O pequeno Cirleudo Cabral Monteza
Manchineri, de um ano de idade, dormia no colo da mãe confortavelmente apesar
do balanço da pequena embarcação a motor. A viagem já durava horas. A família
da etnia
Manchineri havia partido da aldeia São Paolino, localizada na Boca
do Acre, Amazonas, descido o rio Purus e entrado em um dos
seus braços, o Iaco. Por volta das 22h eles se aproximavam do pequeno porto de
Feira dos Colonos, na cidade acreana de Sena Madureira. O pai do bebê apontava
uma lanterna para a barranca quando recebeu ordens para apagar a luz. Sem ter
como atracar na escuridão, ele ignorou o comando. O barco foi recebido à bala.
Uma delas acertou a cabeça de Cirleudo, que foi socorrido, mas chegou morto ao
hospital.
Cirleudo foi enterrado em um
pequeno caixão branco com seus poucos pertences. Para as autoridades uma facção
criminosa que controla o porto confundiu a família com um grupo rival e abriu
fogo. Para o Conselho Indigenista Missionário, no entanto, o
crime tem relação com “o ódio local disseminado pelos invasores da terra
indígena”: o cacique da aldeia São Paolino foi alvo de três tentativas de
homicídio, a última delas dias antes do assassinato de Cirleudo. Sua morte é o
retrato da situação dos povos tradicionais brasileiros: seu corpo jaz em um
túmulo localizado em território indígena tradicional ainda não demarcado.
O bebê foi o mais jovem dos 110
indígenas vítimas de homicídio em 2017, segundo o relatório Violência contra os
Povos Indígenas no Brasil, organizado pelo Cimi. Em comparação com 2016, quando
foram 118 vítimas fatais, houve uma redução de 6,7%. Roraima
e Amazonas lideram com 33 e 28 casos, respectivamente. Apesar da pequena queda
no total de mortos, o cenário traçado pelo documento é sombrio, e não há motivo
para comemorar: 2017 foi um ano marcado por retrocessos nos direitos indígenas
e pela eliminação sistemática de suas lideranças.
Foi o caso do cacique Kaingang
Antônio Ming, assassinado em março na Terra Indígena Serrinha, no Rio
Grande do Sul. Ele recebeu cinco tiros enquanto fazia compras em um
armazém local. Crítico ferrenho do arrendamento de terras para não-indígenas,
suspeita-se que ele tenha sido morto por contrariar os interesses de
fazendeiros da região. Também foi o que ocorreu com Manoel Quintino da Silva
Kaxarari, liderança da aldeia Pedreira, em Rondônia, que vinha criticando a extração
ilegal de madeira na terra indígena, e foi baleado e morto em junho.
Com exceção do ataque contra os índios Gamela, no Maranhão, que
deixou 22 feridos a bala e golpes de facão (alguns com as mãos decepadas), a
maioria dos episódios de violência citados no relatório, como o do
bebê Cirleudo, não ganharam manchetes. É o caso de três índios chacinados
em Santo Antônio do Içá, a 800 km de Manaus, ao oferecer carona de barco para
dois pistoleiros. Ou de Rodrigo Gomes Redis, um Guarani-Kaiowá morto a facadas
por uma dívida de 10 reais em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul.
Não é apenas a violência que ceifa
a vida dos indígenas brasileiros. O relatório do Cimi aponta para oito casos de
mortes provocadas por desassistência na área da saúde, em muitos casos
envolvendo doenças de fácil tratamento. Tari Uru Eu Wau Wau, da terra indígena
de Rio Negro Ocaia, em Rondônia, morreu de tuberculose. Leonardo Leite
Kanamari, da terra indígena Taquara, no Amazonas, de malária.
Sucateamento
da Funai e pressão ruralista
De acordo com o relatório, o
presidente Michel Temer “legitimou a violência contra os
povos indígenas”, ao ajudar e permitir que se instalasse “dentro do Governo uma
organização que visa depredar o patrimônio público e impor, mesmo que à força, o
seu intento exploratório no tocante aos bens ambientais, minerais, hídricos e
da biodiversidade”. Trata-se da bancada
ruralista, grupo parlamentar composto por deputados e senadores com
interesses ligados ao agronegócio, e que foram um dos pilares de sustentação do
Governo emedebista. “Ao longo do ano de 2017, os povos indígenas viram seus
territórios serem invadidos, loteados e explorados por aqueles que desejam
implementar o monocultivo agrícola, a pecuária e a exploração de minerais,
madeira e energia”, diz o relatório.
Segundo o Cimi, a Fundação Nacional do Índio (Funai) passou a ser
conduzida em 2017 por segmentos “historicamente anti-indígenas” ligados aos
ruralistas. O então presidente da entidade Antonio Costa chegou a dizer, ao
tomar posse em março, que os povos tradicionais "não podiam ficar parados
no tempo". Seu sucessor, Framklimberg de Freitas, que assumiu a entidade
em julho se defendeu das críticas, e afirmou que "a Funai não foi omissa e
não é omissa para averiguar tudo aquilo que diz respeito à sua função
institucional".
As consequências mais graves
desta apropriação da entidade foram, segundo o Cimi, a “paralisação de todas as
demarcações de terras, (...) restrições orçamentárias para as ações e os
serviços nas áreas (...) o abandono das atividades voltadas à proteção dos
povos em situação de isolamento e risco e à fiscalização das terras demarcadas,
em especial na Amazônia”. A Funai chegou a ser alvo, naquele ano, de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo relatório final pediu o indiciamento de mais de cem pessoas, em sua
maioria militantes, antropólogos e lideranças indígenas.
Neste cenário, a Advocacia Geral da União é criticada por agir
como “escritório de advocacia da bancada ruralista”. O parecer vinculante nº 001/2017, editado em julho
pela advogada-geral, Grace Mendonça, estabelece um marco temporal segundo o
qual só podem ser demarcadas as terras que estivessem sob posse das comunidades
indígenas na data de 5 de outubro de 1988. De acordo com o Cimi, isso
“legalizou e legitimou o esbulho, a violência e as violações de que os povos
indígenas foram vítimas antes de 1988”. Mendonça rebateu as críticas, e afirmou
que o parecer visa "conferir segurança jurídica para a viabilização da
política pública de demarcações de terras indígenas".
As consequências práticas do
parecer foram, segundo o relatório, a paralisação das demarcações. O documento
aponta que existem 537 terras indígenas (41% do total) que são reivindicadas
pelas comunidades sem que haja nenhuma providência para sua regularização por parte
das autoridades. O número é maior do que as 400 (30%) terras que já foram
registradas para os povos tradicionais. Temer não homologou nenhum território
indígena de agosto de 2016 a dezembro de 2017.
Se a tendência é que não haja
muita renovação no Congresso nas eleições deste ano - a bancada ruralista deve
continuar dando as cartas na Câmara e no Senado -, no Executivo podem haver
mudanças relevantes no tratamento da questão indígena. Dentre os candidatos
mais bem posicionados na corrida presidencial, o PT de Fernando Haddad e o PDT
de Ciro Gomes possuem propostas para ampliar a demarcação de terras. Bolsonaro, do PSL, já sinalizou que existem
"terras indígenas demais", e que não deve retomar a demarcação caso
eleito.
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