30 de mar. de 2014

Because I Am A Girl – Por ser niña – Porque sou uma menina

Esse é o plano: investir nas meninas como “armas” de construção em massa

Eso es el plan: invertir en las niñas como "armas" de la construcción masiva

 

 

 


 

 

 

 


A millones de niñas se les niega la educación justo en el momento en que puede transformar sus vidas y el mundo a su alrededor. Terminar tanto la educación primaria como la secundaria es algo fundamental para las niñas, que puede ayudar a romper con el ciclo de la pobreza.

Una niña que termine tanto la educación primaria como la secundaria de alta calidad tiene...

  • menos probabilidades de sufrir violencia o casarse y tener hijos siendo aún una niña;
  • más probabilidades de instruirse, de ser sana y sobrevivir en la adultez, al igual que lo harán sus hijos;
  • más probabilidades de reinvertir sus ingresos en su familia, comunidad y país;
  • más probabilidades de comprender sus derechos y ser una fuerza para el cambio.

 

 

 


Conheça mais sobre a campanha Because I Am A Girl da organização Plan Internacional nos links abaixo:

Porque Sou uma Menina - A SITUAÇÃO MUNDIAL DAS MENINAS 2010

Porque Sou uma Menina - A SITUAÇÃO MUNDIAL DAS MENINAS 2011

29 de mar. de 2014

O escandaloso retrato da “CULTURA DO ESTUPRO”

De acordo com os resultados da pesquisa feita pelo IPEA 65% (dos brasileiros e das brasileiras) dizem que a “mulher que mostra o corpo merece ser atacada”.

MAIORIA ACHA QUE A CULPA É DA VÍTIMA E NÃO DO AGRESSOR.

 

Majorité opprimée - curta metragem Francês mostra como seria a sociedade se os papéis masculinos e femininos fossem invertidos

 

“Uma pesquisa feita pelo IPEA, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ouviu 3.800 pessoas de todo o país sobre a violência contra a mulher e chegou a uma conclusão surpreendente: 65,1% dos entrevistados disseram que ‘as mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas’ e 58,5% afirmaram que ‘se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupro’.

Várias respostas chamaram a atenção dos pesquisadores. A maioria concorda, por exemplo, que existe mulher para casar e mulher para ir para cama (54,9% concordam). Já 27,2% afirmam que ‘a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade’”(Veja mais AQUI).

O que mais impressiona na pesquisa é que 66% dos entrevistados eram mulheres.

25 de mar. de 2014

‘Como se fabricam crianças loucas’ por ELIANE BRUM

Criança plastificada

Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século

 


Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:

- Por que eu vou ficar aqui?

Flávia descobriu que não tinha resposta.

Maria fez então a segunda pergunta:

- Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.

Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.

A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica

O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.

Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.

O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.

Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.

Por quê?

Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009

É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.

Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.

Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo... Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Ela queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado

Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.

Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.

Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.

Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970

A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?

Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.

Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.

Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico

Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.

O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos

O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.

José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.

Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.

No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(...) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.

Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola

Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.

A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.

Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.

Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.

1) Por que eu vou ficar aqui?

- Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.

2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

- As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.

Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.

Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”

Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:

- Onde está José?

Eliane Brum 1

 

 

 

 

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas.


Fonte: Gedelés Instituto da Mulher Negra

Enviado por Osair Manassan – Escritor, roteirista, fotógrafo, ilustrador e publicitário, em 24 de março de 2014.

Foto: Cena do Filme ‘Crianças Invisíveis’, capturada na página do ADOROCINEMA

23 de mar. de 2014

“Nossa condição humana” sob o olhar do cientista e do poeta

 

O pálido ponto azul

“A espaçonave estava bem longe de casa. Eu pensei que seria uma boa idéia, logo depois de Saturno, fazer ela dar uma ultima olhada em direção de casa.
De saturno, a Terra apareceria muito pequena para a Voyager apanhar qualquer detalhe, nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um "pixel" solitário, dificilmente distinguível de muitos outros pontos de luz que a Voyager avistaria: Planetas vizinhos, sóis distantes. Mas justamente por causa dessa imprecisão de nosso mundo assim revelado valeria a pena ter tal fotografia.
Já havia sido bem entendido por cientistas e filósofos da antiguidade clássica, que a Terra era um mero ponto de luz em um vasto cosmos circundante, mas ninguém jamais a tinha visto assim. Aqui estava nossa primeira chance, e talvez a nossa última nas próximas décadas.
Então, aqui está - um mosaico quadriculado estendido em cima dos planetas, e um fundo pontilhado de estrelas distantes. Por causa do reflexo da luz do sol na espaçonave, a Terra parece estar apoiada em um raio de sol. Como se houvesse alguma importância especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente de geometria e ótica. Não há nenhum sinal de humanos nessa foto. Nem nossas modificações da superfície da Terra, nem nossas maquinas, nem nós mesmos. Desse ponto de vista, nossa obsessão com nacionalismo não aparece em evidencia. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são irrelevantes, uma fina película de vida num obscuro e solitário torrão de rocha e metal.
Considere novamente esse ponto. É aqui. É nosso lar. Somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada crianças esperançosas, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada "superstar", cada "lidere supremo", cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, nos quase imperceptíveis habitantes de um outro canto, o quão frequentemente seus mal-entendidos, o quanto sua ânsia por se matarem, e o quão fervorosamente eles se odeiam. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, em sua gloria e triunfo, eles pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginaria auto-importancia, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, é desafiada por esse pálido ponto de luz.
Nosso planeta é um espécime solitário na grande e envolvente escuridão cósmica. Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não ha nenhum indicio que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nos mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora que sustenta vida. Não ha lugar nenhum, pelo menos no futuro próximo, no qual nossa espécie possa migrar. Visitar, talvez, se estabelecer, ainda não. Goste ou não, por enquanto, a terra é onde estamos estabelecidos.
Foi dito que a astronomia é uma experiência que traz humildade e constrói o caráter. Talvez, não haja melhor demonstração das tolices e vaidades humanas que essa imagem distante do nosso pequeno mundo. Ela enfatiza nossa responsabilidade de tratarmos melhor uns aos outros, e de preservar e estimar o único lar que nós conhecemos... o pálido ponto azul”.

Carl Sagan

 

 

O Homem; As Viagens
Carlos Drummond de Andrade

O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.

Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.

O homem funde a cuca se não for a júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.


Colaboração: Malu Moura, psicóloga, mestre em psicologia social e uma amiga muito preciosa.

17 de mar. de 2014

Boletim com resultados das ações de prevenção aos castigos corporais/físicos e humilhantes na primeira infância – Rede Não Bata Eduque

Caros amigos e parceiros,

Compartilhamos com vocês um boletim especial sobre as ações de prevenção aos castigos corporais/físicos e humilhantes na primeira infância, realizadas com profissionais da educação infantil nos municípios do Rio de Janeiro e Niterói, ambos no Estado do Rio de Janeiro.

Como ação estratégica para ao ano de 2014, vamos realizar atividades que motivem os profissionais da educação infantil na abordagem preventiva do tema com as famílias dos alunos e articular com organizações da sociedade civil para que estas possam apropriar-se da metodologia e replicá-la.

Vejam os resultados das ações realizadas em 2012 e 2013 no link:

http://www.naobataeduque.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Boletim-Especial-Mar%C3%A7o-2014.pdf

Qualquer dúvida ou informação adicional, entrem em contato.

Abraços,

Marcia Oliveira

Rede Não Bata Eduque
www.naobataeduque.org.br

www.facebook.com/rede.eduque

16 de mar. de 2014

Jin líng shí san chai - Flores do oriente - Las flores de la guerra

flores do oriente 3

"Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história".
Hannah Arendt


“Se puede soportar todo el dolor si se lo pone en una historia o si se cuenta una historia sobre él”.
Hannah Arendt

 

 

 

Filme completo

 

Película completa


Sobre o filme:

Jin líng shí san chai (金陵十三钗) - no Brasil, “Flores do Oriente” e em Portugal, “As Flores da Guerra” - é um filme baseado no romance de Geling Yan e o roteiro reconta o Massacre de Nanquim, quando milhares de mulheres foram estupradas e mortas pelas tropas japonesas que invadiram a cidade em 1937.

Sobre la película

Jin líng shí san chai (金陵十三钗) - llamada previamente Nanjing Heroes y 13 Flowers of Nanjing, es  basada en la novela The 13 Women of Nanjing de Geling Yan y el guión narra la masacre de Nanquim, donde fueron violadas y asesinadas a miles de mujeres por las tropas japonesas que invadieron la ciudad en 1937.

13 de mar. de 2014

¡Hay que verla!: Solo un Sueño

Comparto con vosotros una importante reflexión sobre el vacío existencial y los intentos ilusorios por compensaciones en el mundo del bienestar y de los éxitos materiales

 

 

Por Tamer Sarkis Fernández*

Dirigida por Sam Mendes y adaptada del libro de Richard Yates,Revolutionary Road (2008) es la película que hizo de Mendes uno de los grandes triunfadores en la edición 2008 de los Academy Awards. El rodaje había supuesto el segundo screen meeting entre Leonardo DiCaprio y Kate Winslet, hecho significativo porque, en cierto sentido, ambos interpretan el mismo personaje en el film. No dos personajes, sino uno para dos actores y para dos roles parciales:

DiCaprio como el hemisferio cobarde, conservador, “realista” y yankiecomfort-lover, quien cae lejos de entender la vida como empeño hacia el íntegro sentido en cualquier actividad. Y, mientras él no hace más que comportarse, actuar y reaccionar (Nietzsche, Genealogía de la Moral, I), Kate es lo otro. Kate es el hemisferio que acepta comportarse en consonancia pura a su “ser” o a su hegeliano intento de hacer(se), aun siendo, ese camino, carente de éxito. Camino coronado de espinas de dolor y decepción para la inestimada, no considerada, intérprete teatral que ella es.

La historia se desarrolla en “Los Dorados Años cincuenta” estadounidenses de la pos-segunda guerra mundial, cuando todo vecino de a pie parecía haber sido tocado por la barita (sangrienta, parasitaria bélica) del Bienestar y las oportunidades. Pero, a la vez, un periodo en que la mayoría de trabajadores ha devenido estándar competitivo necesitado de pequeñas compensaciones diarias para continuar. Tanto como las necesita el bueno de DiCaprio, quien cada mañana da el mismo “último” vistazo a su bonita casa con objeto de respirar compensación y reunir fuerzas antes de tomar el tren hacia la empresa. Ésa misma donde su padre trabajó por toda una vida, mientras DiCaprio se juraba y se juraba auto-destinarse a evitarse ese destino. By any means necessary, que diría Malcolm X.

A fin de proseguir con mínima entereza en el día a día, la joven pareja vive mintiéndose a sí misma sobre su vieja idea compartida: “nosotros dos somos diferentes al resto”, mientras esperan el gran día en que esa supuesta diferencia sea revelada a espuertas. Y lo cierto es que su entorno y vecindario comparten ese juicio de ellos respecto de su condición de “seres especiales”.

Pero, en lo profundo, en su fuero interno, la joven pareja sabe que están obrando, afrontando y viviendo igual que los demás. El padre de DiCaprio se enorgullecería. No así Kate. Ella se enamoró tiempo ha porque se vio a sí reflejada en las entrañas de Leonardo. Leo era su propio Ego, o eso le pareció a una joven embaucada por él, por sus aires de dandy y toda su performance.

Hubo una vez en que el personaje unitario compuesto por ambos protagonistas, fue verdaderamente una Totalidad dialéctica. Pero ahora las contradicciones se han agudizado, volviéndose antagonismos demasiado fuertes como para ser conciliados. Envuelto en este principio de escisión, el personaje es una bola de fuego y hielo, incompatible en sí. Su fuerza nuclear endógena, que lo engarza como identidad, ya no aguanta. Aun así, Kate no se ha rendido: está determinada a traer de vuelta aquel hombre que fue una vez, tal y como se dice que el proletariado se determinaría por su propio “ser social” a rescatar la relación genérica comunista y devolvérsela a nuestra especie.

Así que le propone algo limpio a su marido: un bogartiano y sincero returning to the start en París, símbolo del irredentismo colectivo y personal, y, en Revolutionary Road, metáfora de autenticidad. De renacimiento y detemps de vivre, para decirlo con George Moustaki.

Durante un tiempo, él no tendrá que hacer nada excepto hallar “quién es”/”qué quiere” mientras ella trabaja por ese salario que necesitan para subsistir. Y él se siente poderosamente persuadido, pero ciertas tentaciones (excusas, compensaciones) bloquearán la toma de carretera (road) compartida: la memoria de su padre, perspectivas de promoción laboral, una aventura sexual, una nueva casa, y la perfecta excusa para él: Kate queda embarazada.

Revolutionary Road es un film colosal, tajantemente minusvalorado, y original por su modo de mostrar conflicto y dilemas a través de Ego y alter-Ego en tensa unicidad. Es correctamente mostrada la época boomdel Freud vulgarizado y masivamente leído dentro de una lógica de poder-saber (Foucault), y que llevó a cada buen ciudadano a pensar que la clave para “comulgar” con el otro, o para el vínculo, la armonía, etc., consistía en hablar abiertamente sobre cada problema, cada contradicción y cada irrupción impresiva.

Por lo demás, cada personaje es en Revolutionary Road una metáfora: la jovencita compañera de aventura sexual encarna la compensación, mientras el compañero de trabajo de DiCaprio encarna el cinismo, el escepticismo, el solipsismo, la des-valorización relativista de todo. Más hondamente, ese rutinario trabajador es el nihilismo en una de sus formas. Es el sarcasmo y suspiro balbuceante consolatorio del esclavo: "Qué más da. Si todo es lo mismo; todo vale lo mismo"; "tú estás aquí y la vocación no existe..."; "Total... "; "Todo parte de uno. Todo es mentira". DiCaprio le responde con una lección de materialismo dialéctico: si hubiera una vocación genuína, no sería susceptible de descubrimiento desde este lugar ni haciendo lo que hacemos.

Paralelamente, la memoria del padre encarna ese aforismo marxista que reza: “La obra de los muertos pesa como un mal-sueño sobre el alma de los vivos”. El vecindario evoca el “sentido común”. En fin, el matemático loco es quien escupe a la cara del cuerdo “Nadar y guardar la ropa”. El loco escupe a la futilidad de pactar con el Vacío mientras uno dice intentar rebasarlo como el saltimbanqui de Así Habló Zaratustra, es decir, sin mancharse las manos. El matemático es un loco al que repugna la medrosidad de que el conciliacionismo se disfraza; que se dice “realista” mientras aguarda al gran día en que, por magia o milagro, las cosas toleradas amanezcan encajando, funcionando y fluyendo desde su propio vacío para al fin llenar a ese sujeto que quiere cambio sin cambiar de fondo. Por esa senda, el Vacío es Tragedia; es irremediable. “Muchos ven el Vacío. Pero muy pocos tienen las agallas suficientes para reconocer que no tiene remedio”.


*Tamer Sarkis Fernández es antropólogo, traductor y director del Diario de la Unidad

12 de mar. de 2014

O Brasil e “12 anos de Escravidão” por Urariano Mota

É sintomático da crueldade brasileira que os melhores relatos sobre a nossa escravidão venham de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e Vauthier.

12anos 2

Mais de um crítico já observou que o filme “12 Anos de Escravidão”,  para historiadores norte-americanos, delimita um marco no conhecimento da escravidão. Falemos agora do que esse filme representa para os brasileiros.

Na última sexta-feira, na fila do cinema aonde fui, não havia um só negro. Minto: havia só este mulato que agora escreve. Ao procurar outro na fila, recebi dos cidadãos de pele mais clara uns olhos envergonhados, que se baixavam até o chão. Tão Brasil. Tão brasileiro é o pudor educado para o que não se enfrenta. Mas o filme na tela nos pagaria. Lá, podemos ver o retrato da casa-grande: a indiferença de todos ante a tortura. Linda, a sinhá olha da varanda o negro ser torturado e nada vê, melhor, assiste ao espetáculo obsceno como uma liberalidade do senhor, o seu marido. Que aula. É um filme quase didático da infâmia, do que no Brasil está encoberto até hoje.

Para a nossa própria história, a do Nordeste do açúcar em especial, para o que não se destaca em Gilberto Freyre, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a realidade no filme mostra um escravo na forca, pendurado por horas em uma árvore, enquanto a rotina da fazenda segue sem distúrbio, sem assaltos de horror ou de repulsa. Mas isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha cidade, na sua,  jovens são amarrados em postes, os velhos pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento.

Se houvesse uma só imagem a destacar, eu destacaria a tortura de uma escrava sob o chicote. Por um lado, lembrei o comportamento da sobrevivência sob os torturadores na ditadura brasileira.  Por outro, se fosse desenvolvida ao nível do real, do histórico, a cena daria vômitos pela agonia da dor, apesar de apenas representada. Porque a realidade é ainda mais cruel que o mostrado na tela. E os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos no Brasil eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros, após o chicote, condenados à morte tinham as feridas abertas lambidos por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi. Poupemos o domingo. Mas de passagem menciono que  negros eram ferrados no corpo como os quadrúpedes da fazenda. Eles não tinham a marca do dono por uma medalhinha, como aparece no escravo Salomon no filme.

É estranho, é sintomático da crueldade brasileira, que os melhores relatos sobre a nossa escravidão (nossa aí em mais de um sentido, de falta de espírito liberto e de herança cultural) venham de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife.

De Vauthier cito: “Madame Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha roubado seis vinténs, ela amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!! Levantando- lhe a roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O mais velho deles observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do que o de um cavalo, quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a praticar coisas semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas depois, mas contá-las… Que mulher! Que alma!… Hoje o cadáver de um negro ficou boiando na praia, debaixo das nossas janelas, levado e trazido pelas oscilações das marés. Mil pessoas passaram, viam-no, pararam um instante antes de seguirem caminho muito filosoficamente. Aprecio pouco as ideias geralmente admitidas sobre cadáveres que tendem em alguns casos a conceder mais cuidados aos despojos sem alma do que ao ser quando está vivo – mas este descaso, essa indiferença geral perante a morte – é verdade que era um negro! Um negro vivo já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa incúria generalizada com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso caracteriza de modo bem saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal maquilada em civilização”.

Saímos do cinema com uma frase do personagem na memória:  “Eu sou a prova de que não existe justiça na terra”. Brancos, negros e mestiços de todas as cores bem compreendemos. Enquanto os miseráveis continuarem a ser presuntos, presidiários, enquanto não for vista a pele mais negra no topo da sociedade, em um papel que não seja o de capitão-do-mato, como Joaquim Barbosa, não existe justiça no Brasil. Mas podíamos começar pela conhecimento real da nossa história.

É necessário que esse filme se prolongue em artigos e discussões entre os brasileiros. Ele é o vislumbre do que temos sepultado. Vejam o filme e releiam a história escura, oculta da escravidão. O filme é melhor do que os livros de sociologia escritos no Brasil até hoje (Fonte: Pragmatismo Político).


Leia mais:

“12 Anos de Escravidão”é o melhor filme em muitos anos

É preciso mostrar a violência da escravidão, diz diretor de '12 anos...'

11 de mar. de 2014

Conferência livre do departamento de psicologia da PUC Goiás - COMIGRAR

 

Cartaz Migrações_PUC Goiás

 

“Migrações, refúgio e tráfico de pessoas – discussões no contexto dos Direitos Humanos”.

Goiânia, 12 de março de 2014.

Auditório 1 C (Básico) – Área II – PUC Goiás

O Departamento de psicologia da PUC Goiás, sob a coordenação do Centro de Estudos, Pesquisa e Práticas Psicológicas CEPSI, organiza e promove espaços de capacitação a partir do Ciclo de formação e debates: Psicologia, políticas públicas e temas contemporâneos. A primeira programação do ano contará com a parceria do Departamento de Relações Internacionais da PUC Goiás e se dará como evento preparatório para a I Conferência sobre Migrações e Refúgio - I COMIGRAR (proposta por órgãos do Governo Federal, diretamente envolvidos com as políticas voltadas às pessoas migrantes: Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e do Trabalho e Emprego). O debate seguirá a modalidade de Conferência Livre, com discussões sobre migrações, refúgio e tráfico de pessoas, fenômenos de relevância mundial que se fazem presentes nos contextos nacionais, locais e microssociais. O evento visa qualificar a formação acadêmica por meio de discussões referentes às políticas públicas e sua interface com a formação profissional nas variadas áreas do conhecimento, além de contribuir com uma discussão de interesse nacional, por meio da mobilização de atores locais (estudiosos, professores e alunos brasileiros e imigrantes e representações diversas), na perspectiva de reunir diferentes enfoques, visões e vivências da temática migratória.

Por mobilidade humana deve-se entender não apenas os deslocamentos geográficos de um lugar a outro, é preciso considerar que esta implica processos de transformações sociais, econômicas, culturais, políticas, enfim, mudanças que afetam aqueles que partem, os que ficam e a sociedade receptora; afetam o psicológico da pessoa migrante, a vida e a convivência social. Nessa transversalidade, outros elementos são acrescentados à dimensão migratória, como o refúgio, já que homens e mulheres, por razões políticas, religiosas, étnicas ou ambientais são forçados a deixarem sua terra natal em busca de proteção internacional em outros países. Em outra dimensão está o tráfico de pessoas, configurando uma situação de crescentes deslocamentos de indivíduos para serem explorados, seja por meio de trabalhos forçados ou de servidão por dívida. O tráfico de pessoas se desponta como um dos grandes desafios dos países, pois homens, mulheres, jovens, adolescentes e crianças são submetidos a condições degradantes em trabalho análogo à escravidão, retirando do sujeito a própria condição humana ao transformá-lo em objeto, um produto, uma simples mercadoria que pode ser vendida, trocada, transportada e explorada.

Na atualidade, os fluxos migratórios precisam ser pensados como processos de mudanças que se apresentam como inevitáveis pela sua abrangência e consistência. De maneira isolada, as políticas migratórias não dão conta de evitar os riscos da exploração no âmbito do trabalho, da discriminação e da falta de reconhecimento e respeito aos direitos humanos básicos, uma vez que prevalecem marcos regulatórios que impõem aos migrantes dificuldades para ingressar, permanecer ou acessar direitos dentro do território nacional. Faz-se necessário o desenvolvimento de ferramentas mais efetivas para intervir nos complexos cenários propiciados pelas novas realidades migratórias, com atenção à proteção dos direitos humanos e maneiras de promover condições igualitárias de participação individual e coletiva na construção do futuro econômico, produtivo, cultural e social do país. Assumir o debate sobre migração, refúgio e tráfico de pessoas nos possibilita, portanto, participar da construção de uma agenda pública que dá materialidade a situações cotidianas e inadiáveis no âmbito das problemáticas contemporâneas.

Objetivo geral:

- Realizar um evento preparatório, na categoria de Conferência Livre, para a mobilização dos atores locais (estudiosos, professores e alunos brasileiros e imigrantes e representações diversas) que convivem com diferentes enfoques da temática migratória.

Objetivos Específicos:

- Mobilizar profissionais com produção cientifica no tema das migrações, refúgio e tráfico de pessoas para apresentação de trabalho e debate com participantes do evento;

- Promover a reflexão e o fortalecimento institucional de parceiros governamentais e não governamentais além do engajamento de migrantes e representantes da sociedade no diálogo em torno dos temas migratórios;

- Propor espaço de diálogos abertos e propositivos para a formulação de políticas públicas;

- A partir de discussões qualificadas, pretende-se contribuir com subsídios para analise da equipe coordenadora do processo como aportes para a elaboração da Política e do Plano Nacional sobre Migrações e Refúgio;

- Avançar na transversalização da temática migratória e do refúgio, garantindo respeito aos papéis de cada um dos atores;

- Assegurar as discussões a partir da consulta do Texto Base, documento orientador dos debates;

- Garantir os debates preparatórios sob a orientação dos cinco eixos temáticos da COMIGRAR:

1) Igualdade de tratamento e acesso a serviços e direitos:

2) Inserção social, econômica e produtiva:

3) Cidadania cultural e reconhecimento da diversidade;

4) Abordagem de violações de direitos e meios de prevenção e proteção;

5) Participação social e cidadã, transparência e dados;

- Organizar, a partir dos eixos temáticos, conferências livres;

- Indicar dois delegados (as) em cada conferência livre, conforme votação entre os participantes;

- Preencher o Formulário padrão disponível na Plataforma COMIGRAR com o relato do evento, após a sua realização.

Data: 12/03/2014 Local: Auditório do Básico;

 

Programação:

1º Momento: (08:00 as12:00)

- Credenciamento;

- Solenidade de abertura.

- Mesa inicial: painel de contextualização:

“Migrações, refúgio e tráfico de pessoas – discussões no contexto dos Direitos Humanos”.

- Apresentação metodológica dos trabalhos

Intervalo: (12:00 as 14:00)

2º Momento: (14:00 as 17:00)

- Grupos de trabalho para leitura e discussão do eixo

- Apresentação de propostas;

- Escolha de delegados (as) para a etapa nacional

3º Momento: (17:00 as 18:00)

- Plenária final - resultados dos grupos de trabalho e apresentação dos delegados(as) eleitos.

9 de mar. de 2014

Ninem Alex por mim!

Quando minhas filhas eram pequeninas eu adorava cantar para elas dormirem. Cantava músicas que aprendi na infância e músicas que gostava de ouvir. “Alecrim dourado”, “borboletinha”, “o anel que tu me deste era vidro e se quebrou”, “eu fui no tororó beber agua nao achei“, “Terezinha de Jesus deu uma queda foi ao chão...”, “Como pode o peixe vivo viver fora da água fria”, “Existirmos: a que será que se destina? Pois quando tu me deste a rosa pequenina…”, “O Coisinha tão bonitinha do Pai,..”, “Mandacaru, quando flora lá na seca....”, “Olho a rosa na janela,...”, “Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora…”. Mas uma música em especial eu cantava com mais emoção, não sei explicar a razão, talvez por que ela falasse de honrarias feitas com pedrinhas de brilhantes e de anjos travessos que roubavam corações.

Hoje, nessa postagem de domingo, quero compartilhar um desejo com você. Queria que existissem anjos e que eles recebessem o pequeno Alex no colo e com suas vozes e liras celestiais o acalentasse com a minha canção de ninar favorita: “Se essa rua fosse minha”

 

 

7 de mar. de 2014

Menino de 8 anos é espancado até a morte pelo pai para “andar como homem”

coração de ferro sangra todo dia saramago-001

 

“Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”.

José Saramago

 


Alex, de 8 anos, era espancado repetidas vezes para aprender a “andar como homem”

RIO - A tragédia começou a ser delineada aos poucos. Em Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, Digna Medeiros, uma jovem de 29 anos que vive da mesada de dois salários-mínimos dada pelo pai, começou a ser pressionada pelo Conselho Tutelar porque não mandava seu filho Alex, um garoto franzino, que não aparentava seus 8 anos, à escola. Ameaçada de perder a guarda, mandou o menino para o Rio para que ele morasse com o pai. O encontro da criança tímida com o pai desempregado, que já cumprira pena por tráfico de drogas, não poderia ter sido mais desastroso. Horrorizado porque Alex gostava de dança do ventre e de lavar louça, Alex André passou a aplicar o que chamou de “corretivos”. Surrava o filho repetidas vezes para “ensiná-lo a andar como homem”. No último dia 17, iniciou outra sessão de espancamento. Duas horas depois, Alex foi levado para um posto de saúde. Parecia desmaiado, com os olhos grandes, de cílios longos, entreabertos. Mas não havia mais o que fazer. Estava morto.

As sucessivas pancadas do pai, provocadas porque Alex não queria cortar o cabelo, dilaceraram o fígado do garotinho. Uma hemorragia interna se seguiu, levando o menino, que também gostava de forró e de brincar de carrinho, a óbito. Apesar de a madrasta, Gisele Soares, que socorreu o enteado, afirmar que ele tinha desmaiado de repente, os médicos da UPA de Vila Kennedy desconfiaram logo de violência doméstica. O corpo de Alex, coberto de hematomas, era um mapa dos horrores que ele vinha passando. O laudo do Instituto Médico Legal descreve em muitas linhas todo o sofrimento: a criança tinha escoriações nos joelhos, cotovelos, perto do ouvido esquerdo, no tórax, na região cervical; apresentava também equimoses na face, no tórax, no supercílio direito, no deltoide, punho esquerdo, braço e antebraços direitos, além de edemas no punho direito e na coxa direita. A legista Áurea Maria Tavares Torres também atestou que o corpo magricelo apresentava sinais de desnutrição.

O posto de saúde chamou o Conselho Tutelar de Bangu, providência que nenhum vizinho do menino havia tomado. Alex morava com o pai, a madrasta e outras cinco crianças num casebre na Vila Kennedy, uma área sem UPP, onde três facções rivais travam uma guerra. Não se sabe se a lei de silêncio, que costuma imperar onde traficantes atuam, contaminou quem vivia nas casas próximas, ou se ninguém realmente sabia do que se passava no imóvel de três cômodos.

- Eu nunca escutei nada. Eu mal via o menino. Pensei até que ele já tivesse voltado para o Nordeste. Só os outros filhos saíam de casa. Acho que ele vivia em cárcere privado - diz a vizinha Wandina Ribeiro.

No depoimento que o pai, apelidado pelos vizinhos de “monstro de Bangu”, deu à polícia, há uma pista de que o menininho podia, de fato, sofrer os maus-tratos calado: “Enquanto batia, mais irritava o fato de ele não chorar, o que fazia o depoente crer que a lição que aplicava não estava sendo suficiente e que, por isso, batia mais e mais”.

Um dos conselheiros tutelares de Bangu, Rodrigo Coelho, diz que vai pedir à polícia que investigue se Alex vivia em cárcere privado. Se os vizinhos dizem não saber de nada, no colégio tampouco desconfiavam do que Alex passava em casa. Matriculado em maio de 2013 na Escola Municipal Coronel José Gomes Moreira, também na Vila Kennedy, o garoto era considerado calmo, obediente e inteligente. Teve ótimo desempenho no ano passado: nota 88 no segundo bimestre, primeiro que cursou no local, nota 100 no terceiro, e 90 no último. Este ano, não apareceu, mas os funcionários não se preocuparam: em janeiro, Alex André fora à unidade pedir a documentação escolar, dizendo que o filho voltaria para Mossoró.

O menino afetuoso, que se dava bem com os colegas, é descrito de forma bem diversa pelo pai. No depoimento à polícia, Alex André, que teve a prisão temporária decretada no último dia 19 pela juíza Nathalia Magluta e foi levado para o Complexo de Gericinó, disse que o filho “era de peitar”, “partia para dentro de você”. Segundo policiais que investigam o caso, a frieza de Alex André impressionou quem assistiu ao depoimento. Ele negou ter tido a intenção de matar, mas insistia que o filho tinha que ser “homem”.

Homofobia já tinha feito assassino rejeitar outra criança

Ninguém sabe dizer - como se isso tivesse alguma relevância - se Alex era realmente afeminado. Mas não faltam relatos de como o pai do menino era homofóbico. Sobrinha do assassino, Ingrid Moraes diz que Alex André era “cismado com essa coisa de homossexual” e rejeitava o filho mais velho, de 12 anos, por achá-lo pouco másculo. O menino, que morava numa rua próxima com a mãe, conta que a relação com o pai, que ele mal via, era cheia de segredos.

- Eu cuido da casa, mas ele nem sabia. Não acho nada demais, mas ele não aceitava muita coisa — diz o garoto, que escapou por pouco de ser surrado. - Uma vez, ele tentou, mas meu tio me defendeu.

Se poupou o filho mais velho, o mesmo não pode se dizer de outros parentes. Ingrid conta que já apanhou de Alex André, que também atacou a própria mãe

Se, em família, Alex André resolvia muita coisa no braço, na rua ele fazia valer sua condenação por tráfico de drogas (cumpriu pena por quase quatro anos) para amedrontar a vizinhança. Sem emprego fixo e vivendo de bicos, costumava consumir drogas no meio da rua e, se alguém reclamasse, dizia para não se meterem com ele.

Gisele, a mulher de Alex André, não tem sido mais vista na Vila Kennedy. Ela abandonou o lar no dia seguinte à morte do enteado, quando vizinhos ameaçaram linchá-la e atear fogo ao imóvel. À polícia, ela confirmou as palavras do marido e disse ser contrária aos castigos físicos.

Digna Medeiros, a mãe de Alex, garante que Alex André nunca foi violento com ela:

- Se soubesse, não teria deixado o Alex vir para o Rio. Ele era minha vida, nunca pensei que isso pudesse acontecer, meu Deus. Preferia que tivesse sido comigo.

Perguntada se o filho nunca havia se queixado do pai, Digna contou que só falara duas vezes com ele nos últimos nove meses.

- Eu liguei no dia que ele foi para o Rio com a aeromoça e falei também quatro dias depois. Ele disse que estava tudo bem. Depois, não consegui mais falar com o celular do pai dele. Entrei em contato com o irmão do Alex André pelo Facebook e ele disse que estava tudo bem. Confiei, afinal ele era tio do meu filho - diz.

Digna resolveu acompanhar de perto o desenrolar do caso. Deixou o bebê de 8 meses com amigos em Mossoró. O filho de 3 anos mora com os avós paternos. O mais velho, de 15, que ela não vê desde neném, ela quer encontrar no Rio.

- Tive ele muito nova, com 14 anos, não tinha a cabeça que tenho hoje. Deixei ele com o pai, lá em Honório Gurgel - diz Digna.

Digna e o conselheiro tutelar foram os únicos que participaram do enterro de Alex. Mas a cena do menino no caixão branco, de blusinha listrada, ainda marcado pela violência, foi tão forte que levou pessoas de quatro velórios que eram realizados ao lado a sair de suas capelas para abraçar a mãe.

 


Fontes: Globo Rio e Estadão/Brasil em 05 de março de 2014.

Foto capturada no blog Notivagamente

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