Presentes, balões e
mensagens de anônimos foram entregues no hospital onde menina de 10 anos ficou
internada. Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo
O bom de ser criança é ter a leveza
nos pensamentos, a diversão na mente e um sorriso presente. É ter a
oportunidade de crescer ouvindo histórias, cultivando sonhos e momentos,
preocupando apenas com os ralados nos joelhos. Tudo isso recebendo muito amor,
educação, cuidado, carinho e principalmente respeito. Entretanto, a realidade é
que muitas crianças perdem de maneira muito precoce o direito de serem
crianças. Em muitos casos, por serem vítimas de violência sexual.
O caso da capixaba de 10 anos, que
chocou o país, é um exemplo. A menina do Espírito Santos, viu sua infância ser
impedida aos 6 anos quando a pessoa que ela tratava como tio começou a
abusar sexualmente dela. Os abusos, por conta das ameaças
que eram feitas por ele, duraram até a última semana quando, após o teste
de gravidez feito por exame de sangue dar positivo, a
criança confessou a violência sexual que
era submetida à assistente social e ao médico que acompanharam o caso.
Casos como o dela são recorrentes em
nosso país. De acordo com o anuário brasileiro de segurança pública de 2019,
a cada hora quatro meninas de até 13 anos são
vítimas de violência sexual no Brasil. Além disso,
segundo dados oficiais do país, seis meninas, com faixa etária de 10 a
14 anos, que engravidaram após serem estupradas, são internadas diariamente
para fazerem aborto no território nacional. Dados tabulados pela BBC
news Brasil, no sistema de informações hospitalares do SUS,
mostram que 642 internações foram registradas só em 2020.
Ademais, dados do relatório do disque
100 de 2019 mostram que tanto a Negligência como
a Violência Sexual são cometidas, na maioria dos casos, na casa da vítima (56%
e 45%, respectivamente) ou na casa do suspeito (19% e 28%,
respectivamente). Na violação com negligência, a mãe figura como a suspeita
em 56% das denúncias. Nos casos de Violência Sexual, pais e
padrastos representam 40% dos suspeitos. Isso significa que a
maioria das crianças e adolescentes no Brasil sofrem esse tipo de violência
dentro da própria casa, por pessoas pelo qual possuem vínculos afetivos.
Essas informações apresentadas
representam a realidade de muitas crianças e adolescentes no Brasil,
como gera muitas dúvidas a população brasileira. Por que muitas crianças omitem
a violência sexual? Como ela é conduzida nesses tipos de caso? O que a lei
fala? Como prevenir esse tipo de situação? Como denunciar? Esses são alguns dos
vários questionamentos que são feitos diariamente.
A causa da omissão por ser vítima de violência
sexual; é o medo
A menina do Espírito Santo
tinha 10 anos quando decidiu contar a violência que
vivenciava desde os 6 anos. O motivo segundo ela era as ameaças que
eram proferidas pelo tio, cujo dizia que caso a criança contasse a alguém, ele
mataria o avô dela. O medo é um dos principais
motivos para uma vítima não denunciar o caso de abuso sexual.
Raiane dos Santos, de 24 anos,
relembra momentos dolorosos de quando sofria abuso pelo próprio
padrasto. “Eu tinha cinco anos de idade e morava na roça com a minha avó.
Meu padrasto tinha muito ciúmes de mim e eu chamava o de pai. Um dia ele chegou
de uma viagem e eu lembro como se fosse a primeira vez do primeiro toque. Eu
estava dormindo e eu senti uma mão fria sobre o meu corpo. A cena até hoje eu
lembro e dá vontade de vomitar, me dá raiva, enjoo ”, relata Raiane que
foi vítima de abuso sexual durante anos pela pessoa que ela considerava como
pai. A jovem ainda conta que o medo de perder quem mais amava era o principal
motivo para não denunciar. “Os abusos foram acontecendo com frequência e quando
eu falava que eu ia denunciar, falar pra minha vó, ele falava que ia me matar e
matar todo mundo quando estivesse dormindo. Aquilo eu tinha muito medo! ”.
Os abusos constantes faziam com
que Raiane fosse uma criança diferente, instável. “Na sala de
aula eu era inquieta. Nunca tinha amizade com ninguém, tinha dia que eu chegava
sorrindo, tinha dia que eu tava chorando. Do nada eu começava a chorar e eu
chorava porque pensava -meu Deus! Quando chegar em casa será a mesma coisa! ”,
diz a jovem.
Cida Alves, psicóloga e doutora em
educação, trabalha com o acompanhamento de vítimas de violência na
saúde pública de Goiânia há 23 anos. A psicóloga comenta que o caso de
Raiane é uma história que se repete entre muitas crianças e demonstra aversão
ao questionamento do porque as vítimas não contaram antes.
Cida comenta sobre um dos casos
marcantes que passaram por ela durante os 23 anos de atuação. Ela
conta sobre o caso de duas garotas que vieram da Bahia e que foram abusadas
sistematicamente pelo padrasto. “Elas eram pequenininhas e de uma inteligência
enorme!” , relembra a psicóloga. As meninas relataram que eram ameaçadas e
violadas constantemente pelo padrasto. “Olha, não conta pra ninguém não! Se
vocês contarem, eu mato a mãe de vocês!” , ameaçava o autor.
“Elas suportaram aquilo morrendo de
medo de que a ameaça fosse cumprida, até que um dia elas não conseguiram
suportar tanta dor e contaram. O padrasto matou a mãe com várias
facadas. ”, afirma Cida. Com isso, a psicóloga enfatiza a importância de as
pessoas pararem de questionar o porquê das crianças não contarem antes. “As
crianças não contaram antes porque estão com medo, porque são ameaçadas, porque
estão confusas, porque geralmente quem as abusa são pessoas ligadas a própria
família, pessoas que muitas vezes são aquelas que mantém a casa, que cuida da
família, e elas sabem do peso que terão se elas saírem desse cenário. ”,
explica a profissional.
A justiça pela criança
Mayara Batista Braga, Defensora
Pública do Núcleo de Defensoria Pública Especializadas em Infância e
Juventude de Goiânia há 3 anos, explica ao Diário da Manhã como
funciona o processo jurídico diante ao caso de violência contra crianças e
adolescentes. “Quando a gente trabalha nessa perspectiva de atendimento à
criança vítima de violência, sendo ela como um todo, a gente fala que existe
várias pautas de entrada ”, explica a Mayara.
Ela esclarece que a denúncia pode
chegar através da Defensoria Pública, conselho tutelar, pela escola que muitas
vezes identifica os sinais de violência sendo ela física ou sexual, pelo Disk
100 que é o canal de denúncias anônimas, e pela Polícia Militar.
“Existem vários órgãos dentro dessa rede de Sistema dos Direitos e Garantias da
Criança e Adolescente, em que todos esses podem ser a porta de entrada para a
criança junto com a família vai procurar”, diz a defensora.
Mayara explica que logo após, a
justiça percorre a situação em dois eixos: a de responsabilização do agressor e
o eixo de proteção da vítima. Para a defensora, o grande desafio é
conseguir dialogar entre os órgãos e conseguir estabelecer um fluxo único para
que a criança receba um atendimento especializado integral, sendo que para isso
ela precisa de um atendimento especializado a um centro de saúde para as
devidas precauções como risco de morte, gravidez, doenças. A partir
disso, ela é encaminhada para a delegacia para registro de ocorrência, realizar
o corpo de delito sobre o acompanhamento da assistente social que passa a
observar a criança e a família para verificar se o âmbito familiar é
considerável para o bem-estar daquela criança.
A defensora afirma que toda essa
situação pode ser bastante dolorosa para a criança e que, para tentar amenizar
essa situação, cabe a justiça seguir todos os procedimentos estabelecidos
pela Lei n° 13.431/7, de 4 de abril de 2017 onde está determinado
nos artigos 7º e 10º respectivamente, que a escuta
especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com
criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato
estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade e que a escuta
o depoimento especial têm que ser realizados em local apropriado e acolhedor,
com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do
adolescente vítima ou testemunha de violência.
No demais, Mayara comenta a
importância de todo o processo ser mantido em sigilo, protegendo a integridade
moral e física da criança como rege o artigo 2° das disposições gerais
da Lei n° 13.431/7 – “A criança e o adolescente gozam dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a
proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e
preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e
social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou
testemunha.”
A psicóloga Cida Alves comenta
também sobre a importância de haver um sigilo. Para ela, a partir do momento
que terceiros ficam sabendo do caso da vítima, a sociedade passa a enxerga-la
somente como uma vítima. “Quanto mais pessoas ficam sabendo, mais ela passa ser
tratada a partir daquela experiência”, afirma a profissional. Ela alega que a
criança pode ficar ainda mais constrangida perante a essa situação que lhe foi
imposta.
A criança e o direito à vida
A partir do momento que uma criança é
vítima de abuso sexual, ela já corre um grande risco de vida devido às
complicações que tal ato pode ocasionar fisicamente. Quando a criança
engravida, ela corre um risco ainda maior, afinal, biologicamente falando
a criança não tem condições físicas e muitos menos psicológica para
manter uma gravidez por um período de 9 meses.
A Constituição Federal brasileira
permite o aborto em três casos. Quando há má formação do feto, risco de vida à
gestante e em casos de violência sexual.
A criança vítima de abuso no caso,
segundo informações de profissionais da saúde e perante a justiça, se encaixa
em duas situações: risco de vida e violência sexual.
O Art 227 da Constituição ordena
que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Com base nisso, a pessoa que estiver
contra e proliferar o ódio, o desrespeito e a ofensa à criança e ao
adolescente em qualquer situação, deve estar ciente que está cometendo
um crime constitucional e que o comportamento pode sujeitar a
punições judiciárias.
A importância da família e da educação para a
prevenção do abuso sexual
Para a Psicóloga Cida Alves, ter um
bom vínculo familiar é essencial para medidas protetivas contra o abuso sexual
infantil. Segundo ela, estabelecer um vínculo de confiança entre pais e filhos
é importante para que a criança tenha segurança de que pode contar qualquer situação
sem medo de ser julgada. Em relação a políticas, ações educacionais voltadas a
prevenção do abuso.
A psicóloga como doutora em educação
fala que é importante trabalhar no autoconhecimento da criança com relação aos
direitos e ao corpo. Para que ela futuramente esteja ciente do que é um carinho
ou um ato de abuso para que não se cale e fale para os seus responsáveis para
haver uma intervenção judicial.