Porém, especialistas e mães acusadas de serem alienadoras, que foram ouvidos pela Sputnik Brasil, contestam a maneira como a lei vem sendo aplicada nos tribunais brasileiros.
"Eu cheguei em um ponto em que não adianta me esconder. Estou há um ano e nove meses sem qualquer contato com meu filho, eu não sei nem mesmo onde meu filho está. A Justiça impediu que eu tivesse qualquer tipo de contato com ele com a alegação que eu tenho problemas mentais."
O motivo que levou Rebeca* a ser afastada e de ter contato com seu filho foi ter sido acusada de alienadora após o garoto relatar para ela que estava sofrendo abuso sexual do pai, seu ex-marido.
"Quando
ele tinha quase dois anos começou a relatar algumas brincadeiras que o pai
fazia com ele. Nessa ocasião, eu já estava no processo de divórcio, eu contei
para o pai o que o filho tinha falado e ele teve uma reação extremamente
agressiva a ponto de me agredir fisicamente", conta à Sputnik Brasil.
Durante as férias de julho, o filho ficou quinze dias com cada
genitor. Ao voltar do período em que ficou com o pai, Rebeca disse que ele
apresentou esfoliação anal e contou o que tinha ocorrido. "Ele contou tudo,
o que aconteceu, como que ele tinha que ficar, qual era a posição que o pai
machucava ele, que ele chorava, que ele pedia para parar e o pai não
parava."
Logo em seguida, ela procurou o conselho tutelar
que a encaminhou para uma delegacia. Ao chegar ao local, Rebeca disse que a
delegada já ia começar as oitivas. "A delegada convocou a psicóloga
forense que tinha avaliado meu filho, convocou a escola que meu filho estudava,
porque a escola também tinha sido testemunha que meu filho estava apresentando um
comportamento erótico que não era comum ser apresentado por crianças na idade
dele."
"Isso tudo aconteceu numa segunda, terça e
quarta. Quando foi no sábado, minha casa foi invadida por policiais, com arma
em punho, arrombaram a minha porta e entraram dentro da minha casa. Até hoje eu
nunca mais vi meu filho", disse.
Utilizando a Lei da Alienação Parental (Lei
12.318/2010), o ex-marido acusou Rebeca de induzir o filho para prejudicar a
relação dele com o pai. Antes mesmo do inquérito ser concluído na Justiça
Criminal, o processo movido pelo ex-marido foi parar na Vara de Família, onde
foi concluído rapidamente e Rebeca ficou proibida de ver seu filho desde então.
Origem do conceito
O conceito de alienação parental foi criado na
década de 80 pelo psiquiatra estadunidense Richard Gardner. Ele publicou um
livro chamado "The Parental Alienation Syndrome: A Guide for Mental
Health and Legal Professionals", em que ele escreve o ponto mais polêmico
de sua teoria. Segundo Gardner, os pais têm o poder de "implantar falsas
memórias" nas crianças.
A teoria de Gardner não foi aceita pela comunidade médica dos Estados
Unidos da época. Tanto a Associação Americana de Psiquiatria quanto a
Associação Médica Americana não reconheceram alienação parental como síndrome.
A professora doutora em psicologia social da
Universidade Veiga de Almeida (UVA), Analícia Martins, que publicou o livro
"Síndrome da alienação parental: Um novo tema nos juízos de família",
ressalta, em entrevista à Sputnik Brasil, que acusações de abuso são sempre
complexas e que é preciso analisar cada caso individualmente, mas explica que o
conceito de alienação parental não foi comprovado cientificamente.
"Essa teoria não se sustenta, ela nunca foi
demonstrada cientificamente, não consta nos manuais de psiquiatria que são
usados pelos profissionais da área para identificação de patologias clínicas,
mas essa lei estranhamente passa rapidamente no Brasil, a despeito de algumas
tentativas de críticas", afirma.
Um levantamento feito por Analícia Martins a partir
de 400 acórdãos em que envolviam a expressão "alienação parental"
mostra que casos em que o pano de fundo é uma denúncia de abuso são minoria no
Judiciário brasileiro.
"Na verdade, nós temos uma enormidade de
situações que apareciam nesses processos, a maioria fazia menção a casos de
abuso sexual infantil, ou seja, me parece que de fato pode ser utilizada, mas
você não pode dizer que isso é maioria dos casos de litígio conjugal",
explica a professora.
Mesmo sendo uma minoria, a história de Rebeca não é a única, ela se
juntou a um grupo de outras 80 mães que sofreram processos de alienação
semelhantes. Uma delas é Joana*, que teve a suspeita de abuso quando a criança
tinha 4 anos.
"Ela começou a apresentar uma série de
sintomas, não conseguia segurar fezes, voltou a fazer xixi na cama, apalpava
as pessoas na rua, tirava a roupa e mostrava os órgãos genitais para
qualquer pessoa", conta.
A criança passou a revelar que sofria abusos para
um familiar de Joana, mas depois também contou sobre o assunto na terapia.
Joana agora é obrigada a ver seu filho em visitas assistidas dentro de uma sala da Justiça. "Na primeira audiência que eu tive na Justiça, foi dito que eu estava inventando e não queriam nem investigar o abuso. Enquanto eu fiz uma denúncia na polícia o genitor fez uma denúncia na Vara de Família e foi na Vara de Família que eu fui condenada e hoje sou considerada alienadora."
Joana já tinha laudos de outros dois profissionais particulares que também confirmaram o abuso.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Cristiana Cordeiro, juíza de direito do TJ-RJ, apontou que, às vezes, os juízes no Brasil acabam dispensando um parecer técnico feito por um especialista, além de, segundo ela, a Justiça brasileira possuir "um traço machista ao rotular as mães como portadoras de transtornos psicológicos".
"A gente tem uma certa cultura no Brasil de um juiz em muitas situações acabar dispensando um parecer mais técnico, porque em muitos lugares do país os juízes não contam com uma equipe completa com psicólogos, assistentes sociais que possam dar a ele um embasamento maior sobre o que de fato está acontecendo na dinâmica daquela família. Então quando o juiz, ou porque ele se arvora desse conhecimento que ele não tem ou porque ele não tem realmente a quem recorrer, ele acaba assumindo o papel de definir o que é o quê", afirmou.
A lei foi aprovada no Brasil em 2010 depois de uma forte campanha feita por associações de pais. Analdino Rodrigues Paulino, presidente da Apase (Associação de Pais e Mães Separados), uma das principais organizações que lutou pela aprovação da lei, a defende como forma de proteger os homens após processos de separação.
"Nós
temos no Brasil dezenas de leis de proteção a mulher e que prejudicam os
homens. É muito perigoso para os homens um envolvimento com uma mulher que seja
inconsequente. Qualquer coisa que ela falar contra você, você vai responder
judicialmente pela queixa que ela fez", diz.
A Apase tem uma página no Facebook com 5 mil seguidores e até produziu
um documentário para mostrar os motivos que a ONG acha importante aprovar a Lei
da Alienação Parental.
"Por isso que nós lutamos para fazer a Lei da
Guarda Compartilhada e da Alienação Parental. Para garantir o mínimo de direito
para os pais não terem só a obrigação de pagar a pensão e não poderem mais ver
o filho", justificou.
A defensora pública, Paula Sant'Anna Machado de
Souza, que é coordenadora auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos
da Mulher (NUDEM), da Defensoria Pública de São Paulo, discorda dessa posição e
diz que não é isso que vem sendo observado nos tribunais brasileiros.
Em entrevista para a Spuntik Brasil, ela disse que
já existiam outros dispositivos legais, como o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que fazem com que a Lei da Alienação Parental não seja
necessária.
"Se a criança está passando por sofrimento, se
ela está em uma situação de conflito familiar, nós temos por exemplo o estatuto
do ECA que garante medidas protetivas. Então a gente fica questionando para
quem que é essa lei de alienação? Qual o recorte de gênero que essa lei está
buscando fazer? Esses resultados de reversão de guarda brusca também não são
uma violência contra essas crianças? O que nos fez pensar que essa lei não está
sendo pensada de forma que garanta o bem-estar da própria criança",
questiona.
Quem é o alienado?
Paula Sant'Anna Machado de Souza enxerga que há,
inclusive, uma distorção do próprio conceito de alienação parental.
"Porque muitas vezes a gente até confunde, em
tese, quem sofre alienação é a criança, não o pai e nem a mãe. Quem tem que
apresentar algum sofrimento é a criança. Na verdade, o que a gente sente é que
existe uma deturpação até do próprio conceito de alienação", afirmou.
Outra problemática da lei trazida por especialistas
é o fato de que nem sempre uma pessoa acusar o cônjuge de abuso significa que
ela esteja alienando a criança. Muitas dessas vezes ela quer apenas que uma
investigação seja feita.
A psicóloga do Ministério Público do Rio de Janeiro, Beatrice Marinho,
coordenadora do livro "Psicologia na Prática Jurídica — a Criança Em
Foco", diz que de fato existem muitas denúncias falsas de abuso sexual,
principalmente os chamados abusos incestogênicos, que é quando o acusado é o
pai ou a mãe, mas que não necessariamente o fato de uma das partes fazer uma
denúncia signifique que a criança esteja sendo alienada.
"Quando uma denúncia de abuso acontece, têm
essas duas alternativas, ou ser verdadeiro ou ser falso. Agora não queira
entender que isso quer dizer que ela foi abusada ou ela é alienada. Porque,
às vezes, existem outras possibilidades, existem pessoas que fazem essas
denúncias, embora falsas, que não têm a intenção de alienar, mas tem a intenção
de proteger, porque quem está denunciando realmente têm razões para acreditar
naquele abuso, isso que eu acho que é uma falha da Justiça. A dificuldade de
diferenciar o que é uma falsa denúncia de uma alienação", explica.
É justamente a vontade de que fosse feita a
investigação de uma suspeita de abuso que levou Renata* a ser acusada de
alienadora e perder a guarda do filho. "A única razão de eu ter perdido a
guarda dessa criança foi ter cumprido nosso dever enquanto mãe de denunciar uma
suspeita, um indício ou um abuso que fosse."
Ela contou que o filho apresentava comportamentos
estranhos toda vez que voltava das visitas com o pai. Ele tinha por volta de 3
anos e se queixava de dores no ânus e dizia que o pai cometia abuso quando os
dois tomavam banho juntos. Há 2 anos que Renata só pode ver o filho em uma
sala, com supervisão de funcionários da Justiça a cada 15 dias.
"Meu filho voltou da visita do pai chorando,
vomitando, com os ânus dilatados e quando eu perguntei se o pai tinha mexido
nele ele afirmou que sim e que doía muito. Em seguida, meu filho se arrependeu
de dizer e botou a mão na boca. Eu perguntei mais um pouco e ele me falou: 'dói
assim, primeiro ele cresce, daí ele vai crescendo, metendo, metendo…'"
Após a conversa, Renata levou seu filho a um
hospital especializado e decidiu pedir investigação do caso. "O pai entrou
com um processo pedindo a guarda, dizendo que eu era uma maluca, que eu estava
ameaçando ele e a mulher dele. Segundo o pai, eu disse que poderia fazer alguma
coisa com meu filho para prejudicar ele."
Embate político chegou novamente a Brasília
Nesta semana, um grupo de mães acusadas de
alienadoras foi até Brasília para denunciar à CPI de Maus-Tratos do Senado
Federal e má aplicabilidade da Lei da Alienação Parental. O presidente da
comissão, senador Magno Malta (PR-ES), disse que na prática a lei pode estar
sendo sim usada em favor de abusadores.
"Temos hoje um turbilhão de mães vivendo seu
desespero. Infelizmente gente do mal tem em todo lugar, inclusive no
judiciário. O que tem de sentença absurda de juízes reconhecendo o crime, mas
dando sentença favorável ao criminoso é uma grandeza. Temos que tomar uma
posição sobre isso", disse o senador à Agência Senado.
Magno Malta diz que o relatório final da CPI vai propor a revisão da
atual legislação. Também em tramitação no Congresso Nacional há o Projeto de
Lei 4488/2016, de autoria do deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PP/SP),
prevê que mães ou pais acusados de alienação parental possam ser presos por até
três anos. O projeto pune também quem, de qualquer modo, participe direta ou
indiretamente das ações praticadas pelo infrator.
"Com manejo falso da Lei Maria da Penha,
denúncias de abuso sexual são atos criminosos que visam afastar os filhos do
outro cônjuge. A lei é de crucial relevância em homenagem ao princípio da
proteção integral, imputando a quem comete qualquer ato que vise destruir laços
de afetividade", afirmou o deputado em 2016.
O projeto, no entanto, não recebeu parecer
favorável da deputada Shéridan (PSDB/RR), relatora da proposta, mas ainda pode
ser votado na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF).
*Os nomes foram alterados para preservar a
identidade das mulheres
Fonte: Sputnik Brasil
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