4 de mar. de 2020

Primeira Infância Livre de Violências - Viver Ciência da UFG entrevista a psicóloga Cida Alves




“As coisas que faço e experimento (DIÓTIMA, 2004), nas formações que ministro sobre o tema da violência física intrafamiliar me ensinaram que a aceitação dessa forma de violência, que brutaliza o contato corporal nas relações entre adultos e crianças, é construída por meio de um processo de embrutecimento da vítima. Para sobreviver emocionalmente às violências que invadem de forma definitiva e cotidiana a vida de uma pessoa, alguns mecanismos de defesa mentais são ativados, um deles caracterizado por certo entorpecimento, ou seja, o corpo passa por um processo de dessensibilização à dor e ao sofrimento.
 Se o embrutecimento é o que sustenta corporalmente a aceitação da violência física, acredito que um antídoto para essa deletéria aceitação é o desentorpecimento do corpo e da mente por meio de experiências estéticas que promovam prazer e sensibilidade. Foi por meio de minha experiência como formadora que sedimentei a tese desta pesquisa: os conhecimentos que advêm da corporeidade (sentidos, sensações e sentimentos) devem compor qualquer proposta formativa que envolva o tema da violência física e a educação de crianças”.

Alforria pelo Sensível, tese de Cida Alves

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 Assista a entrevista com a psicóloga Cida Alves no terceiro bloco do programa, a partir dos 18 minutos de exibição do vídeo.
 

De volta ao tema dos começos! Para falar sobre o estilo de escrita que adotei em minha tese e sobre a escolha da narrativa como o instrumento chave de minha investigação, tenho que retomar dois começos em minha vida. O primeiro começo diz respeito a minha formação estética. Por influência de minha cultura de origem – sou filha de nordestinos - aprendi muito cedo a tomar gosto pela música e pela dança. Mais tarde, sob a influência de alguns professores e religiosos, aproximei-me da poesia e dos contos. A dança, a música e as escrituras (poesias e prosas) promoveram em meu corpo de menina os momentos mais intensos de alegria, ternura e liberdade. 


Quem educa marca o corpo do outro, afirma Fátima Freire Dowbor (2008). E a arte, minha professora preferida de sensibilidade, marcou o meu corpo com sensações e sentimentos que me protegeram do embrutecimento e me consolaram da brutalidade do mundo adulto. Pelas artimanhas de sedução dessa bela e doce professora, aprendi a somar arte em quase todas as minhas atividades e tarefas acadêmicas. Assim, sem ter direito consciência do que fazia, incorporei à minha identidade de aluna a ideia de que aprender e ensinar tem alguma coisa a ver com o prazer que se sente ante o belo. 


O segundo começo diz respeito a uma resposta inesperada. Em 2001, por razão da necessidade de capacitar profissionais do serviço público municipal de Goiânia para o atendimento de crianças, adolescentes e mulheres em situação de violência, passei a atuar como formadora no tema da violência contra crianças e adolescentes. Uma de minhas tarefas era conceituar as tipologias de violência. Os participantes das formações que ministrava recebiam com relativa tranquilidade a exposição dos conceitos e as consequências da violência sexual, psicológica e negligência. Todavia, quando o tema das formações tratava da violência física, o clima mudava completamente, a participação e o interesse diminuíam e uma forte tensão e resistência imperava, pois, para a maioria dos participantes, a violência física moderada praticada na educação familiar era negada como violência. 


No intuito de abrandar as resistências sobre esse tema, lancei mão do antigo recurso de somar arte as minhas tarefas formativas. E para minha surpresa, o efeito foi inusitado. Contos como ‘Negrinha’ de Monteiro Lobato, trechos dos livros ‘Infância’ de Graciliano Ramos e ‘Meu pé de Laranja Lima’ de José Mauro de Vasconcellos exerciam um efeito incomum nas pessoas que participavam das formações que tratavam da violência física: elas ficavam mais silenciosas em um primeiro momento, ouviam a exposição com uma atenção quase resignada e, em alguns cursos, uma pessoa, visivelmente emocionada, compartilhava com o grupo uma situação de violência física que a marcou na infância. 


O amadurecimento de minha identidade como formadora imprimiu em mim uma convicção há muito defendida por Paulo Freire: ensinar exige estética e ética. ‘A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas’ (FREIRE, 1996, p.32). Para Zambrano (2008) a metáfora (corporificada na poesia) tem desempenhado na cultura uma função mais profunda, e anterior; ela é capaz de ‘definir uma realidade inabarcável pela razão, mas que propicia ser captada de outro modo’ (ZAMBRANO, 2008, p. 60).



As coisas que faço e experimento (DIÓTIMA, 2004), nas formações que ministro sobre o tema da violência física intrafamiliar me ensinaram que a aceitação dessa forma de violência, que brutaliza o contato corporal nas relações entre adultos e crianças, é construída por meio de um processo de embrutecimento da vítima. Para sobreviver emocionalmente às violências que invadem de forma definitiva e cotidiana a vida de uma pessoa, alguns mecanismos de defesa mentais são ativados, um deles caracterizado por certo entorpecimento, ou seja, o corpo passa por um processo de dessensibilização à dor e ao sofrimento.

Se o embrutecimento é o que sustenta corporalmente a aceitação da violência física, acredito que um antídoto para essa deletéria aceitação é o desentorpecimento do corpo e da mente por meio de experiências estéticas que promovam prazer e sensibilidade. Foi por meio de minha experiência como formadora que sedimentei a tese desta pesquisa: os conhecimentos que advêm da corporeidade (sentidos, sensações e sentimentos) devem compor qualquer proposta formativa que envolva o tema da violência física e a educação de crianças”.


(Fragmento da tese “ALFORRIA PELO SENSÍVEL – corporeidade da criança e a formação docente de autoria de Maria Aparecida Alves da Silva. Acesse a tese completa no AQUI).






04. Contato Físico | Transcrição em Português from Maria Farinha Filmes on Vimeo.

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