Se forçar alguém a tomar chá parece errado (ou até absurdo)
em qualquer uma destas circunstâncias, o mesmo se aplica ao consentimento
sexual. Contudo, a metáfora apresenta muitos limites: desde logo porque
qualquer pressão social para consumir chá não é remotamente equivalente à
pressão para a prática sexual.
O
consentimento é um conceito crucial nos discursos sobre violência sexual que
proliferaram nos últimos anos. Cada vez mais compreendido como necessariamente
entusiasta, numa abordagem afirmativa de consentimento que ultrapassa a mera
premissa de que “não significa não”, o consentimento sexual é objecto de múltiplas
campanhas de prevenção e sensibilização. Esta centralidade tem sido vertida
também no enquadramento jurídico-criminal da
violência sexual (veja-se, por exemplo, o papel cimeiro
do consentimento sexual na Convenção de Istambul,
de que Portugal é signatário). É, por isso, vital discutir o conceito,
escrutinar o seu alcance e implicações. Para tal, as campanhas de
sensibilização constituem excelentes ferramentas de análise.
Uma
das mais populares campanhas sobre consentimento, intitulada Consentimento é Tudo, foi lançada pela
Polícia de Thames Valley, em Inglaterra, em 2015. O vídeo da campanha,
amplamente disseminado, é simples e eficaz. O consentimento sexual – e os
requisitos para que se verifique – são abordados a partir da metáfora do chá:
perguntar a alguém se quer chá pode gerar diferentes respostas, e apenas se e
quando a resposta é afirmativa (não necessariamente verbal), e expressa de
forma inequívoca e entusiasta, podemos então servir o chá. Em qualquer outro
cenário – seja a resposta negativa, a incapacidade para responder ou a
expressão de relutância –, a mensagem é clara: “Não forcem a pessoa a beber
chá”. “E se a pessoa disser: ‘Não, obrigada’, então não lhe faça chá. De todo!
Não lhe faça chá! Não lhe faça chá, nem se chateie porque a pessoa não quer
chá. A pessoa não quer chá, ok?” Mesmo que a pessoa tenha tomado
chá connosco antes, mesmo que tenha inicialmente dito que sim e de seguida
mudado de ideias. Quem está inconsciente não pode consentir (em beber chá ou
ter sexo), lembra o vídeo: “Se a pessoa estiver inconsciente, não lhe faça
chá”.
Em todos estes paralelos, a
mensagem é robusta e eficiente. Inequivocamente, ninguém deve ser coagido,
forçado, pressionado, a qualquer acto ou relação sexual (ou a tomar chá). Ninguém deve
sofrer repercussões por recusar ter sexo (ou recusar beber chá). Da mesma forma, o consentimento
sexual é necessariamente específico a cada acto sexual e revogável a todo o
momento (ter iniciado qualquer actividade sexual jamais implica o dever de a
prosseguir). É também necessariamente livre, voluntário e explícito
(ambiguidade, medo ou apreensão não significam consentimento). O consentimento
– seja sexual, seja para beber chá – nunca deve ser pressuposto, em qualquer
contexto ou dinâmica relacional. Estar numa relação romântica, ter tido uma
relação sexual anterior (ou ter bebido chá com alguém) jamais implicam
consentimento futuro, para qualquer uma das actividades. Em todos estes casos a
simetria funciona: se forçar alguém a tomar chá parece errado (ou até absurdo)
em qualquer uma destas circunstâncias, o mesmo se aplica ao consentimento
sexual. Até aqui, o consentimento é “tão simples quanto o chá”.
Contudo, a metáfora apresenta
muitos limites: desde logo, porque qualquer pressão social para consumir chá
não é remotamente equivalente à pressão para a prática sexual. Ainda que o chá
seja um símbolo da cultura britânica, dificilmente é comparável com uma cultura
saturada de imagens, representações e símbolos associados à sexualidade (ou,
com maior rigor, à pornografia, que ritualiza e maioritariamente promove uma
visualidade androcêntrica). Nem existe, quanto ao chá, uma dupla moral, que
penaliza as mulheres pelos mesmos comportamentos que aplaude nos homens: as mulheres
não são moralmente avaliadas por beberem chá, nem pela quantidade ou frequência
de chá que bebem. A dimensão genderizada da violência sexual é impossível de
captar através da metáfora escolhida e da animação simples do vídeo (além da
chávena, os desenhos que representam figuras humanas surgem sem corpo, género
ou qualquer outro marcador social, como a idade ou etnia, o que abstrai das
estruturais relações de poder que moldam a sexualidade). A analogia que preside
à campanha carece de contexto – do contexto específico de uma sociedade
pornificada e profundamente sexista.
Pensar o
consentimento desconsiderando as dinâmicas genderizadas da violência sexual
falha necessariamente. É impossível, com rigor, falar de coação ou
consentimento sexual sem que falemos também de género e sexismo. Só atendendo a
estes factores se compreende que, como escreveu N. Gavey, “dizer que uma larga percentagem de mulheres heterossexuais
pratica sexo indesejado ou actos sexuais indesejados é simultaneamente afirmar
o indefensável e afirmar o óbvio”. Só compreendendo as normas culturais em
torno da heterossexualidade – assente na visão do desejo masculino como
primário e predatório, colocando nas mulheres o ónus da resistência a tal
ímpeto alegadamente insaciável –, é possível compreender que o sexo indesejado
seja uma realidade rotineira para muitas mulheres. Realidade que não é
incompatível com o consentimento, tantas vezes resultante de pressões e
imperativos internalizados, como a ideia dominante de que o sexo é parte
integrante e necessária das relações românticas.
A mensagem da campanha deixa, por
isso, muito por dizer. Não apenas porque a analogia falha em múltiplas dimensões,
mas sobretudo porque o consentimento é manifestamente insuficiente. Ao
contrário da proposição basilar da campanha, o consentimento não é tudo.
A ideia de consentimento como
padrão para a ética sexual tem sido alvo de críticas nas últimas décadas, que
importa revisitar numa altura em que o consentimento surge tantas vezes
apresentado como ferramenta panaceia para a violência sexual. Muitas destas
críticas apontam o
carácter endémico e genderizado de violência sexual que o
consentimento não parece, por si só, capaz de resolver ou desmontar. Há também
críticas ao conceito de consentimento, cuja matriz invoca aceitação, concessão
e capitulação mais do que uma expressão entusiasta. Assim, escrevia C.
MacKinnon, influente feminista norte-americana e professora de
Direito, aludindo ao sentido comum de consentimento:
“Na
realidade social, onde é forjado o significado, sexo que é verdadeiramente
desejado ou querido ou acolhido nunca é rotulado como consentido. Não precisa
de ser; a sua mutualidade é expressa pelo entusiasmo. O que as mulheres fazem
quando querem ter sexo não é consentir. Sexo que as mulheres desejam nunca é
descrito por elas ou por qualquer outra pessoa como consensual. Ninguém diz,
‘nós tivemos uma noite excelente, ela (ou eu ou nós) consentimos’.
Concordo,
absolutamente, com MacKinnon. O sentido e o alcance do conceito de
consentimento está irremediavelmente circunscrito à realidade social onde é
forjado. Nesta realidade social, e apesar do destaque que a ideia de
consentimento afirmativo recebeu nos últimos anos, consentimento não traduz
mutualidade. Não é de consentimento que falamos, espontaneamente, quando nos
referimos a interacções sexuais pautadas pelo entusiasmo e pelo desejo
recíproco. A exigência de consentimento é imperativa, mas está longe de ser um
antídoto para a cultura de violência sexual que hoje persiste. O consentimento
sexual não desafia as dinâmicas genderizadas que naturalizam e relativizam a
violência. Enquanto não as desafiarmos, o consentimento não basta – é
certamente necessário, mas não é tudo.
Fonte:
Público, 9 de julho de 2020.
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