8 de jul. de 2015

Irreflexão, obediência, severidade e frieza emocional: fios que teceram o sujeito da indiferença à barbárie –Cida Alves

“E se definitivamente a sociedade
só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo,
és um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
depois chamam os urubus”.

Chico Buarque

Indiferença

Foto: Biné Morais

Velho e sábio Chico Buarque, o seu “Hino de Duran” é muito mais atual do que gostaríamos que fosse, pois os tempo de troncos, postes, justiçamentos e extermínios ainda não passaram.

Deixo abaixo uma sessão de minha Tese que trata do sujeito da indiferença.


Irreflexão, obediência, severidade e frieza emocional: fios que teceram o sujeito da indiferença à barbárie

A edificação do sujeito indiferente não deve ser entendida apenas como um processo eminentemente interpessoal ou subjetivo, pois esse sujeito é base objetiva para a estruturação e manutenção das sociabilidades que se fundamentam na supremacia de um homem sobre outro. Para existirem os sistemas autoritários, tanto nas micro como nas macro relações sociais, é essencial formar homens e mulheres indiferentes a sua própria dor e à dos outros e incapazes de refletir sobre as consequências de seus atos cotidianos. O arbítrio, a barbárie, necessita de formar autômatos, necessita de homens e mulheres como Adolf Eichmann.

Hanna Arendt, no livro Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal (1999), descreve o espanto da Suprema Corte de Jerusalém, e de todos que acompanhavam o julgamento, ao conhecerem de perto o carrasco nazista que coordenou o transporte para a morte de milhões de judeus. O homem que se apresentava por trás da imagem idealizada de monstro impiedoso, era de fato, um “pacato e obediente funcionário”, de inteligência mediana e incapaz de refletir criticamente sobre as ordens que recebia e os atos que praticava. Adolf Eichmann, na época de seu julgamento, foi descrito pelos diagnósticos psiquiátricos como sendo “um homem obcecado, com um perigoso e insaciável impulso de matar”, “uma personalidade pervertida, sádica” (apud ARENDT, 1999, p. 37). Todavia esse “sanguinário assassino” alegava inocência dizendo que

No fundo de seu coração, não era aquilo que chamava de innerer Schweinehund, um bastardo imundo; e quanto a sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam - embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado (ARENDT, 1999, p. 37).

Arendt (1999), destaca que Eichmann se vangloriava de seu talento organizacional na coordenação de evacuações e deportações obtidas por seu departamento. Ele se proclama um idealista, ou seja, um homem que vive para as suas ideias. Em sua visão, o idealista perfeito jamais permite que seus sentimentos e emoções pessoais interfirissem em suas ações se elas entrassem em choque com suas ideias. Portanto, o seu empreendimento, transportar pessoas para morte, não deveria ser afetado por suas emoções privadas. Em sua apelação final, Eichmann afirma que nunca nutriu ódio por judeus e tão pouco desejou a morte de seres humanos. “Sua única culpa provinha de sua obediência, e a obediência é louvada como virtude. Sua virtude tinha sido abusada pelos líderes nazistas” (ARENDT, 1999, p. 269).

A inesperada franqueza das falas de Eichmann despertou a incredulidade do promotor e dos juízes de Jerusalém, pois, com ela, o réu quebrava todos os mitos construídos sobre os homens que promoveram a maior barbárie da era contemporânea. Para eles era difícil aceitar que “uma pessoa mediana, ‘normal’, nem burra nem doutrinada, nem cínica, pudesse ser inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado” (idem, p. 37). Todavia, os que conseguiram enxergar a verdade contida no discurso de Eichmann - um típico sujeito do corpo político administrativo nazista - compreenderam que os homens e mulheres que deram vida ao Holocausto não eram “monstros”, mas, sim, pessoas irreflexivas, obedientes e frias emocionalmente.

Foi sob o impacto da verdade revelada pela triste figura de Eichmann que Arendt (1997) cunhou o conceito banalidade do mal. No meu entendimento, esse conceito, somado ao de habitus (BOURDIEU, 2001; 2007), é crucial na busca de respostas à questão colocada no início do capítulo: A violência é um instrumento chave para a estruturação e sustentação da relação dominação/subordinação, comando/obediência; mas como se justifica e constrói a aceitação do uso da própria violência nos processos de socialização das novas gerações? Arendt (1989), no livro as Origens do Totalitarismo, aprofunda as reflexões de Kant sobre o conceito de mal radical, acrescentando-lhe a dimensão sócio-histórica das informações que recebia nos Estados Unidos, em 1943, sobre Auschwitz.

De acordo com o pensamento de Kant, a origem do mal não está nos instintos nem na natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que fazem dele um ser livre. Para Kant, o mal possui uma dimensão contingencial e não ontológica. Nesse sentido, o mal surge a partir da “interação e da reação das faculdades espirituais humanas às circunstâncias. O mal radical, em Kant, é uma espécie de rejeição consciente do bem e está atrelado, ainda, ao uso dos homens como meio, instrumentos, e não fim em si mesmo”, afirma Odílio Alves Aguiar (2008, p. 55). Arendt associa a ideia kantiana de mal radical aos regimes totalitários, pois estes, prescindindo do discurso e da ação, concebem os homens como meros animais, controláveis e descartáveis. Essa forma de governo se sustenta no explícito pressuposto do extermínio de setores da população e não apenas na sua opressão ou instrumentalização.

Ao conhecer Eichmann, bom pai de família, que diz não sentir ódio pelo povo judeu, Arendt (1999) percebeu que existe um outro tipo de mal, ou seja, um mal que não tem uma relação com a maldade, uma patologia ou uma convicção ideológica. O praticante do mal banal não conhece a culpa por que o executa como um autômato, sem pensar. Segundo ela, a base de defesa utilizada por Eichmann, sua virtuosa obediência às ordens superiores, demonstra que ele faz uma renúncia ao pensamento. Dessa maneira, destituindo-se de reflexão e crítica, ele não consegue dizer: não posso obedecer a essa ordem, ela é injusta, criminosa (ARENDT, 2007).

“Cala boca menino, não me interessa o que você pensa, obedece!” “Que menino bonzinho, tão obediente, faz tudo o que a gente manda”! Frases como essas demonstram como a obediência é valorizada na educação das crianças. Todavia, quem age meramente guiado pelo princípio da obediência, virtude louvada pelo praticante do mal banal, não exercita o ato de pensar, elemento fundante de qualquer processo educativo. A ausência de pensamento provoca a privação de responsabilidades, pois a lógica da ação de quem age sem pensar lhe é externa. De acordo com Aguiar (2008), quem pensa resiste à banalidade do mal, pois ao buscar sentido no que faz se responsabiliza em algum aspecto pelas consequências de seus atos. Ele continua a sua argumentação dizendo:

O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras, através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais de: pensar, querer e julgar (AGUIAR, 2008, p. 57).

Segundo Arendt (2007), o sujeito obediente não assume responsabilidade alguma pelas consequências de seus atos, por que sente e vive suas ações de forma heterônoma. Além de criticar a defesa da obediência como virtude em si mesma, Arendt denuncia a falácia do discurso que promove a crença em que toda organização exige obediência aos superiores, assim como às leis de um país, em que, sem a obediência, nenhum corpo político pode sobreviver. Esse mesmo discurso afirma, ainda, que a liberdade de consciência sem restrições não existe em qualquer local, pois significaria a ruína de toda comunidade organizada. Para Arendt (2007), esse discurso soa tão plausível que, às vezes, é difícil enxergar o equívoco que abriga, pois “sua plausibilidade se baseia na verdade do fato de que ‘todas formas de governo’ nas palavras de Madison, incluindo as mais autocráticas, e ainda as tiranias, ‘se baseiam no consentimento’, e a falácia se sustenta na equiparação do consentimento com a obediência”45 (ARENDT, 2007, p. 72).

Todavia, consentir não é o mesmo que obedecer. O consentimento implica ação autônoma do sujeito, ou seja, por um processo de entendimento-discernimento interno, este decide permitir que outra pessoa comande ou guie seus atos. Por características próprias de sua fase de desenvolvimento, um adulto pode dar consentimento em uma situação em que a criança só pode obedecer. Em condição de igualdade, um adulto que aparentemente obedece, de fato está apoiando quem o comanda. De acordo com Arendt (2007), ninguém, por mais forte que seja, pode levar a cabo alguma coisa sem a ajuda de outros e só as pessoas que vivem situações extremas de dependência - crianças ou escravos - realmente obedecem. Para fundamentar sua distinção entre o que é consentir e obedecer, ela diz:

Basta que imaginemos por um momento o que sucederia com quaisquer dessas formas de governo se um número suficiente de pessoas atuassem “irresponsavelmente” e negassem seu apoio, ainda sem resistência ativa nem rebelião, para ver que arma tão eficaz poderia ser essa atitude. Trata-se, em definitivo, de uma das muitas variantes de ação e resistência não violenta - como o poder que encerra a desobediência civil - que se estão descobrindo em nosso século. (...) Por conseguinte, a pergunta dirigida àqueles que participaram e obedeceram ordens nunca deveria ser “Por que obedecestes?”. Senão “Porque apoiastes?”. (...) Muito se ganharia sepudéssemos eliminar o pernicioso termo “obediência” de nosso vocabulário moral e político46 (ARENDT, 2007, p. 73).

No livro Sobre la desobediência, Erich Fromm (1984) destaca que foram os reis, sacerdotes, senhores feudais, patrões e padres que elevaram a obediência à condição de virtude e a desobediência à de vício. Para apresentar essa depreciação da desobediência, Fromm relembra que a história humana foi inaugurada por intermédio de um ato de desobediência. Ao longo da história, o desenvolvimento humano só foi possível por que homens e mulheres se atreveram a desobedecer, a dizer não, em nome de sua consciência e de sua fé, aos poderes constituídos que tentava amordaçar os pensamentos novos e as ações transformadores.

No entendimento de Fromm (1984) desmitificar a ideia de obediência como uma virtude em si, passa pela compreensão da relação dialética existente entre obediência e desobediência. A obediência a uma pessoa, instituição ou poder (obediência heterônoma) é, para ele, submetimento, porque implica abdicação da autonomia e a aceitação de uma vontade ou juízo alheio. Todavia, a obediência à própria razão ou convicção - obediência autônoma - não é um ato de submissão senão de afirmação. Fromm (1984), como Arendt (2007), entende que o uso do termo obediência exige cuidados e esclarecimentos, pois quando alguém obedece às suas convicções ou juízos, está sendo autêntico consigo mesmo, mas se obedece ao juízo de outros, não. Por essa razão, “a palavra ‘obedecer’ só pode aplicar-se em um sentido metafórico e com um significado que é fundamentalmente distinto do que tem no caso da ‘obediência heterônoma’” 47 (FROMM, 1984, p.15).

De acordo com esse autor, quando existe uma não conciliação entre os princípios aos que se obedece e aqueles aos que se desobedece, um ato de obediência a um princípio é necessariamente um ato de desobediência a sua contraparte e vice versa Portanto, se alguém obedece às leis desumanas do Estado, desobedece necessariamente às leis da humanidade.

Se obedecer a estas últimas, deve desobedecer as primeiras. Todos os mártires da fé religiosa, da liberdade e da ciência tiveram que desobedecer àqueles que desejavam amordaçá-los, para obedecer a sua própria consciência, às leis da humanidade e da razão. Se um homem só pode obedecer e não desobedecer, é um escravo; se só pode desobedecer e não obedecer, é um rebelde (não um revolucionário) atua por cólera, despeito, ressentimento, mas não em nome de uma convicção ou de um princípio48 (FROMM, 1984, p.14).

Além da compreensão da dialética descrita acima, Fromm (1984) considera importante discorrer sobre as nuances presentes no conceito de consciência. A palavra consciência, geralmente, é utilizada para expressar dois fenômenos distintos entre si. A “consciência autoritária”, que é a voz internalizada de uma autoridade que um indivíduo anseia satisfazer e/ou teme desagradar. A consciência autoritária é a que a maioria das pessoas experimenta quando obedecem a sua consciência. Segundo Fromm (1984), essa é consciência de que fala Freud, denominada de superego. Este superego representa as ordens e proibições do pai internalizada e aceita pelo filho devido ao temor. A “consciência humanística”, diferente da autoritária, é a voz presente em todo ser humano, independentemente de sanções e recompensas externas. “A consciência humanística se baseia no fato de que como seres humanos temos um conhecimento intuitivo do que é humano e desumano, do que contribui à vida e do que a destrói”49 (FROMM, 1984, p.15 e 16).

A consciência autoritária (superego) expressa obediência a um poder exterior ao sujeito, ainda que tal poder esteja internalizado. Aparentemente, a pessoa, ao crer que está seguindo sua própria consciência, em realidade absorveu os princípios do status quo constituído, devido à ilusão de que a consciência humanística e a autoritária são idênticas. A autoridade internalizada é muito mais efetiva que a que experimentamos  claramente como algo que não forma parte de nós mesmos. De acordo com Fromm (1984), a obediência à “consciência autoritária”, como toda obediência a pensamentos e poderes exteriores, tende a debilitar a “consciência humanística”, ou seja, a capacidade da pessoa de ser ela mesma e de julgar-se a si mesma a partir de princípios universais.

O caso de Adolf Eichmann é um emblema de como a mera internalização do modelo relacional, que pressupõe a absoluta obediência dos subalternos, debilita ou impede a formação da “consciência humanística” (FROMM, 1984) que é a base do desenvolvimento do comportamento moral (VYGOTSKY 2004; Kohlberg apud DAVIDOFF, 1978). Segundo Vygotsky (2004), o sistema educativo autoritário se baseia na simples distribuição de recompensas e castigos. O castigo é aplicado nos casos de insubordinação da criança e a recompensa em caso de subordinação. Uma educação que almeja o desenvolvimento de comportamentos éticos não deve sustentar-se em proibições externas, mas, sim, em um comedimento interno que leve o homem a um ato bom e bonito. Nesse sentido, “o comportamento moral deve vir a ser a natureza desse homem e ser leve e espontâneo” (VYGOTSKY, 2004, p. 315).

O comportamento moral não se constrói pelo temor de uma punição, pois deixar de realizar um ato por temor ainda não significa agir eticamente. A relação não livre com um objeto, o medo e toda dependência já significam a ausência de sentimento ético. De acordo com Vygotsky (2004), o comportamento moral está sempre relacionado à livre escolha dos sujeitos, pois se um homem evita fazer alguma coisa por receio de uma possível consequência negativa, ele age como um escravo. Para o filósofo Espinosa, “só é livre o homem que evita essa mesma coisa porque outra coisa é melhor” (Espinosa apud VYGOTSKY, 2004, p.306). Portanto, a obediência motivada pelo medo não representa uma força ético-educativa, pois pressupõe, de antemão, uma relação servil com os valores e normas externas.

As pesquisas na área da aprendizagem de Lawrence Kohlberg (apud DAVIDOFF, 1983), confirmam a argumentação desenvolvida por Vygotsky. Os estudos desse pesquisador indicam a existência da tendência dos indivíduos de atravessar determinados estágios no processo de aquisição do comportamento moral. De acordo com os estudos desse pesquisador, em cada um desses estágios, os indivíduos se conformam com que é certo por diferentes razões. No primeiro nível, denominado por ele de Pré-moral, existem duas fases: Orientação punição-obediência e Orientação permuta-instrumental. Na primeira, a pessoa se conforma para evitar castigos em submissão a pessoas com poder superior, como no exemplo a seguir: “Eu não minto porque, se mentir, minha mãe me bate” (Kohlberg apud DAVIDOFF, 1983, p. 105). Na segunda, a pessoa conforma-se apenas para obter lucros ou vantagens: “Se eu não delatar o Zeca, ele não vai me delatar” (ibidem).

O segundo nível, denominado de Nível Convencional, é composto das fases Orientação bom rapaz, boa moça e Orientação de preservação do sistema. Na primeira fase a pessoa se conforma para agradar aos outros, exemplo: “Se o papai algum dia souber que eu minto, nunca mais confiará em mim novamente. Por isso não minto” (ibidem). Na segunda, a conformação se dá pela preocupação com o bem da sociedade em geral, e não apenas de um grupo pessoal: “Obedeço à lei porque é minha obrigação de bom cidadão. Torna a vida mais fácil para todos” (ibidem).

O último estágio, denominado de Nível de Princípios, contém as fases Orientação contrato social e Orientação pelos princípios éticos universais. Na primeira, a pessoa se conforma para manter o respeito do espectador imparcial, que julga em termos de bem-estar da comunidade, assegurando direitos iguais para todos. Exemplo: “Obedeço à lei porque a sociedade só pode funcionar se as pessoas respeitarem os direitos umas das outras” (ibidem). E, na última fase, os indivíduos se conformam para evitar a auto-condenação e viver de acordo com os princípios éticos universais. Exemplo: “A violência transgride os direitos dos outros seres humanos. A vida humana é sagrada e deve ser respeitada acima de tudo” (ibidem).

Em acordo com o pensamento de Vygotsky (2004) e o postulado da última fase do Nível de Princípios de Kohlberg (apud DAVIDOFF, 1983), Arendt (2007), compreende que a conduta moral nada tem que ver com obediência a alguma lei ditada externamente, seja ela divina ou humana. A discussão sobre o comportamento moral também comparece nas reflexões que Arendt (2007) desenvolve no livro Responsabilidad y juicio. Nessa obra ela ressalta a distinção que Kant faz entre legalidade e moralidade. Para Kant, a legalidade é moralmente neutra, e se localiza na religião e na política institucionalizada, mas não na moral. De acordo com o imperativo categórico kantiano, na conduta moral a pessoa obedece sua própria razão, e as leis que ela mesmo legitima valem para qualquer situação, esteja ela onde estiver. Porque sua preocupação central é não contradizer a si mesma, razão pela qual ela atua de tal forma que a máxima que rege sua ação se converte em lei universal. “Eu sou o legislador; o pecado ou o delito não podem definir-se como desobediência à lei de outro alguém, senão com rechaço a desempenhar minha parte como legislador do mundo”50 (ARENDT, 2007, p. 91).

Nesse sentido, Arendt (2007) compreende que a moral está relacionada com o individuo em sua singularidade. O critério do que está bem ou mal, a resposta à pergunta “como devo agir?” não depende, em última instância, dos hábitos e dos costumes compartilhados pela comunidade ou cultura onde a pessoa vive, nem tampouco de mandamentos de origem religiosa ou jurídica, senão do que ela decide em relação a si mesma. Em outras palavras, a pessoa sente que não pode fazer determinadas coisas porque, uma vez feitas já não poderia viver consigo mesma.

Ante as reflexões desenvolvidas por Arendt (2007), Fromm (1984), Vygotsky (2004), compreendo ser legítimo o slogan que estudantes brasileiros espalham em cartazes pelas ruas e posts na internet: “Por uma educação que nos ajude a pensar e não que nos ensine a obedecer” (anexo 3). Em acordo com o slogan estudantil, concebo que o comportamento moral é construído por meio do pensamento crítico reflexivo, que promove o discernimento entre o bem e o mal, e mantido pela absoluta assumência do sujeito, em seus atos e palavras cotidianos, da defesa intransigente do bem, do belo e do justo.

Tal como Arendt (2007) e Fromm (1984), Adorno (1995a) argumenta que é pelo desenvolvimento da capacidade reflexiva que a formação humana desconstruirá a indiferença à barbárie. Na concepção de Adorno, a educação - comprometida com a superação da barbárie que foi Auschwitz - deve ter sempre um sentido emancipatório. No entanto, a construção de uma educação que tenha tal sentido ético não passa por meros bons conselhos ou pelo aperfeiçoamento moral, alerta o autor. A educação não deve se amparar apenas no campo das ideias, dos valores, pois foram condições objetivas que criaram a possibilidade de Auschwitz existir e, se persistirem tais condições, uma repetição de tal barbárie pode acontecer.

O conteúdo da experiência formativa não se deve esgotar na relação formal do conhecimento, mas avançar em direção à crítica das relações sociais que levam o homem a se coisificar. Para Adorno, a educação crítica possui uma tendência subversiva. “É preciso romper com a educação enquanto mera apropriação de instrumental técnico e receituário para a eficiência, insistindo no aprendizado aberto à elaboração da história e ao contato com o outro não idêntico, o diferenciado”. (ADORNO, 1995a p. 27).

A partir dos ensinamentos da psicanálise, Adorno (1995a) argumenta que todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância51. Nesse sentido, é prioridade que, no período da primeira infância, os indivíduos participem de um processo educativo que promova a autonomia e a reflexão crítica. A autonomia, ou seja, a autodeterminação, constitui o único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz. Além de uma educação na primeira infância, que zele pelo fortalecimento da autonomia do sujeito, ele propõe um esclarecimento intelectual, cultural e social, que permita a emersão para o plano consciente dos motivos que conduziram ao horror de Auschwitz.

Semelhante ao pensamento de Miller (2005), Adorno (1995b) entende que uma consciência mutilada promove um aprisionamento na esfera corporal que pode propiciar a violência. Portanto, além da defesa de uma formação humana que promova a capacidade reflexiva, Adorno entende ser necessário criticar a educação autoritária que tem como base a severidade e frieza emocional. Tal educação não demonstrou ter o poder prometido, ou seja, de assegurar espontaneidade aos indivíduos, impedindo-os de se converterem em obedientes instrumentos da ordem vigente. Em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, inclusive das organizações políticas, a ameaçadora barbárie se realiza, praticando “a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas” (ADORNO, 1995b, p.159).

Ao discutir a questão da imagem do professor, no ensaio Tabus sobre o magistério, Adorno (1995d) destaca como a sociedade ainda permanece baseada na força física. Mesmo após a proibição dos castigos corporais, o professor é ainda associado à imagem daquele que, fisicamente mais forte, castiga o mais fraco. Sobre a associação entre o magistério e a prática dos castigos físicos, Adorno destaca:

[…] sociedade permanece baseada na força física, conseguindo impor suas determinações quando é necessário somente mediante a violência física, por mais remota que seja esta possibilidade na pretensa vida normal. Da mesma maneira as disposições da chamada integração civilizatória que, conforme a concepção geral, deveriam ser providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas condições vigentes ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência física. Esta violência física é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é negada nos delegados. Os executantes são bodes expiatórios para os mandantes. [...] Não sei até que ponto é precedente a afirmação de que nos séculos XVII e XVIII soldados veteranos eram aproveitados como professores nas escolas primárias. Mas certamente esta crença popular é bastante característica para a imagem do professor. A expressão “quem malha o traseiro”, acima referida, tem conotação militar. (ADORNO, 1995d, p. 106)

Não por acaso, o movimento fascista promoveu hábitos populares, ritos de iniciação que imputavam dor física - muitas vezes insuportável - a uma pessoa como preço do direito dela de se sentir um filiado, um membro do coletivo. Para Adorno (1995a), a brutalidade de hábitos, tais como os trotes, é precursora imediata da violência nazista. O enaltecimento e cultivo pelos nazistas de práticas violentas em nome dos "costumes" tinham uma função no processo de construção do homem idealizado por eles. Sobre a educação tradicional que adota a severidade e a frieza como modelo ideal de comportamento, Adorno diz:

O elogiado objetivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. (ADORNO, 1995a, p. 128 e 129).

Sem um congelamento afetivo, sem uma frieza, uma oceânica indiferença em relação ao sofrimento e a dor do outro Auschwitz não teria sido possível. A identificação com o outro, com suas dores e amarguras, é um dos elementos cruciais para que edificações como Auschwitz sejam arruinadas, desmoronadas! Nesse sentido, um passo importante para destruir os alicerces da mentalidade fascista é “ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada” (ADORNO, 1995a, p. 135).

Adorno (1995c), em Educação e emancipação, compreende que a experiência formativa caracteriza-se pela difícil mediação entre o condicionamento social – o momento de adaptação – e o sentido autônomo da subjetividade – momento de resistência. Para o autor, uma das principais tarefas da educação é resistir à barbárie, pois esta é justamente o contrário da formação cultural. Ainda que o alcance e as possibilidades concretas da escola sejam por demais restritas, a desbarbarização do homem deve ser seu principal objetivo. O autor, ao opor a educação à barbárie, expressa o desejo de que, “por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência física” (ADORNO, 1995c, p. 165).

Para esse autor, a superação da barbárie não passa pelo mero esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias inferiorizadas, mas, sim, pela formação de sujeitos autônomos. Sujeitos capazes de refletir criticamente sobre seus próprios atos e pensamentos e que não sucumbam cegamente a um modelo de sociabilidade que se restrinja a relação comando e obediência. De acordo com Adorno (1995a), uma contraposição lúcida e persistente à ausência de consciência - evitando que os indivíduos descontem nos outros suas dores e angústias sem refletir a respeito de si próprios - é a meta primordial da educação que visa promover o desenvolvimento de sujeitos autônomos e emancipados.

A educação que adota a severidade e a frieza como modelo ideal de comportamento promove a indiferença em relação à dor do outro, indiferença essa que foi uma das condições objetivas que levaram à instalação de barbáries como Auschwitz. No plano consciente, suportar a dor em si como um ideal de força e poder, favorece o entendimento de que é necessário perpetrar a dor no outro como meio de fortalecimento dos aprendizes. Todavia, Adorno (1995a) defende a ideia de que o ato de provocar a dor no outro é, na verdade, um mecanismo que expressa a vingança de dores que o sujeito precisou ocultar. A indiferença à dor em si e nos outros tende a promover a naturalização da violência e o desenvolvimento de mentalidades autoritárias, como aconteceu no fascismo.

“Mas, tudo que aprisiona, força a liberdade” (ZAMBRANO, 2008, p. 123). A compreensão da figura de Adolf Eichmann - homem aprisionado por sua incapacidade de pensar, sua obediência cega e frieza emocional, criou as condições para a contundente crítica à educação pela dor, “educação” que brutaliza crianças e embrutece adultos. Para Maria Zambrano (2008), o que há de mais nobre no homem é, sem dúvida, sua não resignação a todas as classes de correntes que ambicionam aprisioná-lo. A capacidade de desobediência é a condição da liberdade como a liberdade é condição da desobediência, afirma Fromm (1984). Se uma pessoa teme a liberdade não será capaz de atrever-se a dizer “não”; portanto, não terá a coragem de ser desobediente. A capacidade de desobedecer e a liberdade são indissociáveis, razão pela qual não é sincero o sistema educacional, “social, político e religioso que proclame a liberdade, mas reprima a desobediência” (FROMM, 1984, p. 18).

Ao relacionar o mal a um vazio reflexivo, Arendt (1999; 2007) aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nelas, o mal se realiza na banalidade, na injustiça e no ataque à integridade de imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza. Segundo Arendt (2007) o pensar, julgar e querer são elementos estruturantes do que ela denomina de amor mundi, ou seja, o cuidado com o mundo comum. Só esse amor pode fazer do mundo um espaço comum de respeito em que homens, mulheres e crianças possam circular e se sentir amparados pela presença dos iguais e dos diferentes. Parafraseando Aguiar (2008), para quem “nesse mundo comum os homens mostram que nasceram para começar e não para morrer” (2008 p. 57), compreendo que é na educação das crianças que os homens e mulheres mostram que nasceram para começar e não para morrer, ferir ou matar.


Fonte: "ALFORRIA PELO SENSÍVEL - CORPOREIDADE DA CRIANÇA E FORMAÇÃO DOCENTE" – Maria Aparecida Alves da Silva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Participe! Adoraria ver publicado seu comentário, sua opinião, sua crítica. No entanto, para que o comentário seja postado é necessário a correta identificação do autor, com nome completo e endereço eletrônico confiável. O debate sempre será livre quando houver responsabilização pela autoria do texto (Cida Alves)