“O jornalista não está incomodado exclusivamente com a revelação da Jane Fonda. Sua queixa é contra esta onda, ou melhor, tsunami de vozes múltiplas que se negam a continuar silenciando. A pergunta irônica esconde os gritos: Voltem para suas casas, fechem suas janelas, portas e não poluam o espaço público com estas insignificâncias!! Não voltaremos, Sr. Alexandre Garcia”.Berenice Bento
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“E eu com isso”? Comentário de
apresentador da Globo sobre estupro de Jane Fonda expõe recalques de um
machismo profundamente incomodado com o tsunami feminista. Oh, que pena…
Por Berenice Bento
Aos 79 anos a atriz Jane Fonda conta
que foi estuprada quando era criança. Já conhecemos os desdobramentos. As
reações nas redes sociais foram de solidariedade à crítica pela revelação. O
que ela vai ganhar com isso? Por que falar disso depois de tanto tempo? Por que
ela não falou antes? Analisar os comentários e os debates que acontecem nas
redes é importante porque, protegidos parcialmente pelo anonimato que estes
dispositivos oferecem, as pessoas passam a se expor mais e, desta forma,
podemos ter acesso a importantes níveis dos discursos que tecem a cultura do
estupro. Não é a primeira vez que há uma explosão de comentários depois que
alguma pessoa famosa conta as violências sexuais de que foi vítima. Como não
lembrar Xuxa?
Com a Jane Fonda, no entanto, a
postagem do jornalista Alexandre Garcia no seu twitter abriu outra camada de
debates. “E eu com isso?”, foi a frase que ele postou referindo-se à revelação
da atriz. Por que ele não ficou calado? Se ele não se interessa pelo estupro de
Jane Fonda, porque simplesmente não ignorou a notícia e seguiu com seu
trabalho? Não. Ele não foi indiferente. Em algum nível, a história de Jane
Fonda o tocou, antes, incomodou-o.
TEXTO-MEIO
O que “e eu com isso?” nos diz? De
certa forma, é uma expressão do profundo incômodo que atravessa parte
considerável da sociedade brasileira diante do avanço dos feminismos e dos
transfeminismos. Com estes movimentos aprendemos que o privado é político e que
sexualidade é poder. E eu com isso? pode ser lida como uma ressignificação do
“em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. O sacrossanto lar passou a
ser visto como um espaço também marcado por violências e abusos, um espaço de
poder. Foi, portanto, a voz tradicional das hierarquias dos gêneros — que
reserva ao feminino o lugar inferior, penetrável, estuprável — que o jornalista
representou.
Jane Fonda levou anos acreditando que
ela era a culpada pela violência que sofrera. Os feminismos e os
transfeminismos são os responsáveis por produzir narrativas que deslocam a
perspectiva ahistórica (mitológica) das identidades de gênero. É nas relações
de poder, inseridas em contextos políticos e sociais historicamente
construídos, que estão as explicações para as relações desiguais entre os
gêneros.
A “culpa” pode ser vista como um dos
elementos constitutivos da (re)produção das violências de gênero fundada numa
matriz religiosa perversa: a origem de todo mal está no feminino. E por
feminino entendo não exclusivamente as mulheres, mas os múltiplos femininos das
travestis, das mulheres trans e dos gays femininos. Basta ver os dados de
violência contra a população LGBT para descobrir que são aqueles que
performantizam o feminino os que sofrem as maiores atrocidades. Somos todas
condenadas a atualizar o mito de Eva.
O jornalista não está incomodado
exclusivamente com a revelação da Jane Fonda. Sua queixa é contra esta onda, ou
melhor, tsunami de vozes múltiplas que se negam a continuar silenciando. A
pergunta irônica esconde os gritos: Voltem para suas casas, fechem suas
janelas, portas e não poluam o espaço público com estas insignificâncias!! Não
voltaremos, Sr. Alexandre Garcia.
E por que só agora, aos 79 anos? Esta
pergunta apareceu com certa frequência nas redes. Quem a faz talvez nunca tenha
pensado sobre a relação entre vergonha e medo que forja as subjetividades
maltratadas. E entre um e outro, o que impera é o silêncio. O silêncio seria a
expressão da vergonha, daquilo que, socialmente, ao ser proferido produzirá
julgamentos morais sobre a minha conduta que poderá provocar a minha morte
social: rejeição e rompimento dos vínculos com as pessoas queridas. É o medo da
dupla perda que faz a vítima silenciar.
O silêncio, nos casos de violência
sexual, também acontece em contextos de guerra. Em toda guerra há a história
oficial e outras que desaparecem, tornam-se escombros, sem registro de arquivo.
A antropóloga Rita Laura Segato tem realizado instigantes pesquisas sobre a
relação entre disputas territoriais e a violência sexual. O estupro dirige-se
ao aniquilamento da vontade da vítima. O corpo é o espaço, o território, a ser
conquistado, subjugado. Retirar os escombros da memória de quem foi vítima da
violência sexual nos períodos de guerras ainda está por ser feito. As escravas
sexuais coreanas durante a Segunda Guerra Mundial, as escravas sexuais nos
campos de concentração nazistas, na Croácia, no Vietnã, na ditadura
civil-militar no Brasil estão ressuscitando e ainda assustaram muito
personalidades à la Alexandria Garcia.
O historiador Ilan Pappé, na sua
densa pesquisa sobre a limpeza étnica da Palestina feita por Israel em 1948 (A
Limpeza étnica da Palestina – Ilan Pappe, pág. 245), afirma que o capítulo dos
estupros cometidos contra as mulheres e garotas palestinas ainda deverá ser
escrito porque não se tem a total dimensão deste tipo de violência. No entanto,
utilizando três tipos de fontes (documentos da ONU e da Cruz Vermelha, os
arquivos israelenses e a história oral) ele aponta que estupros eram realizados
sistematicamente. Uma dessas histórias macabras veio a público mais
recentemente e conta que 22 soldados participaram do estupro de uma garota
palestina de 12 anos de idade em 1948. Por dias, ela foi vítima de estupro
coletivo e depois, assassinada (Jornal Há’aratez, 29/10/2003).
Fatma Kassem, pesquisadora
palestina-israelense, faz um estudo com histórias de vida de mulheres
palestinas idosas que vivenciaram o processo de limpeza étnica realizado pelo
exército de Israel. Mais uma vez e estupro aparece. E, mais uma vez, a autora
alerta para a necessidade de seguir pesquisando estas histórias, porque,
segundo ela, tradição, vergonha e trauma são as barreiras culturais e
psicológicas que “impedem de formar uma imagem mais plena sobre o estupro de
mulheres palestinas como parte da rapina geral que as tropas judias
disseminaram com tanta ferocidade ao longo de 1948 e 1949.” (in, Fatma Kassem:
Palestinian Womem: narrative histories and gendered memoy, pág. 158).
Estudar o estupro como arma de guerra
é difícil porque a historiografia hegemônica não está interessada nestes fatos
“secundários” e o silêncio das vítimas dificulta a pesquisa. O silêncio de Jane
Fonda não é substancialmente diferente do calado pelas vítimas em períodos de
guerra. A cultura do estupro se alimenta e se reproduz em grande parte destes
silêncios. Para produzirmos fissuras nesta cultura talvez tenhamos que adotar
uma prática inversa da assumida pelo jornalista: Somos tod@s Jane Fonda!
Fonte: Outras Palavras, 8 de março de 2017.
Foto: Jane Fonda
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