Mães afastadas dos filhos por denunciar os abusadores das crianças querem o fim da lei que as puniu
No gramado do Congresso
Nacional, um gigantesco coração marcou a passagem de 23 mães por Brasília. Elas
vieram de várias partes do Brasil na última quinta-feira para entregar à CPI
dos Maus Tratos Infantis cópias de seus processos judiciais. Todas foram
afastadas dos próprios filhos após denunciarem, na Justiça, suspeitas de abuso
físico ou sexual contra as crianças, praticados, na maior parte dos casos, por
ex-maridos. Nas decisões, elas perderam a guarda dos filhos, que ficaram
justamente com os acusados por elas de serem os agressores.
“Pode mostrar meu rosto, meu nome. Escreva. Eu não
vejo meu filho há dois anos, o que pode piorar? Já perdi meu emprego, minha
casa vai a leilão, meu filho vive com o abusador”, conta Marta, mostrando
algumas das provas que ela incluiu nos autos do processo no qual denunciou o
ex-marido, com quem foi casada por quase dez anos, pai do seu filho caçula. São
áudios de uma voz infantil falando abertamente sobre jogos sexuais que o pai
fazia com o filho, e desenhos de criança mostrando, com clareza desconcertante,
uma ereção masculina adulta.
Marta denunciou o ex-marido por suspeita de “jogos
e brincadeiras sexuais”. Para seu espanto, a situação se reverteu no processo –
foi ela a acusada de abusar do filho para incriminar o pai. “Não fui ouvida
pela psicóloga que emitiu o laudo atestando minha suposta ‘psicopatia’”,
denuncia.
“Pode mostrar meu rosto, meu nome. Escreva. Eu não vejo meu filho há
dois anos, o que pode piorar?”
Luísa teve um laudo da perícia confirmando
lesão corporal em seus dois filhos usado contra si. Ela denunciou o ex-marido,
mas acabou enquadrada na Lei da Alienação. A legislação, aprovada à
revelia do Conselho Federal de Psicologia, busca assegurar o direito à
convivência da criança com ambos os pais. O problema é que, em casos de
suspeitas de abuso que não resultem em condenação penal, a lei se impõe,
podendo inclusive afastar a criança de quem denunciou o abuso.
Há um ano e quatro meses, ela só pode ver as
crianças com supervisão. “O oficial de Justiça chegou a ligar para o juiz,
dizendo que não poderia cumprir o mandado de busca e apreensão porque as
crianças estavam em pânico. Mesmo assim, meus filhos foram levados”, conta.
Eles se encontram semanalmente no Centro de Visitação Assistida do Tribunal de
Justiça de São Paulo. Segundo ela me disse, os indícios de violência do pai
contra as crianças continuam. “Meus filhos não me contam nada, têm medo. Mas já
chegaram com hematomas, dente quebrado. Quando perguntei sobre o olho roxo, ele
disse que estava lendo a Bíblia e que o livro caiu no rosto.”
A relação afetuosa e preservada com o pai também
pode ser considerada indício de que a suspeita de abuso foi fabricada pela mãe
para dificultar a convivência, dependendo da percepção do perito. Foi o caso do
processo de Luana, afastada do filho após denunciar suspeita de abuso sexual ao
menino, então com 3 anos. “Tenho sorte. Vou passar o Dia das Mães com o meu
filho, mesmo com vigia”, afirma. Ela tem direito a passar o final de semana com
o filho, com acompanhantes designados pelo pai, mas não pode participar da vida
escolar e outras atividades de rotina. Os gastos do processo, conta, já passam
de 200 mil.
Luana me mostrou um xerox da agenda escolar da
criança. O nome da mãe está riscado, foi substituído por o de outro parente.
“Para a Justiça, é aceitável que o meu nome venha riscado da agenda do meu
filho. Aparentemente, a ‘alienação parental’ se aplica apenas às mulheres”,
diz.
Apoiadores da Lei da Alienação Parental negam viès
de gênero da legislação, mas admitem que pode haver mau uso da lei. Para o
presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família, Rodrigo da Cunha, “o
principal efeito da lei é pedagógico, inibindo atos de alienação parental”. Na
prática, a situação obriga mulheres a conviverem em silenciosa harmonia com
agressores, sob pena de serem afastada dos filhos.
As mães contestam Cunha, lembrando que a
justificativa do Projeto de Lei trazia apenas materiais produzidos e
distribuídos por associações de pais separados, ignorando toda a produção
científica sobre o tema existente no Brasil. A “síndrome de alienação
parental”, distúrbio psiquiátrico descrito pelo perito americano Richard
Gardner, que fundamenta a lei, não é sequer um diagnóstico aceito da
Organização Mundial de Saúde, nem pelas principais entidades da área de Saúde,
Psiquiatria ou Psicologia.
Depois que saíram do gramado do Congresso, naquela
quinta-feira, as mães participaram de audiência fechada na CPI dos Maus Tratos
Infantis, presidida pelo senador Magno Malta, do Partido da República, que
promete apresentar Projeto de Lei para alterar ou revogar a Lei da Alienação
Parental. Após a entrega dos processos à Comissão, peregrinaram pelo Ministério
de Direitos Humanos e pelo Superior Tribunal de Justiça denunciando o texto.
“Já perdemos nossos filhos, mas não desistiremos deles. Nossa única esperança é
mudar a lei”, diz Luana.
Os nomes das mães foram trocados para preservar
suas identidade e as das crianças, e para dar ampla defesa aos acusados.
Foto: Clara Facundes
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