vida devido às complicações que tal ato pode ocasionar fisicamente. Quando a criança engravida, ela corre um risco ainda maior, afinal, biologicamente falando a criança não tem condições físicas e muitos menos psicológica para manter uma gravidez por um período de 9 meses.

A Constituição Federal brasileira permite o aborto em três casos. Quando há má formação do feto, risco de vida à gestante e em casos de violência sexual.

A criança vítima de abuso no caso, segundo informações de profissionais da saúde e perante a justiça, se encaixa em duas situações: risco de vida e violência sexual.

Art 227 da Constituição ordena que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Com base nisso, a pessoa que estiver contra e proliferar o ódio, o desrespeito e a ofensa à criança e ao adolescente em qualquer situação, deve estar ciente que está cometendo um crime constitucional e que o comportamento pode sujeitar a punições judiciárias.

A importância da família e da educação para a prevenção do abuso sexual

Para a Psicóloga Cida Alves, ter um bom vínculo familiar é essencial para medidas protetivas contra o abuso sexual infantil. Segundo ela, estabelecer um vínculo de confiança entre pais e filhos é importante para que a criança tenha segurança de que pode contar qualquer situação sem medo de ser julgada. Em relação a políticas, ações educacionais voltadas a prevenção do abuso.

A psicóloga como doutora em educação fala que é importante trabalhar no autoconhecimento da criança com relação aos direitos e ao corpo. Para que ela futuramente esteja ciente do que é um carinho ou um ato de abuso para que não se cale e fale para os seus responsáveis para haver uma intervenção judicial. 


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