Drama social - Violência sexual e gestação interrompem infâncias
em Goiás
Malu Longo, jornal O Popular
Crianças vítimas de abusos são privadas de
direitos previstos em lei, como aborto. Estudo com dados de 2010 a 2020 revelou
1.400 notificações de violência interpessoal contra mulheres entre 10 e 19 anos
Em Goiás, dois casos recentes envolvendo gestação
de crianças, meninas de 11 e 12 anos, vítimas de abusos sexuais, revelam o
quanto é frágil a rede de proteção da infância e adolescência. As histórias
remetem a fatos que ocorreram no Espírito Santo em 2020 e em Santa Catarina,
este ano, que depois de muita polêmica, a Justiça autorizou o aborto legal.
Por aqui, em um dos casos, o Juizado da Infância e
Juventude negou o procedimento em razão da não autorização da avó paterna da
criança abusada. No outro, a menina não suportou as transformações provocadas
pela gestação em seu corpo em formação, morrendo após um quadro de eclâmpsia. O
bebê completou um mês de vida.
Dados da Secretaria de Segurança Pública de Goiás
(SSP-GO) mostram que em 2021, chegaram ao conhecimento das forças policiais
1.118 casos de estupro de vulnerável (até 14 anos) no estado. Até junho de
2022, houve outras 572 ocorrências.
Em todo o País, conforme aponta a Ouvidoria
Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos (MMFDH), dos 18.681 registros de violações de direitos humanos
contra crianças e adolescentes em 2021, 18% estão relacionadas à situação de
violência sexual. Até maio deste ano foram registradas 4.486 denúncias de
abusos, mais que o dobro das denúncias no mesmo período de 2020.
Um estudo de cooperação técnica realizado entre a
Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia e a organização global Vital
Strategies, divulgado no fim de 2021, mostrou que entre 2010 e 2020 houve na
capital 8.295 notificações de violência interpessoal contra mulheres junto ao
Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan).
Quase 1.400 estavam na faixa etária entre 10 e 19
anos. Em 40% dos casos, entre 10 e 14 anos, os abusos ocorreram no seio
familiar. O mapeamento, como disse Fátima Marinho, médica epidemiologista que
coordenou o estudo, permite identificar trajetórias de mulheres vítimas de
violência e evitar casos de internação ou mortes, desfechos que culminam em
oportunidades perdidas.
Dados do Sistema de Informações sobre Nascidos
Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde, mostram que até junho deste ano, em
Goiás, 168 meninas, com idade até 14 anos, deram à luz. No ano passado foram
450 e em 2020, no auge da pandemia da Covid-19, quando as medidas restritivas
sanitárias obrigaram o isolamento social, 474 crianças e adolescentes se
tornaram mães no estado.
Leia também:
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sexual do próprio pai, em Anápolis; ouça áudio
Corpo de criança não está preparado
Presidente da Comissão Nacional Especializada em
Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei, da Federação
Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrago), o médico
Robinson Dias de Medeiros disse ao POPULAR que o grande problema no Brasil hoje
é a falta de informação, gerando situações complexas.
“Mesmo sabendo da legalidade, as pessoas não estão
preparadas. Existe uma deficiência muito grande inclusive na formação dos
profissionais de saúde porque não se discute esses casos na graduação de
Medicina e de Enfermagem, levando a um dilema ético e assistencial. Muitas
vezes o profissional de saúde precisa ter atitude de ser ele a garantia do
direito à paciente, o deixando em situação de insegurança.”
Para o ginecologista, somente a educação e a
redução de vulnerabilidade econômica, podem fazer diferença para essas
famílias. “As pessoas confundem os conceitos de viabilidade fetal com a questão
do aborto induzido, uma medida intencional de interromper a gravidez que vai do
início da idade gestacional até o parto. Por isso, o correto é ter um
profissional no serviço colaborativo que proceda a medicina fetal.”
Ele explica que a Febrasgo fez um documento, a
pedido do Conselho Federal de Medicina (CFM) recomendando que os serviços de
saúde se esforcem em interromper a gravidez em casos de violência sexual antes
das 22 semanas mas, se não for possível, que a paciente seja encaminhada para
centros de referência, conforme o direito legal. O abuso sexual, na opinião do
médico, leva a pessoa a ter no futuro tendências depressivas e suicidas, abusar
de álcool e drogas e a ter dificuldades de desenvolver relações sexuais
desejadas.
“Por mais que eu me esforce, como médico e
professor, não sei mensurar o impacto da violência numa menina dessas. Se o
corpo é inapropriado para uma gravidez do ponto de vista orgânico, imagine para
o psicológico. Essas meninas deveriam estar brincando de boneca, estudando.
Elas não têm condições de dar aos filhos as oportunidades que elas também não
tiveram.”
Robinson Medeiros enfatiza que crianças têm
organismos imaturos, dos pontos de vista biológico, físico e psicológico para
gestar. “Na literatura médica há evidências científicas do risco de morte ser
cinco vezes maior nesta idade, entre 11 e 12 anos, se comparado à idade
considerada adequada para ter um filho, acima de 20 anos. E este caso de
Goiânia é emblemático. É mais uma razão para que não se faça obstrução
administrativa e objeção de consciência ao prestar assistência a essas vítimas.”
Opiniões religiosas e parto mantido
Em Senador Canedo, Maria (nome fictício), então
com 11 anos, engravidou do padrasto de 44. A gestação foi descoberta no dia 8
de março último quando um pastor evangélico esteve na casa da família e alertou
a mãe para o crescimento da barriga da menina. Após um teste de farmácia confirmar
a gravidez, a menina detalhou os fatos e ambas procuraram a delegacia da
Polícia Civil. Medidas protetivas foram requeridas e aceitas pela Justiça.
O padrasto foi preso e a criança encaminhada para
o Hospital da Criança e do Adolescente (Hecad), na capital. Como consta na
ficha do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan), na unidade
hospitalar mãe e filha manifestaram desejo de interrupção da gravidez.
Direcionadas para o Hospital Estadual da Mulher (Hemu), o antigo Hospital
Materno Infantil, a posição foi mantida.
No relatório de atendimento ocorrido no dia 10 de
março, a direção técnica do Hemu informa que a menina estava com 22 semanas e
três dias de gestação e que, como solicitaram a interrupção da gravidez, Maria
seria encaminhada para o Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), referência
em gestação precoce, consequência de violência sexual. Elas chegaram a assinar
o termo de consentimento para o abortamento que seria realizado no dia 23 de
março.
No relatório, a direção técnica do Hemu esclarece
que o procedimento seria “realizado de acordo com os protocolos institucionais
validados pela literatura médica destacando as normas técnicas e portarias
editadas pelo Ministério da Saúde”. Ressaltando que a interrupção da gestação
da menina se justificava “tanto por seu direito diante de uma gravidez
decorrente de violência sexual quanto pelo risco que a gravidez impõe à sua
saúde”.
Conforme o Hemu, a literatura médica reconhece que
na infância e na puberdade, a menina ainda não concluiu o processo de
maturidade cognitiva, psicossocial e biológica.
“Diante de uma gravidez, esta condição de
imaturidade biológica da adolescência precoce traz como consequência uma maior
taxa de complicações obstétricas, tais como, anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia,
diabetes gestacional e parto prematuro. O Hemu foi além: “No Brasil, a cada 11
partos de meninas menores do que 14 anos, houve uma morte nesta faixa etária em
2019.”
O relatório foi anexado aos processos que tiveram
origem na Delegacia da Polícia Civil, em pedido de medidas protetivas de
urgência e no Ministério Público atendendo solicitação da avó paterna que pediu
a suspensão do procedimento alegando motivos religiosos, este tramitou em
segredo de Justiça.
No dia 18 de março a juíza Maria Socorro de Souza
Afonso da Silva, do Juizado da Infância e Juventude da comarca de Goiânia
determinou a suspensão da interrupção da gravidez. Uma assistente social e uma
psicóloga da equipe Interprofissional do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO)
estiveram duas vezes com Maria e a mãe, uma mulher de 35 anos, que deu à luz a
cinco filhos, com idades entre 14 e 2 anos.
A família vive num barraco de dois cômodos, na
periferia de Senador Canedo e depende de 650 reais de bolsas governamentais. A
maior parte da renda vinha do padrasto, preso depois de engravidar a menina. A
criança contou que não sabia o que era um aborto, mas depois que um padre
mostrou um vídeo explicando, decidiu criar o bebê.
“Eu tive cinco filhos e onde come cinco, come seis
(sic)”, disse M., ao ser informada do Programa Entrega Legal para Adoção,
criado pelo TJ-GO em 2020. Sobre a decisão, o Juizado da Infância e Juventude
informou que não iria se manifestar.
O bebê de Maria nasceu no dia 30 de junho. A
equipe local do Centro de Referência de Assistência Social (Creas), que desde
março acompanhava a família, informou no dia seguinte à juíza Patrícia Dias
Bretas, da Vara de Família de Senador Canedo que a menina passou por uma
cesariana no Hemu e que nem o pai nem avó paterna “não fizeram questão alguma
de acompanhar o parto e nem mesmo forneceram nenhuma forma de subsídio
emocional e ou financeiro para que o bem-estar da adolescente fosse assegurado”.
No relatório, a assistente social do Creas é ainda
mais enfática ao mencionar os representantes religiosos. “Nem mesmo os líderes
religiosos (padre e pastores) não se manifestaram neste momento tão delicado
para a vida dos infantes (cita o nome da menina e do bebê), porém apenas se
limitaram a dar opiniões fundamentadas no radicalismo extremista religioso.”
O POPULAR falou com M. nesta quinta-feira, 18).
Ela contou que está cuidando do neto, que a avó paterna continua distante e que
a família vem recebendo cestas básicas do Creas e de uma igreja. Os vizinhos
também têm ajudado. “Não é uma situação fácil. A gente vai tentando lidar. Não
posso trabalhar porque preciso cuidar do bebê. Minha menina não tinha muito
peito, mas ainda deu de mamar um mês”, detalhou M.
Mãe morre e fica o bebê
Em Goiânia, Áurea (nome fictício), que completou
12 anos em março, morreu no dia 18 de julho depois de oito dias internada na
Unidade de Tratamento Intensivo do Hemu. Levada por uma equipe do Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência (Samu), ela deu entrada na unidade hospitalar com
síndrome Hellp, uma complicação grave de pré-eclâmpsia.
A menina estava acompanhada da mãe que informou
não estar ciente da gestação. O fato foi registrado no Sinan e está sob
investigação do Comitê de Óbito Materno, da Secretaria Municipal de Saúde
(SMS). Ao POPULAR, a mãe, contou que não tinha ideia da gravidez da filha, uma
menina que cresceu muito dos 9 aos 12 anos. “Ela não tinha nenhum sintoma”.
Quando ela se sentiu mal, no dia 10 de julho, uma
tia a levou no Cais do bairro Vila Nova, onde foi constatada a gestação e a
menina encaminhada para o Hemu. O bebê, com 37 semanas, nasceu, mas o estado de
saúde de Áurea piorou muito e ela não resistiu. C., mãe de outros quatro filhos
(três ficaram no Maranhão), vive num barraco na Vila Monticelli, em Goiânia e
não recebe bolsas do governo. Como está sem trabalhar para cuidar do bebê,
vizinhos têm ajudado.
C. desconfia que a filha engravidou do seu irmão
porque Áurea passou alguns dias na casa da avó. O caso está sob investigação da
Polícia Civil e do Comitê de Morte Materna da SMS e a família vem sendo
acompanhada pelo Conselho Tutelar da região. Em uma das fichas do Sinan consta
que “membros da equipe de saúde agiram como investigadores (policiais)
submetendo a paciente a várias entrevistas solicitando esclarecimento sobre as
circunstâncias que resultaram na gravidez, o que configura constrangimento
ilegal”.
Em nota ao POPULAR, a SMS confirmou que o caso
está sendo investigado, junto ao hospital e familiares, pelo departamento de
Vigilância e Saúde. “Assim que a investigação for concluída, o relatório final
será encaminhado ao Comitê de Morte Materna da Secretaria de Estado da Saúde
(SES).”
Fonte: O Popular, 20 de agosto de 2022.
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