"Os debates não trataram da garantia da segurança pública e da Justiça social sob uma ótica estrutural, de evitar problemas ao invés de corrigi-los, mas deitaram-se em vingança. Um simplismo temerário. O que é uma das mais importantes matérias legislativas das últimas décadas foi discutida por parlamentares que não estavam preparados para tanto, repetindo falas pré-fabricadas que justificam-se em si mesmas (ah, a pós-modernidade…) Ou usam um rosário de lugares-comuns para convencer suas bases de que estão executando a sua vontade.Afinal de contas, medo é controle. E manter a população sob o medo é a melhor forma de garantir o cabresto" (Leonardo Sakamoto).
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Brasília – A Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada desta quinta (2), uma proposta de emenda à Constituição que prevê a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos para os crimes cometidos com violência ou grave ameaça. Foram 323 votos a favor, 155 contra e duas abstenções.
Após não ter conseguido aprovar outra proposta de redução, na madrugada desta quarta (1), com 303 votos a favor, apenas cinco abaixo do mínimo necessário, o presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e aliados colocaram uma proposta semelhante em votação um dia depois – o que foi considerado um golpe pelos opositores da redução.
A fim de convencer os que votaram contra com algo mais “palatável'', Cunha e aliados retiraram tráfico de drogas, tortura, terrorismo e roubo qualificado do texto, mantendo crimes hediondos (estupro, sequestro, entre outros), homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte, no rol de crimes violentos para os quais jovens a partir de 16 anos poderão ser punidos como adultos.
O problema é que há projetos no Congresso Nacional para transformar tráfico de drogas em crime hediondo, o que pode zerar essa mudança.
O presidente foi acusado de, pessoalmente, pressionar parlamentares a mudar de posição. Deputados federais também reclamaram de ameaças via redes sociais.
Caso essa nova proposta fosse rejeitada, Cunha havia indicado traria outras semelhantes para serem apreciadas pelo plenário. Ele – que detém o poder de definir a agenda da Câmara – só interromperia esse processo quando atingisse o seu objetivo. A manobra de Cunha deve ser questionada no Supremo Tribunal Federal.
A PEC precisa passar por segunda votação na Câmara e por duas votações no Senado antes de ser promulgada. Isso se o Senado não mudar o texto, o que obrigaria a voltar para a Câmara.
Mas este resultado não importa.
Pois este post não é sobre ele. É sobre salsicha.
Sim, salsicha. Aquela deliciosa e roliça bisnaga de carne que, de acordo com o ditado popular, você não consumiria se soubesse como é feita.
Passei os últimos dias vendo os parlamentares produzirem uma salsicha. Não todos, mas muitos deles.
Porque o nível de argumentação deste debate, que diz respeito a que tipo de sociedade queremos construir e através de que leis, tem sido feito com base em discursos vazios e sensacionalismo. Muitos foram toscos, incompreensíveis, inacreditáveis. Caso os deputados se esforçassem indo um pouco mais baixo, encontrariam algum lençol freático, ou quiçá, petróleo.
Não que alguém que acompanha o Congresso Nacional não soubesse do que ele é feito. Mas este tema extrapolou os limites.
É possível realizar um debate utilizando argumentos razoáveis e embasados em informações de qualidade de ambos os lados. Prós e contras.
Mas muitos dos discursos parlamentares proferidos parecem ter saído da boca de apresentadores de programas de TV do tipo “espreme-que-sai-sangue'' ou “estamos-seguindo-uma-viatura''. Um deputado afirmou que o Estado Islâmico aprendia com as crianças e adolescentes do Brasil. Outro explicou que esses seres nem seriam mais crianças e adolescentes, mas demônios. Houve quem desse a entender que a redução da maioridade penal é uma vontade de Deus (jesusmariajosé!). Sem contar os que fizeram releituras de tragédias pessoais, tentando ganhar a simpatia dos colegas.
Como o tema está no foco do dia, parlamentares fizeram discursos apenas para aparecer nos telejornais. Ou, pior: a fim de preencherem o seu próximo horário eleitoral gratuito em rádio e TV. Citaram casos que se tornaram famosos na mídia, alguns dos quais que nem envolviam crianças e adolescentes. Mas pouco importa! Tudo é válido para aparecer.
A ponto de alguns membros da Bancada da Bala rirem de colegas que, no afã de produzir pomposos discursos, não faziam a menor ideia do que falavam ao abraçarem o microfone da tribuna.
Ouvi tantas vezes as expressões “homem de bem'' e “mulher de bem'' que acabei por ganhar uma pedra nos rins.
Os debates não trataram da garantia da segurança pública e da Justiça social sob uma ótica estrutural, de evitar problemas ao invés de corrigi-los, mas deitaram-se em vingança. Um simplismo temerário. O que é uma das mais importantes matérias legislativas das últimas décadas foi discutida por parlamentares que não estavam preparados para tanto, repetindo falas pré-fabricadas que justificam-se em si mesmas (ah, a pós-modernidade…) Ou usam um rosário de lugares-comuns para convencer suas bases de que estão executando a sua vontade.
Afinal de contas, medo é controle. E manter a população sob o medo é a melhor forma de garantir o cabresto.
E não se enganem: do lado dos contrários à redução, poucos são os que conseguem argumentar decentemente o seu ponto ou contestar os favoráveis. Muitos não articulam racionalmente argumentos e dados ou mesmo entendem a profundidade da questão. Deputados federais capazes disso se desesperam frente à incompetência ou ignorância dos colegas.
Nestes últimos dias, nunca foi tão lembrado pelos deputados na tribuna que é dever do Congresso Nacional seguir a vontade da maioria da população. Esquecem, por um lado, que caso houvesse pesquisa a respeito, essa maioria provavelmente (e infelizmente) seria a favor de fechar o próprio parlamento ou reduzir o salário dos representantes. E daria apoio à taxação de grandes fortunas e de grandes heranças e ao engavetamento de propostas de mudanças previdenciárias e trabalhistas vindas do governo federal.
E que, por outro, uma verdadeira democracia não é governar pela vontade da maioria, que – acuada e com medo – pode ser muito opressora. Como lembrou o deputado Silvio Costa (PSC-PE), a opinião pública condenou Jesus Cristo e absolveu Barrabás. A este blog, ele lembrou que a opinião pública também esteve ao lado de Hitler e apoiou a ditadura em nosso país. Ela deve ser respeitada, mas não está necessariamente certa.
Neste momento, a opinião pública está faminta por Justiça. Sua fome é, então, usada como justificativa para criar um salsichão. Que, ao contrário do que pode parecer, não vai saciar e nos deixar mais seguros. Ao contrário, do jeito que ele está sendo feito, de forma atropelada e no custe o que custar, vai causar uma grande indigestão social.
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Fonte: Blog Sakamoto, em 2 de julho de 2015.
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