"A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou
nesta segunda-feira (27) a campanha Amazonia-te contra o genocídio dos povos indígenas pela inação do
governo federal contra a Covid-19 e 'a violação sistemática da legislação de
proteção ambiental e desmonte dos órgãos públicos, com atuação intencional do
governo para desregulamentar e ampliar – de forma ilegal – a atuação das
mineradoras, agronegócio, madeireiras e pecuaristas na região'." (Revista Fórum)
Leia
a carta na integra abaixo:
CARTA
AO POVO DE DEUS
Irmãs e
irmãos caríssimos em Cristo Jesus,
Povo de Deus
na Amazônia,
“Não tenha medo, cotinue a falar e não se cale, pois eu estou
contigo“ (At 18,9)
“Cristo
aponta para a Amazônia“ lembrava o Papa Paulo VI aos bispos da Amazônia por
ocasião de seu encontro em Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972, marco
indelével na história da Igreja desta grande região brasileira, habitada por
povos de culturas e tradições tão diferenciadas do outro Brasil.
Expressamos
nossa gratidão ao Deus da vida porque nestes 40 anos, não obstante nossas
fragilidades, nossa Igreja tem anunciado Jesus Cristo ressuscitado, caminho,
verdade e vida e tem marcado presença junto ao povo sofrido, sendo muitas vezes
a voz dos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros e migrantes,
nas periferias e em novos ambientes do centros urbanos animando as comunidades
na reivindicação do respeito pela sua história e religiosidade. É também a vida
destes povos, seu modo de viver, sua simplicidade, seu protagonismo, sua fé que
nos encantam! Não faltou o testemunho de entrega da própria vida até o
derramamento de sangue. Este testemunho nos anima, nos encoraja e nos
fortalece. São também protagonistas religiosos e religiosas, pastorais,
movimentos e serviços que tem sido uma força viva e atuante na realidade das
nossas comunidades.
Constatamos
avanços no campo social e político, com novos organismos de participação,
conselhos de políticas públicas, participação nas campanhas por leis mais
justas, aumento da consciência e engajamento na questão ecológica. No campo
econômico, cresce o consumo e o poder aquisitvo embora nem sempre acompanhado
do aumento da qualidade de vida. A vida na Amazônia continua sofrida.
Há
séculos os povos da Amazônia gemem e choram sob o peso de um modelo de
desenvolvimento que os oprime e exclui do “banquete da vida, para o qual todos
os homens e mulheres são igualmente convidados por Deus“ (SRS 39). A Igreja
ouve os gritos, às vezes desesperados, e se identifica com o seu clamor,
conhece o seu sofrimento. Mais ainda, a Igreja declara que “as alegrias e
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e angustias dos discípulos de Cristo“ (cf. GS 1).
As
decisões sobre o desenvolvimento da Amazônia sempre são tomadas a partir de
fora e visam unica e exclusivamente a exploração das riquezas naturais sem levar
em conta as legítimas aspirações dos povos desta região a uma verdadeira
justiça social. Quando Paulo VI declarava que “o desenvolvimento é o novo nome
da paz“ (PP 87), não pensava num “crescimentismo“ meramente econômico,
unilateral e excludente, mas convidava a todos os povos da terra a empenhar-se
por um mundo justo, fraterno e solidário, na perspectiva do Reino que Jesus
veio a anunciar “para que todos tenham vida“ (Jo 10,10).
Como
quarenta anos atrás, a Amazônia continua sendo considerada a “colônia“, mesmo
que abranja mais da metade do território nacional. Para a metrópole – Brasília,
o sudeste e o sul do País – Amazônia é apenas “província“, primeiro província
madeireira e mineradora, depois a última fronteira agrícola no intuito de
expandir o agronegócio até os confins deste delicado e complexo ecossistema,
único em todo o planeta. De uns anos para cá a “província“ recebeu mais um
rótulo, sem dúvida o mais desastroso, pois implicará a sua destruição
programada, haja visto o número de hidrelétricas projetadas para os próximos
anos: a Amazônia é declarada a província “energética“ do País. Sob a alegação
de gerar energia limpa se esconde a verdade de que mais florestas sucumbirão,
mais áreas, inclusive urbanas, serão inundadas, milhares de famílias serão
expulsas de suas terras ancestrais, mais aldeias indígenas diretamente
afetadas, mais lagos artificiais, podres e mortos, produzirão gases letais e se
tornarão viveiro propício para todo tipo de pragas e geradores de doenças
endêmicas.
A
história da Amazônia revela que foi sempre uma minoria que lucrava às custas da
pobreza da maioria e da depredação inescrupulosa das riquezas naturais da
região, dádiva divina para os povos que aqui vivem há milênios e os migrantes
que chegaram ao longo dos séculos passados.
Santarém 1972: Encarnação na Realidade e Evangelização Libertadora
Como já
em 1972, os bispos reunidos em Santarém de 2 a 6 de julho de 2012 não detectam
apenas os mecanismos perniciosos responsáveis pela miséria dos povos e a
devastação das florestas, mas os denunciam como responsáveis de gerar “ricos
cada vez mais ricos às custas e pobres cada vez mais pobres“ (João Paulo II,
Discurso inaugural de Puebla, 28 de janeiro de 1979) e de um meio-ambiente cada
vez mais deteriorado. O “lar“ (em grego “oikos“ – daí a palavra “ecologia“) que
Deus criou para todos nós não pode ser explorado até a exaustão, mas exige
cuidado, zelo, amor, também em vista das futuras gerações. Os cientistas
alertam sempre mais que a devastação da Amazônia terá consequências irreversíveis
para o clima do planeta e se torna assim uma ameaça à vida e sobrevivência de
toda a humanidade.
Em 1972
os bispos da Amazônia já identificaram graves feridas neste mundo de selvas e
águas que atingiram violentamente os povos originários e tradicionais da
região. Como 40 anos atrás, também hoje os bispos se entendem como mensageiros
dos povos da Amazônia, profetas que vivem numa grande proximidade com Deus e ao
mesmo tempo sintonizados com os acontecimentos históricos, homens de fé que
„vêm da grande tribulação“ (Ap 7,14). Nestes nossos tempos, as feridas se
tornaram chagas abertas que perpassam e sangram a Amazônia de fora a fora,
causando cada dia mais vítimas fatais.
As
prioridades da ação pastoral e evangelizadora apontadas em 1972 continuam atualíssimas.
Até hoje uma formação adequada à essa região para ministros ordenados, mas
também para leigas e leigos que dirigem as comunidades, é fundamental. Importa
encarnar a Igreja no chão concreto da Amazônia. Quem exerce um ministério,
ordenado ou não, participa do pastoreio de Jesus e está a serviço de seus
irmãos e irmãs e quer exercê-lo na simplicidade do lava-pés e numa proximidade
fraterna ao Povo de Deus.
As
Comunidades Cristãs ou Eclesiais de Base tão recomendadas no Documento Santarém
1972 são expressão de uma Igreja viva e comprometida. Como os bispos já
afirmaram em Manaus (2007), elas constituem um dom especial que Deus concedeu à
Igreja na Amazônia. São obra do Espírito Santo. O que o Documento de Aparecida
afirma, aplica-se de modo especial à Amazônia. As CEBs, diz o documento, “têm
sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé,
discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até
derramar o sangue, de muitos de seus membros” (DAp 178). As CEB’s são também
uma resposta válida e empolgante para o mundo urbano como resposta ao
individualismo e a superficialidade do consumismo. Nas CEBs se vive a dimensão
samaritana da compaixão ativa e interajuda, de um coração e mãos abertas para
quem sofre ou passa necessidade, mas também a dimensão profética de anunciar
continuamente a utopia do Reino e, ao mesmo tempo, denunciar todos os
mecanismos e estruturas que impedem a chegada do Reino. É exatamente esta
dimensão profética que gerou as e os mártires da Amazônia. As CEBs
constituem-se em família das famílias onde todos se conhecem e querem bem, mas
são também centros de oração e meditação da Palavra de Deus para nutrir a
mística profunda da vivência na proximidade de Deus. Ele mesmo se revelou como
um Deus-conosco e assegurou aos profetas, apóstolos, discípulas e discípulos:
“Eu estarei contigo“ (cf. Ex 3,14; Js 1,9; Jr 1,19; At 18,9-10). Afinal “se
Deus está conosco, quem será contra nós“ (Rom 8,31).
Santarém
1972 assume a questão indígena como causa de toda a Igreja na Amazônia. Lembra
que no mesmo ano por iniciativa dos bispos, mormente dos da Amazônia, foi
fundado o Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Os
bispos talvez não imaginavam quarenta anos atrás o imenso apoio que sua decisão
significava aos direitos e à sobrevivência de dezenas de povos indígenas na
região amazônica que, sem o empenho intransigente da Igreja, teriam
desaparecido. A presença solidária e o apoio incondicional à luta por seus
direitos foi fundamental para que hoje a maioria dos povos indígenas da região
tenha suas terras demarcadas. Foi também de enorme importância gerar uma
consciência de respeito e valorização dos povos, suas culturas e seus projetos
de “Bem Viver“. Dezenas de povos saíram do silêncio em que foram forçados a se
ocultar para sobreviver. Ressurgiram das cinzas e estão lutando pelos seus
direitos e suas terras. Alem disso a atuação corajosa dos missionários, selando
seu compromisso através do sangue derramado pela vida desses povos, propiciou o
surgimento de articulações e organizações dos povos indígenas, essenciais para
a conquista de seus direitos e sua autonomia.
Os
riscos de extermínio de vários grupos indígenas em estado de isolamento
voluntário, exige um renovado compromisso com a sobrevivência de milhares de
vidas e povos ameaçados de extinção.
Na perseverança salvareis vossas vidas (Lc 21,19)
Deparamo-nos
hoje com uma verdadeira enxurrada de grandes projetos que os Governos querem
implantar, seguindo a estratégia do “fato consumado“. Não há discussão, nem consulta
popular que merecesse este nome. Decide-se e executa-se. Oponentes são
criminalizados ou taxados de inimigos do progresso. Também os ribeirinhos,
seringueiros, quilombolas, e outros povos tradicionais sofrem pela falta de
reconhecimento suas terras.
A ética
na política prometida à nação e esperada pelo povo brasileiro cedeu lugar a uma
sequencia ininterrupta de escândalos de corrupção em todos os níveis
governamentais.
Somado
a estes desafios nos deparamos com a emergência do fenômeno urbano, com o
inchaço nas periferias das grandes cidade, exploração sexual, tráfico de
pessoas e de drogas, violência. Em vez de investimentos em políticas públicas
de saneamento básico, saúde, educação e segurança, o Estado prioriza políticas
compensatórias, apoia e incentiva o grande capital, investe na construção de
estádios monumentais e outras obras faraônicas.
“Podem
roubar-nos tudo, menos a esperança” (D. Pedro Casaldáliga). No caminho de
“Santarém”, novamente nos lançamos nas estradas e rios, nas aldeias e
quilombos, nos interiores e periferias das cidades, nos grandes centros urbanos
desta imensa Amazônia, abraçando a Missão que nos foi confiada, comprometidos
com toda a criação e na busca de sermos autênticas comunidades de fé
alimentadas pela Palavra e pela Eucaristia. Nesta hora da história o nosso
coração às vezes, se angustia por causa de tantas dificuldades que nos
desafiam, aparentemente insuperáveis; no entanto, continuamos a ser chamados e
enviados como missionários e profetas para alimentar a esperança, como âncora
firme e segura (cf Hb 6,19), de um mundo novo, inaugurado por Jesus Cristo
Crucificado e Ressuscitado.
Fonte: site oficial da CNBB