“As coisas que faço e experimento (DIÓTIMA, 2004), nas formações que ministro sobre o tema da violência física intrafamiliar me ensinaram que a aceitação dessa forma de violência, que brutaliza o contato corporal nas relações entre adultos e crianças, é construída por meio de um processo de embrutecimento da vítima. Para sobreviver emocionalmente às violências que invadem de forma definitiva e cotidiana a vida de uma pessoa, alguns mecanismos de defesa mentais são ativados, um deles caracterizado por certo entorpecimento, ou seja, o corpo passa por um processo de dessensibilização à dor e ao sofrimento.
Se o embrutecimento é o que sustenta corporalmente a aceitação da violência física, acredito que um antídoto para essa deletéria aceitação é o desentorpecimento do corpo e da mente por meio de experiências estéticas que promovam prazer e sensibilidade. Foi por meio de minha experiência como formadora que sedimentei a tese desta pesquisa: os conhecimentos que advêm da corporeidade (sentidos, sensações e sentimentos) devem compor qualquer proposta formativa que envolva o tema da violência física e a educação de crianças”.
Alforria pelo Sensível, tese de Cida Alves
___________
Assista a entrevista com a psicóloga Cida Alves no terceiro bloco do programa, a partir dos 18 minutos de exibição do vídeo.
“De
volta ao tema dos começos! Para falar sobre o estilo de escrita que adotei em
minha tese e sobre a escolha da narrativa como o instrumento chave de minha
investigação, tenho que retomar dois começos em minha vida. O primeiro começo
diz respeito a minha formação estética. Por influência de minha cultura de
origem – sou filha de nordestinos - aprendi muito cedo a tomar gosto pela
música e pela dança. Mais tarde, sob a influência de alguns professores e
religiosos, aproximei-me da poesia e dos contos. A dança, a música e as
escrituras (poesias e prosas) promoveram em meu corpo de menina os momentos
mais intensos de alegria, ternura e liberdade.
Quem educa marca o corpo do outro, afirma
Fátima Freire Dowbor (2008). E a arte, minha professora preferida de
sensibilidade, marcou o meu corpo com sensações e sentimentos que me protegeram
do embrutecimento e me consolaram da brutalidade do mundo adulto. Pelas
artimanhas de sedução dessa bela e doce professora, aprendi a somar arte em
quase todas as minhas atividades e tarefas acadêmicas. Assim, sem ter direito
consciência do que fazia, incorporei à minha identidade de aluna a ideia de que
aprender e ensinar tem alguma coisa a ver com o prazer que se sente ante o
belo.
O segundo começo diz respeito a uma resposta
inesperada. Em 2001, por razão da necessidade de capacitar profissionais do
serviço público municipal de Goiânia para o atendimento de crianças, adolescentes
e mulheres em situação de violência, passei a atuar como formadora no tema da
violência contra crianças e adolescentes. Uma de minhas tarefas era conceituar
as tipologias de violência. Os participantes das formações que ministrava
recebiam com relativa tranquilidade a exposição dos conceitos e as
consequências da violência sexual, psicológica e negligência. Todavia, quando o
tema das formações tratava da violência física, o clima mudava completamente, a
participação e o interesse diminuíam e uma forte tensão e resistência imperava,
pois, para a maioria dos participantes, a violência física moderada praticada
na educação familiar era negada como violência.
No intuito de abrandar as resistências sobre
esse tema, lancei mão do antigo recurso de somar arte as minhas tarefas formativas.
E para minha surpresa, o efeito foi inusitado. Contos como ‘Negrinha’ de Monteiro
Lobato, trechos dos livros ‘Infância’ de Graciliano Ramos e ‘Meu pé de Laranja
Lima’ de José Mauro de Vasconcellos exerciam um efeito incomum nas pessoas que
participavam das formações que tratavam da violência física: elas ficavam mais
silenciosas em um primeiro momento, ouviam a exposição com uma atenção quase
resignada e, em alguns cursos, uma pessoa, visivelmente emocionada,
compartilhava com o grupo uma situação de violência física que a marcou na
infância.
O amadurecimento de minha identidade como
formadora imprimiu em mim uma convicção há muito defendida por Paulo Freire: ensinar
exige estética e ética. ‘A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não
pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado
sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas’ (FREIRE, 1996, p.32).
Para Zambrano (2008) a metáfora (corporificada na poesia) tem desempenhado na
cultura uma função mais profunda, e anterior; ela é capaz de ‘definir uma
realidade inabarcável pela razão, mas que propicia ser captada de outro modo’
(ZAMBRANO, 2008, p. 60).
As coisas que faço e experimento
(DIÓTIMA, 2004), nas formações que ministro sobre o tema da violência física
intrafamiliar me ensinaram que a aceitação dessa
forma de violência, que brutaliza o contato corporal nas relações entre adultos
e crianças, é construída por
meio de um processo de embrutecimento
da vítima. Para sobreviver
emocionalmente às violências que invadem de forma definitiva e cotidiana a vida de uma pessoa, alguns mecanismos de
defesa mentais são ativados, um deles caracterizado
por certo entorpecimento, ou seja, o corpo passa por um processo de dessensibilização à dor e ao sofrimento.
Se o embrutecimento é o que sustenta corporalmente
a aceitação da violência física, acredito que um antídoto para essa
deletéria aceitação é o desentorpecimento do corpo e da mente por meio de
experiências estéticas que promovam prazer e sensibilidade. Foi por meio de
minha experiência como formadora que sedimentei a tese desta pesquisa: os
conhecimentos que advêm da corporeidade (sentidos, sensações e sentimentos)
devem compor qualquer proposta formativa que envolva o tema da violência física
e a educação de crianças”.
(Fragmento da tese “ALFORRIA PELO
SENSÍVEL – corporeidade da criança e a formação docente de autoria de Maria
Aparecida Alves da Silva. Acesse a tese completa no AQUI).
04. Contato Físico | Transcrição em Português from Maria Farinha Filmes on Vimeo.
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