Bolsonaro ergue cloroquina para apoiadores - FOTO:
Reprodução/Facebook
A
cultura fascista (STANLEY, 2018) busca promover
uma identificação total do individuo com a propaganda (mentira contada mil
vezes) disseminada pelo “Líder”. Todavia, a propaganda não cresce em terreno
infértil, ela se enraíza em alguma crença que é constitutiva da identidade do sujeito.
Do ponto de vista subjetivo, o terreno fértil para essa cultura são as pessoas
que apresentam uma elevada rigidez de pensamento e que se apegam piamente ao julgamento
externo para se valorar como indivíduo. A desconstrução de uma crença basilar
de uma identidade é vivenciada por essas pessoas como um ataque frontal ao seu
eu ideal (homem forte, mulher escolhida, portador do bem, ser superior aos
demais, dentre outros exemplos).
A morte do
senhor Angel Spotorno é mais um triste e fatal
exemplo da dificuldade que alguns sujeitos têm de enfrentar suas autoverdades.
Angel Spotorno tinha 74 anos e como muitos macristas fanáticos promoveu
campanhas contra as medidas de isolamento argumentando que elas seriam “uma
tentativa do governo de Alberto Fernández de reinstalar o comunismo e atentar
contra a liberdade das pessoas”. De acordo com o relato de sua prima Marita
Riera, “dos 90 dias que passamos entre o início da quarentena e a sua morte,
creio que ele passou ao menos 85 fora de casa”.
Ángel Spotorno
foi encontrado morto em seu apartamento por uma equipe médica depois que sua filha
acionou o serviço de emergência por que seu pai não atendia as chamadas do interfone.
A investigação de óbito realizada pela equipe de legistas concluiu que sua
morte foi causada pelo coronavírus. Alguns familiares acreditam que o
aposentado escondeu os sintomas para não ter que admitir que estava com a
doença.
Trago essa triste história para colocar em questão outra
crença que circula por aí, que é a ideia de que quando a morte por Covid 19
deixar de ser uma estatística e assumir a forma de um rosto amado as pessoas vão
se conscientizar da gravidade da pandemia. Lo siento, ¡pero no! Sei que sou a portadora de
mais essa má noticia, entretanto tenho que trazê-la a vocês por que acredito
que ilusões não irão nos proteger. E para dar mais potência a minha argumentação,
trago duas histórias narradas por Hanna Arendt no livro “Eichmann em Jerusalém
– Um relato sobre a banalidade do mal”, que são duas potentes britadeiras de
ilusões. Vamos à primeira história:
“Reck-Malleczewen, que mencionei antes conta de uma mulher da
Baviera, uma ‘lider’ que fazia discursos animadores aos camponeses no verão de
1944. Ela parecia não perder muito tempo com ‘armas milagrosas’ e com a
vitória, encarando francamente a perspectiva de derrota, que não devia
preocupar nenhum bom alemão porque o Führer ‘em sua grande bondade preparou
para todo o povo alemão uma suave morte por asfixia de gás no caso da guerra
ter um final infeliz’. E o escritor acrescenta: ‘Oh, não, não estou imaginando
coisas, essa bela dama não é uma miragem, eu a vi com meus próprios olhos: uma
mulher de pele amarela beirando os quarenta, com olhos enlouquecidos [...] E o
que aconteceu? Os camponeses bávaros pelo menos a jogaram no lago local para
esfriar sua entusiasmada prontidão para a morte? Eles não fizeram nada disso.
Foram para casa, sacudindo as cabeças’” (ARENDT, 2007 pg. 126 a 127).
Segunda história:
“Essa história é contada pelo conde Hans von Lehnsdorff, em
seu Ostpreussisches Tagebch (1961). Ele havia ficado na cidade como médico para
cuidar de soldados feridos que não podiam ser evacuados e foi chamado a um dos
vastos centros de refugiados do campo, que já estava ocupado pelo Exército
Vermelho. Lá, foi perseguido por uma mulher que lhe mostrou uma veia varicosa
que tinha havia anos e que queria tratar agora, porque tinha tempo. ‘Tentei
explicar que seria mais importante para ela sair de Königsberg e deixar o
tratamento para depois. ‘Aonde você quer ir?’, perguntei a ela. Ela não sabe,
mas sabe que serão todos levados para o Reich. E acrescenta, supreendentemente:
‘Os russos nunca vão nos pegar. O Führer nunca vai permitir. Antes disso ele
nos pões na câmara de gás’, Olho em volta, disfarçando, mas ninguém parece
achar a frase fora do comum’. Dá para sentir que a história, como toda história
verdadeira, está incompleta. Devia haver uma outra voz, de preferência feminina
que, suspirando profundamente, respondesse: ‘E agora aquele gás tão bom e tão
caro é desperdiçado com judeus!” (ARENDT, 2007 pg. 127).
O senhor argentino e as damas alemãs, em tempos e lugares distintos, demonstram que mesmo ante ao risco eminente da morte algumas pessoas não conseguiram encarar a realidade dos fatos. Para manterem-se leais às crenças que sustentam suas distorcidas autoimagens e autoverdades, homens e mulheres com as características citadas no início desse texto colocam-se em risco e na atualidade, podem até morrer de Covid-19. Pobres mortos tão ricos de razões!
Cida
Alves – Goiânia, 26 de julho de 2020
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. Hannah – Hannah Arendt; tradução José Rubens Siqueira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. 1ª ed. – Porto Alegre [RS]: L&PM, 2018.
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