4 de mai. de 2018

Quando o agressor sexual é seu tio - BELÉN HERNÁNDEZ/El país

Mayuli A. Ahumada Herrera, de 41 anos, e Carmen, de costas, de 60 anos, em um parque de Barcelona.



Mayuli A. Ahumada Herrera, de 41 anos, e Carmen, de costas, de 60 anos, em um parque de Barcelona. 

Quatro mulheres, entre os 22 e 60 anos, contam como foi viver em silêncio durante anos após terem sido abusadas, quando crianças, por um parente ou alguém próximo a seu núcleo familiar


Por Belén Hernandez


O assédio sexual contra crianças, sejam meninas ou meninos, é um problema mundial que não escolhe um perfil definido e nem classe social. Pior ainda. O grave é saber que o perigo está mais perto do que se imagina, inclusive dentro de casa. Estima-se que entre o 70% e o 85% destas agressões procedem de um parente ou de alguém próximo ao núcleo familiar. O tabu, a culpa, a incompreensão e o medo a romper os laços familiares são alguns dos fantasmas que fazem com que estas agressões não se denunciem ou sejam relatadas apenas na idade adulta em cerca de 90% dos casos. Mayuli, Carmen, Laia e Paula, quatro mulheres entre os 22 e 60 anos, contam como foi viver em silêncio durante anos após terem sido abusadas sexualmente quando eram menores de idade. 

Mayuli A. Ahumada Herrera, com tão somente seis anos, foi tirada da banheira pelo seu tio Enrique para que ele lhe desse, segundo ele, “um beijo cinematográfico”. Seria a primeira vez que esta chilena de 41 anos, radicada em Barcelona desde bebê, foi vítima dos abusos sexuais aos que se viu submetida sendo menor por alguém próximo. Este familiar, a quem ela chama de “o irmão de minha mãe”, fazia as vezes de babá dela e seu irmão. Mayuli se transformou em sua sobrinha preferida. Os assédios se repetiram até seus 12 anos, embora ela tivesse alertado sua família antes: “Minha primeira tentativa de contar foi aos 9, quando disse a minha mãe: ‘Mamãe, o tio tocou a minha bunda’. E sua resposta foi: ‘São carinhos do teu tio’. Mas eu sempre soube o que havia acontecido comigo”, explica tranquilamente Ahumada, sentada em uma das salas de reuniões de Vicki Bernadet, na sua sede em Barcelona, entidade que trabalha desde 1997 no atendimento, prevenção, formação e sensibilização dos abusos sexuais infantis.

No Brasil, um balanço divulgado no ano passado pelo Disque 100, canal para relatar violações, mostra que o país somou 175.000 casos de exploração sexual de crianças e adolescentes entre 2012 e 2016. Dois terços dos alvos dos abusos são meninas. Na Espanha, o total de denúncias por abusos sexuais aumentou - de 3.502 casos denunciados em 2015 a 4.056 em 2016, segundo o Anuário do Ministério do Interior. Mas a maioria dos casos ainda segue oculto. Grande parte das vítimas não receberá nenhum tipo de ajuda psicológica. Mayuli é uma das milhares de pessoas que engrossam as dramáticas cifras monitoradas pelas instituições europeias e várias ONGs dedicadas à infância, como a Unicef e Save the Children: um da cada cinco crianças são vítimas de violência sexual, isto é, 20% da população sofreu algum tipo de abuso durante sua infância, segundo o Conselho da Europa.

Carmen, que prefere não dizer seu sobrenome, nasceu em um pequeno povo de Navarra. Seu primeiro agressor foi o capelão que se encarregava da catequese, que ela recebia individualmente para a primeira comunhão desde os cinco anos, quando a morte de um familiar a obrigou a se separar de seu grupo de amigos. As agressões sexuais continuaram no orfanato para onde sua família a mandou viver, até que saísse com 15 anos, para trabalhar e posteriormente se casar. “Não tenho a lembrança da penetração, porque aquela dor eu lembraria. Mas a memória do padre desabotoando a batina e esfregando seu pênis no meu corpo e me pedindo que o masturbasse”, explica Carmen com lágrimas nos olhos. Também lembra o contínuo abuso de poder que exerciam os religiosos em crianças como ela de 8, 9 e 10 anos e como as apalpavam enquanto lhes diziam “você tem as mamellas molt grossas [você tem as tetas muito grandes, em catalão]”.

Agora, aos 60 anos, Carmen é capaz de falar. As lembranças daqueles dias sombrios rebrotaram, “como um golpe no estômago”, enquanto, numa noite, assistia a um documentário junto com o marido, décadas após ter vivido essa cruel passagem, quando já era mãe de seu primeiro filho. “Naquele dia senti terror de que o mesmo pudesse acontecer com ele [seu filho]. Minha vida sexual foi uma verdadeira merda, apesar de ter tido um marido ao qual agradeço muitíssimo, mas isto continua me condicionando. Oxalá acabe algum dia”, almeja Carmen.

As sequelas a longo prazo do abuso infantil

Ao menos 60% dos casos que chegam às consultas da Fundação Vicki Bernadet são de adultos que não contaram os abusos vividos quando eram crianças e agora buscam acompanhamento psicológico e judicial. “Não sinto vergonha, me atrevo a falar com mais liberdade, tenho mais confiança em mim mesma”, explica Carmen, que há 15 meses faz terapia individual. Agora é avó e sente medo a que a suas duas netas possam viver o mesmo. Foi então que decidiu contar sua experiência a um de seus filhos. “Nós encontramos muitos adultos que chegam quando querem ser mães ou quando encontram um novo relacionamento. Costuma ser durante mudanças cruciais da vida. A pessoa se conecta com esse sentimento de silêncio que se arrastou por muito tempo”, assegura Laura Rodríguez Jiménez, psicóloga da organização desde faz 18 anos.
“O abuso é uma peça do quebra-cabeça. Até que não se encaixam todas não há um desenho completo. Por isso não trabalhamos o assunto de modo isolado, mas sim para entender de qual forma se relacionam todas as peças”, explica Rodríguez Jiménez. “Sou consciente de que psicologicamente sou um pouco mais frágil que os demais. Quando me divorcei voltei a fazer terapia”, explica Mayuli Ahumada, mãe de duas filhas de sete e quatro anos. “Apesar de ser uma pessoa que falo muitíssimo, não podia chorar e externar meus sentimentos. Precisava que alguém me dissesse que não era minha culpa, que não fiz nada de mal e que quem tinha que se envergonhar era ele”, acrescenta ela. Quando tinha 16 anos, Ahumada voltou a enfrentar a sua família para lhes lembrar a verdade. “Negava-me a sair com meu tio quando ele vinha me buscar. Quiçá foi o mais rebelde que fiz em minha adolescência e era tudo para evitar estar com a pessoa que abusava de mim”, diz ela, que lembra o traumático telefonema de sua mãe a sua tia para lhe explicar o ocorrido e esta fazer ouvidos surdos: “O que acontece com Mayuli é que seu tio Enrique já não lhe dá presentes porque não é sua sobrinha preferida, e por isso se rebelou”, disse sua tia. “Ela achava que eu tinha inventado tudo”, assegura Ahumada.
A incredulidade e o medo de mexer com os laços de família são alguns dos fatores pelos quais só uma de cada 10 crianças conta os abusos quando eles estão ocorrendo. “O tabu vitimiza e piora os sintomas e o trauma. Se uma criança explica o que está acontecendo e a resposta é o 'não acredito', é muito possível que ela não volte a explicar o que acontece, ou que tarde muitíssimos anos [para relatar o que aconteceu]. Muitos adultos falam de um abandono que dói tanto quanto o abuso: quando não acreditaram em sua versão, ou não quiseram fazer nada e o abuso continuou”, argumenta a psicóloga de Vicki Bernadet. “Se na minha casa eu tivesse contado o que aconteceu teriam dito que eu inventei tudo”, lamenta Carmen. “Minha mãe agora tem Alzheimer e já não vale a pena dizer nada. Meus irmãos sabem, mas não querem falar a respeito”, completa Carmen.

Processos judiciais irregulares e prescrição do delito

O relatório Olhos que não querem verde Save the Children denuncia que somente 15% dos casos de violência sexual contra um menor é denunciado. Paula Pérez García, de 22 anos, foi abusada por alguém de seu meio familiar até os oito anos. Em 2016, antes de seguir para um programa Erasmus a Hamburgo, decidiu denunciar. Se não o fizesse antes de completar 21 anos, o delito prescreveria, segundo a legislação espanhola. O Código Penal estabelece que os abusos sexuais, como toques de cunho sexual ou masturbação com menores, prescrevem entre os cinco e 10 anos a partir da maioridade da vítima e dependendo da data dos fatos. As agressões sexuais com penetração ou felação com menores prescrevem entre os 10 e 15 anos, também a partir da vítima completar 18 anos. Isto implica que um agressor fica livre de responsabilidade penal quando sua vítima complete os 33 anos e não denuncie. “As leis são uma puta merda e quando você já está preparada e forte para denunciar, o delito prescreveu”, exclama Mayuli Ahumada, que não pôde denunciar seu caso, embora tenha conseguido ser testemunha em outro julgamento contra seu agressor, do qual saiu condenado a 15 anos de prisão.





Pérez García, estudante de trabalho social, lembra de como foi desconfortável contar sua experiência mais de uma vez a diferentes pessoas. “No dia em que fiz a denúncia tinha muitas pessoas que entravam e saíam da delegacia. E depois voltei a denunciar ao promotor. Também tive que contar à advogada de ofício, que não leu meu depoimento e confundiu todos os dados que eu havia passado. Se não tivesse me preparado psicologicamente, não teria me sentido bem ao contar meu relato a tantos desconhecidos”. A importância de uma preparação específica de juízes, fiscais, advogados e psicólogos forenses que levam casos de abusos de menores é uma das demandas da  Save the Children. “Os psicólogos forenses que interrogam menores nos tribunais não têm obrigação de ter formação específica, assim muitos não sabem como interrogar de forma efetiva. A comunidade científica internacional recomenda um método muito específico dotado de uma série de perguntas feita por dois psicólogos independentes.Na Espanha é muito raro que se utilize esta metodologia e quando se faz, é mal aplicada”, explica Carmela do Moral, a analista jurídica de direitos da infância de Save The Children.
Laia, de 24 anos, que prefere utilizar um nome fictício, foi abusada desde os cinco até os 12 por um amigo de seu pai. Vivia com ansiedade, tristeza, fases depressivas e aos 18 não pôde mais e contou tudo para a sua madrinha. “No início eu achava que eu tinha a culpa. Mas depois pensei que essa pessoa tinha que pagar pelo que fazia”. Laia armou-se de coragem e denunciou essa pessoa que era alguém muito importante para sua família. “Lembrei momentos muito desconfortáveis. Meus pais tiveram que saber detalhes que os afetou muito. É um processo lento em que é preciso contar intimidades também a desconhecidos”, explica. Laia escreveu sete folhas para preparar sua declaração ante o juiz.
Outro aspecto que Save the Children destaca em seu relatório é que 70% das denúncias não chegam a julgamento oral após a instrução porque se considera que não há suficientes provas. “É o depoimento do menor contra o acusado, e se não é bem apurado, o processo não continua”, assegura Carmela do Moral. Segundo ela, a medida ideal seria pré-constituir a prova. “O primeiro interrogatório é gravado em um circuito fechado, com apoio de um psicólogo especializado para que o juiz, promotor, e os diferentes advogados façam as perguntas ao menor que considerem relevantes”.
“Outro efeito perverso é que 38% das sentenças estudadas, na hora de impor a pena o juiz a reduz por demora indevida, que é quando o tribunal admite que o processo devia ter sido mais rápido, o que supõe a liquidação da condenação”, explica a analista jurídica de direitos da infância de Save the Children. A média da duração de um julgamento é de três anos, explica ela. Agora Laia, à espera de julgamento oral, tem claro qual é o objetivo de todo este tempo de incerteza. “Quando explico meu caso de abuso é como se contasse a história de outra criança, mas tenho claro que quero fazer justiça por essa criança”.
Fonte: El país, 29 de abril de 2018

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